Processo n.º 255/2017
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 20/Junho/2019
ASSUNTOS:
- Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade comercial e pressupostos necessários
SUMÁRIO:
I - Quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.
II – Como no caso sub judice não se encontram os pressupostos de facto necessários a accionar a figura de desconsideração da personalidade jurídica, nem existem factos demonstrativos de abuso de direito, ou de instrumentallização da personalidade jurídica da 1ª Ré para fins ilícitos, o que determina a improcedência do recurso nesta parte.
O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 255/20171
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 20 de Junho de 2019
Recorrente : - A Limitada(A有限公司) (Autora)
Recorridos : - B, Lda (B有限公司) (1ª Ré)
- C (2º Réu)
- D (3ª Ré)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A Limitada(A有限公司) (Autora), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 11/10/2016, que julgou parcialmente procedente a acção, veio, em 15/12/2016, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 429 a 441, tendo formulado as seguintes conclusões :
A. O recurso incide sobre a não condenação dos 2° e 3° Réus, sócios e gerentes da 1ª Ré. O seu âmbito incide sobre a desconsideração da personalidade jurídica da 1ª Ré.
B. A recorrente não encontrou jurisprudência na RAEM sobre a questão, pelo que derivará os seus argumentos na doutrina e direito comparado, cabendo a esse Tribunal estabelecer jurisprudência sobre a matéria.
C. Os 2° e 3° Réus (i) agiram em má-fé e abuso de direito, (ii) confundindo o património deles e o da 1ª Ré, (iii) a qual não tem qualquer património ou actividade, tendo usado a sociedade exclusivamente como instrumento directo dos seus interesses individuais - e não também como um centro jurídico de interesses autónomo - com a finalidade de verem o seu património individual protegido das consequências legais advindas da prática de actos que, como resulta provado na sentença, revelam uma manifesta falta de integridade empresarial.
D. Os factos processuais e considerações relevantes são alinhados no ponto 6 supra.
E. Em rigor, a “personalidade jurídica” da entidade colectiva em si mesma não é a base do problema, o qual assenta antes na “responsabilidade limitada”. O problema assenta, pois, no véu protector da responsabilidade limitada. A questão é, pois, no fundo, uma de desconsideração da responsabilidade limitada. Trata-se aqui não tanto de uma “despersonalização” da sociedade, quanto de uma “deslimitação” da responsabilidade dos sócios.
F. É menos exigente demonstrar o que seria uma desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica do que da limitação da responsabilidade.
G. A protecção advinda da responsabilidade limitada deve cair quando ultrapassar limites a partir dos quais não é merecedora de protecção jurídica e judicial.
H. A doutrina e a jurisprudência portuguesas, perante quadro legal similar, têm notado que esta desconsideração deve resultar de um abuso do direito da personalidade colectiva, a qual assenta, pois, no instituto do abuso do direito.
I. A ideia subjacente ao levantamento do véu protector é a de tentar encontrar um equilíbrio entre a protecção da segurança e a protecção da justiça do caso concreto. Segurança e justiça são ambas vectores essenciais dos princípios em que assentam os sistemas jurídicos modernos. Caberá a esse Tribunal estabelecer jurisprudência sobre a questão, apontando para princípios protectores da segurança e princípios contra o abuso dessa segurança.
J. Está em questão a boa-fé na relação com terceiros, a ética negocial, a existência de uma conduta censurável, o abuso de regras jurídicas para atingir um fim contrário ao visado com as regras em questão, bem como com o fim de atingir um resultado contrato à recta actuação negocial.
K. Resulta dos factos que a 1ª Ré não funcionava como um centro de interesses autónomo dos interesses dos seus dois sócios: não tinha actividade, a sede estava vazia, não tinha funcionários, usando os de terceiro, não era arrendatária do prédio cujo estabelecimento detinha, não tinha património, não tinha capital, os seus gerentes estavam fora, sendo a sociedade um mero fantasma e um puro reflexo da dos seus sócios-gerentes.
L. Os 2° e 3° Réus abusaram da personalidade jurídica da 1ª Ré para defraudar os interesses de terceiros, agindo de má-fé, enganando a Autora, não cumprindo qualquer dos deveres a que estavam adstritos, recebendo o dinheiro e partindo para fora da RAEM.
M. Os 2° e 3° Réus comportaram-se efectivamente num sentido que revela uma desconsideração clara pela autonomia jurídica da 1ª Ré relativamente aos 2° e 3° Réus, numa situação que revela que a confusão patrimonial e de interesses entre os três Réus é manifesta.
N. O dinheiro que integrou o património dos 2° e 3° Réus (não da 1ª Ré); o arrendamento do local onde o estabelecimento estava instalado era do 2° Réu (não da 1ª Ré); porém, foi a 1ª Ré (não o 2° Réu) quem ficou obrigado a transmitir o direito resultante do arrendamento; o motociclo estava em nome do 2° Réu (não da 1ª Ré) e fazia parte do activo que a 1ª Ré transmitira à Autora; a 1ª Ré não tinha qualquer activo; no pedido reconvencional os Réus peticionam em conjunto a condenação da Autora a pagar-lhes rendas não pagas relativamente a um arrendamento da titularidade exclusiva do 2° Réu.
O. Do exposto resulta que estamos perante (i) uma sociedade que não constitui um centro de interesses autónomo, mas um mero pretexto para o véu legal protector, (ii) uma conduta negocial censurável e prejudicial à parte contrária que tirou abusivamente proveito do véu protector, e (iii) uma conduta das Rés que revela confusão patrimonial entre sócios e sociedade e, pois, desconsideração da personalidade jurídica.
P. É um princípio de direito que não se deve premiar o prevaricador. É por isso mesmo que existem as figuras da má-fé e do abuso do direito: arts. 326° e 752°/2 do Cód. Civil.
Q. Consequentemente, estão reunidas as condições factuais e legais para se desconsiderar no caso concreto a protecção advinda da responsabilidade limitada, desconsiderando-se a personalidade jurídica da 1ª Ré com a consequente responsabilidade civil dos 2° e 3° Réus, cujos patrimónios deverão responder pelas dívidas resultantes da Sentença.
R. Tal desconsideração não afecta a existência e natureza jurídica da 1ª Ré, que mantém a sua personalidade jurídica, sendo simplesmente o caso de uma decisão judicial determinar que a protecção da 1ª Ré é desconsiderada, levantando-se o véu protector, e determinando-se a responsabilização dos sócios pelas dívidas da 1ª Ré no que respeita a este negócio particular.
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C (2ª Ré), Recorrido, com os sinais identificativos nos autos, ofereceu a resposta constante de fls. 450 a 456, tendo formulado as seguintes conclusões:
I - O acórdão a quo não deve ser modificado quanto aos seus fundamentos de facto e de direito no sentido que vem propugnado pela autora.
II - É que nenhuma prova se produziu, ou sequer assim alegou a autora, que sob a capa da personalidade jurídica da 1.ª ré, estivesse, afinal, a agir à sua sombra o 2.° réu (bem como a 3.ª ré).
III - O instituto do levantamento da personalidade colectiva não existe face à lei positiva de Macau, unicamente se podendo buscar subsídios para a sua compreensão noutros ordenamentos jurídicos.
IV - Está em causa um instituto absolutamente excepcional, excepcionalidade que se justifica face ao princípio fundamental da autonomia (maxime, patrimonial) entre a sociedade comercial como sujeito de direito e a pessoa dos seus sócios (e, até por maioria de razão, dos seus administradores).
V - Como tal, devem ser alegados e demonstrados factos que inequivocamente permitam concluir que houve um abuso da personalidade colectiva pelos respectivos sócios com fins defraudatórios de terceiros, ónus esse que a autora não observou como lhe competiria e se assim foi, sibi imputet.
VI - A decisão recorrida, pelo acima exposto, não merece qualquer censura ou alteração por parte do Tribunal de Segunda Instância.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- E e F depois de manifestarem ao 2º R. a vontade de adquirir o Estabelecimento de Comidas G, sito na XXXXXX, Macau, foram por este informados de que o mesmo era propriedade da 1ª R. e que estava licenciado apenas para take away and delivery, mas que em 09/02/2012 já havia sido requerido no IACM o seu licenciamento para restaurante. (alínea A) dos factos assentes)
- Em 11 de Junho de 2012, a 1ª Ré e E e F celebraram um contrato que designaram “Contrato-promessa de trespasse”, nos termos do qual:
i. A primeira prometeu vender aos segundos, e estes prometeram comprar àquela, o estabelecimento denominado Estabelecimento de Comidas G, sito na XXXXXX, Macau, n.ºXX e XX, R/C, lojas XX e XX, pelo preço de HK$1.500.000,00;
ii. O preço seria pago em quatro prestações, a primeira de HK$500.000,00 na data da celebração do contrato-promessa, a segunda de HK$500.000,00 na data de assinatura do contrato definitivo, a terceira de HK$250.000,00 no prazo de um ano a contar da celebração do contrato definitivo e a quarta de HK$250.000,00 no prazo de dois anos a contar da celebração do contrato definitivo;
iii. A quantia da primeira prestação teria a natureza de sinal; e
iv. A 1ª R. comprometia-se a fazer tudo ao seu alcance para que o processo de licenciamento do estabelecimento fosse concluído no mais breve espaço de tempo possível para que os promitentes adquirentes pudessem iniciar a exploração do estabelecimento, tudo conforme doc. 1 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea B) dos factos assentes)
- No mesmo dia da celebração do contrato id. em A), os aludidos promitentes compradores pagaram a primeira prestação no montante HK$500.000,00 a título de antecipação parcial do preço e sinal. (alínea C) dos factos assentes)
- Por solicitação do 2º R. o pagamento daquela quantia foi feito por depósito em conta bancária que o mesmo indicou e que é titulada por si e pela 3ª R. (alínea D) dos factos assentes)
- E e F constituíram a sociedade Autora para através dela explorarem o estabelecimento e, depois de obterem o consentimento da 1ª R. para o efeito, cederam-lhe a posição contratual de promitentes adquirentes que tinham no contrato referido em B). (alínea E) dos factos assentes)
- Em 30 de Julho de 2012, a 1ª R., E e F, e a Autora celebraram um contrato que designaram “aditamento ao contrato de promessa de trespasse celebrado em 11 de Junho de 2012”, nos termos do qual:
i. A 1ª R. concordou na transmissão para a Autora da posição contratual dos primitivos promitentes adquirentes;
ii. Foi entregue à Autora o estabelecimento comercial para esta o poder passar a explorar desde então como take-away and delivery até ao licenciamento do local como restaurante;
iii. Foi antecipado para o dia 8 de Agosto de 2012 o pagamento da segunda prestação do preço, no montante de HK$500.000,00, que nos termos do contrato-promessa deveria ser paga no momento da celebração do contrato definitivo, tudo conforme doc. 4 junto com a p.i. e cujo teor aqui se dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos. (alínea F) dos factos assentes)
- A A. pagou a segunda prestação em 9 de Agosto de 2012, entregando o montante de HK$450.000,00 e retendo HK$50.000,00. (alínea G) dos factos assentes)
- O quadro de electricidade do estabelecimento tinha potência insuficiente para os equipamentos ali existentes. (alínea H) dos factos assentes)
- A janela no andar superior do estabelecimento não fechava. (alínea I) dos factos assentes)
- No estabelecimento não havia extintores de incêndio. (alínea J) dos factos assentes)
- O estabelecimento não tinha qualquer quota para trabalhadores não residentes. (alínea K) dos factos assentes)
- Os títulos de identificação de trabalhadores não residentes (blue cards) de H e I expiravam em 31 de Outubro de 2012. (alínea L) dos factos assentes)
- A A. elaborou uma lista com problemas e resolver que enviou por e-mail, primeiro ao 2º R., em 05/09/2012, depois ao Exmº advogado dos RR., em 11/09/2012, o qual acusou a recepção e informou ter contactado com o 2º R. sobre o assunto, tudo conforme doc. 25 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea M) dos factos assentes)
- O Corpo de Bombeiros e a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes detectaram várias insuficiências no processo de pedido de licenciamento do estabelecimento e o IACM já havia em Abril contactado telefonicamente a 1ª Ré para as suprir. (alínea N) dos factos assentes)
- A IACM tinha informado esta situação à 1ª Ré em Abril ou Maio de 2012, todos os Réus tiveram então conhecimento da mesma. (alínea O) dos factos assentes)
- Como os Réus não responderam ao IACM, foi iniciado o procedimento suspensão do processo de pedido de licenciamento, o que foi comunicado por escrito pelo IACM à 1ª Ré por ofício de 23 de Agosto de 2012. (alínea Q) dos factos assentes)
- A 1ª Ré respondeu em 24 de Setembro de 2012. (alínea R) dos factos assentes)
- Os trabalhadores não residentes, H e I, não estavam legalmente autorizados a trabalhar no Estabelecimento de Comida G, com o cadastro n.º XXXXXX, mas no Estabelecimento de Bebidas G, com o cadastro n.º XXXXXX,, instalado na Rua XXXXXX, Taipa, Macau e pertence, desde Junho de 2012 à J Limitada. (alínea S) dos factos assentes)
- O Estabelecimento de Comidas G está instalado em local arrendado a terceiro, por contrato celebrado em 28 de Abril de 2010, pelo prazo de 5 anos a contar de 1 de Maio de 2010, mas o arrendatário não é a 1ª Ré, sociedade proprietária do estabelecimento, mas o 2º Réu a título individual. (alínea T) dos factos assentes)
- O activo do estabelecimento compreendia o motociclo com a matrícula MD-XX-XX, para fazer as entregas a domicílio, mas o mesmo também não estava registado em nome da 1ª Ré, mas em nome individual do 2º Réu. (alínea U) dos factos assentes)
- A A. não pagou as rendas de Dezembro de 2012 a Abril de 2013 relativas ao Estabelecimento de Comidas G. (alínea V) dos factos assentes)
- O 2º Réu e a 3ª Ré são sócios e gerentes da 1ª Ré. (alínea W) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- No início de 2012 o 2º R. contactou E e F e por saber que estes pretendiam adquirir e explorar um restaurante. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- … propondo-lhes a compra do Estabelecimento de Comidas G. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- E e F visitaram o local com o 2º R., ali verificando que se encontrava a funcionar um estabelecimento de restaurante. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- … tendo sido informados pelo 2° Rº. de que o dito estabelecimento tinha duas quotas para trabalhadores não residentes. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Na sequência do referido em 3º e 4º E e F decidiram, após negociarem as condições do negócio, adquirir o citado estabelecimento. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Os E e F pretendiam era um restaurante pronto a funcionar e para iniciarem de imediato a respectiva exploração. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- O 2º R. em face do referido em 7º respondeu que o processo de licenciamento estava em fase de conclusão e que a licença requerida id. em A) seria emitida em breve. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- Por causa desta informação E e F decidiram concretizar o negócio de compra do Estabelecimento de Comidas G. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- Decorridas duas semanas sobre a celebração do contrato de promessa id. em B) E contactou por diversas vezes os RR. no sentido de saberem se a licença do estabelecimento referida na última parte da al. A) já tinha sido emitida. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- O 2º R. respondeu que a emissão da licença estava iminente. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- No inicio de Julho a licença referida na última parte da al. A) ainda não havia sido emitida. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- O 2º R. respondeu que nesse mês iria passar a residir em Shanghai e propôs a E e F a entrega imediata do estabelecimento para que estes pudessem iniciar a respectiva exploração como take away. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- E e F começaram por discordar, mas por efeito de grande insistência dos RR., acabaram por concordar em fazer o aditamento id. em F) ao contrato de promessa e com a finalidade referida em 15º. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- Na sequência do acordo referido em F), a A. recebeu no dia 1 de Agosto o estabelecimento. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- … não se tendo iniciado logo a exploração porque E esteve internado no Hospital para realizar uma intervenção cirúrgica no início de Agosto e F teve de lhe prestar assistência durante esse período. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- Apesar do referido em 18º F começou a deslocar-se ao estabelecimento para se ir inteirando da sua situação tendo constatado da existência de diversas dívidas que se apuraram ser as seguintes:
- HKD$15.000,00 de renda de Julho do estabelecimento (MOP$15.472,50);
- MOP$2.500,00 de rendas de Maio a Julho de espaço de armazém;
- MOP$580,00 serviço de internet de Julho;
- MOP$270,00 de consumo de água de Junho e Julho;
- MOP$5.590,00 de consumo de electricidade de Junho e Julho;
- MOP$3.349,00 de dívidas de Julho a fornecedores;
- MOP$22.085,00 dos salários de Julho aos trabalhadores. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- Devido ao referido em H) o quadro ia frequentemente abaixo deixando todo o estabelecimento às escuras e sem funcionar. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- O referido em I) diminuía a eficiência da refrigeração do estabelecimento. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- Dos equipamentos existentes no estabelecimento não funcionavam: duas bocas de gás do forno; o aparelho de esticar massas das pizas; a máquina de café; a misturadora. (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- O ar condicionado da cozinha não funcionava. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Não havia irrigadores de água para combate a incêndios. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- Por via do referido em L) a A. tentou, sem êxito, entrar em contacto várias vezes com os RR. no sentido de resolver o problema das licenças dos trabalhadores ali identificado. (resposta ao quesito 26º da base instrutória)
- A A. não obteve resposta ao primeiro contacto referido em M). (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
- Só em Setembro de 2012 o 2º R. esteve no estabelecimento, durante pouco tempo, prometendo resolver todos os problemas, nomeadamente que os RR. tratariam das renovações das autorizações referidas em L). (resposta ao quesito 28º da base instrutória)
- E afirmando que a licença para restaurante referida em A) estaria pronta em breve. (resposta ao quesito 29º da base instrutória)
- … sendo que o problema era o IACM exigir a alteração da porta exterior do estabelecimento, que era de correr e teria de passar a abrir para fora, mas que fariam essa alteração rapidamente. (resposta ao quesito 30º da base instrutória)
- A A. disse então ao 2º R. que a situação teria de ser resolvida até 31 de Outubro, pois se até aquela data não fosse emitida a licença ou se não fossem renovados os blue cards dos trabalhadores teria de encerrar a actividade e se isso sucedesse poria termo ao contrato. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
- Os Réus continuaram a fugir aos contactos da Autora, apenas esporadicamente atendendo telefonemas desta. (resposta ao quesito 32º da base instrutória)
- Em Outubro os Réus não conseguiam tratar da renovação dos blue cards dos trabalhadores. (resposta ao quesito 33º da base instrutória)
- A Autora disse então por várias vezes aos Réus que nessa situação seria forçada a encerrar o estabelecimento e que daria o contrato por terminado em 31 de Outubro por culpa destes. (resposta ao quesito 34º da base instrutória)
- Os Réus não resolveram nenhum dos problemas como lhes havia sido pedido. (resposta ao quesito 35º da base instrutória)
- A Autora ficou sem os trabalhadores que tinha e sem quotas para contratar outros, pelo que foi forçada a encerrar o estabelecimento em 31 de Outubro de 2012. (resposta ao quesito 36º da base instrutória)
- Na sequência do referido em O) a 1ª R. nunca cumpriu as exigências legais para o funcionamento do estabelecimento. (resposta ao quesito 37º da base instrutória)
- Em 12 de Janeiro de 2013 a Autora entregou em mão à 1ª e ao 2º Réus, na presença do Exmº Advogado destes, uma carta pondo termo ao contrato, reclamando a indemnização devida e manifestando disponibilidade para restituírem o estabelecimento em qualquer momento a partir daquela data. (resposta ao quesito 38º da base instrutória)
- Em 27 de Junho de 2013 a Autora restituiu o estabelecimento aos Réus porque só então estes lhe indicaram representante para o efeito. (resposta ao quesito 39º da base instrutória)
- E e F foram informados sobre a circunstância do processo de licenciamento e dos trabalhadores não residentes. (resposta ao quesito 40º da base instrutória)
- Tendo conhecimento que o estabelecimento funcionava com dois empregados residentes, em regime de part-time, e dois trabalhadores que eram funcionários do estabelecimento referido na al. S) em segundo lugar. (resposta ao quesito 41º da base instrutória)
- Entre a A. e RR. foi acordado que aquele teria de requer as quotas necessárias para dois TNR. (resposta ao quesito 45º da base instrutória)
- O 2º R. pagou MOP$351.204,73, correspondente às rendas acrescida dos respectivos juros legais e das despesas relativa a reclamação de crédito, incluindo honorários de advogados e custas de parte, no âmbito da acção de despejo CV1-13-0097-CPE. (resposta ao quesito 46º da base instrutória)
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I) RELATÓRIO
A Limitada (A有限公司), pessoa colectiva n.ºXXXXX(SO), com sede em Macau, na XXXXXX, vem intentar a presente
ACCÇÃO ORDINÁRIA contra
B, Lda. (B有限公司), sociedade commercial registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXXX(SO), com sede em Macau, na XXXXXX, Taipa;
C, casado, titular do BIR n.º XXXXXX, residente na XXXXXX, Changning, Shanghai, China;
D, casada, titular do BIR n.º XXXXXX, residente na XXXXXX, Changning, Shanghai, China
com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 16.
Concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada, e em consequência, serem os Réus condenados a pagarem à Autora a quantia de MOP$1,547,250.00, acrescida de juros à taxa legal supletiva, actualmente de 9.75%, a contar da data da citação, e até integral cumprimento.
***
Os 2º e 3ª Réus contestaram a acção com os fundamentos constantes de fls. 177 a 192 dos autos, negando ter incumprido qualquer obrigação derivada do acordo celebrado com a Autora, invocou ainda os factos de que a Autora, após ter tido a posse do estabelecimento, não pagou as rendas relativas ao período de Dezembro de 2012 a Abril de 2013, o que deu origem à uma acção de despejo contra o 2° Réu e que este sofre no montante de MOP$315.204,73 referente as rendas e mais de MOP$46.350,00 das despesas suportadas, incluindo honorários de advogado e custas, com base nesses factos, deduziu o pedido reconvencional pretendendo que a Autora seja condenada em indemnizar as referidas quantias.
***
Saneados os autos, admite-se a reconvenção e, foram seleccionados os factos assentes e procedeu-se à organização da base instrutória.
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Realiza-se a audiência de discussão e julgamento por Tribunal Colectivo de acordo com o formalismo legal.
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O Tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e internacionalmente e o processo é próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
II) FACTOS
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
(…)
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III) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Com a presente acção, pretende a Autora a responsabilidade dos Réus no pagamento da indemnização no montante de MOP$1.547.250,00, por achar a 1ª Ré ter faltado a cumprir definitivamente o contrato-promessa celebrado com a 1ª Ré.
Para o efeito, fundamenta a Autora que celebrou um contrato-promessa de trespasse que tem por objecto o estabelecimento comercial de comidas G pelo preço de HK$1.500.000,00. A Autora apenas interessava na aquisição do estabelecimento comercial de restaurante, como o estabelecimento comercial G estava licenciado para take away and delivery, a 1ª Ré comprometia-se a fazer tudo ao seu alcance para que o processo de licenciamento do estabelecimento fosse concluído no mais breve possível, tendo a Autora entregue à Ré o montante total de HK$950.000,00, sendo o montante de HK$500.000,00, a título do sinal e a 1ª Ré entregue a posse do estabelecimento G à Autora no dia 30 de Julho de 2012.
Após a entrega do estabelecimento comercial G, a Autora verificou uma série de problemas relativo ao estabelecimento e tentou contactar com os Réus para os resolveram, porém, os Réus fugiram a contacto com a Autora, os Réus não responderam ao IACM sobre a insuficiência no processo de pedido de licenciamento do estabelecimento, o que levou a suspensão do pedido de licenciamento.
A Autora exigiu aos Réus a resolver os problemas até 31 de Outubro, nomeadamente a licença de restaurante e renovação dos blue cards dos trabalhadores não residentes colocados no estabelecimento comercial, sob penas de por em termo do contrato.
Porém, os Réus não conseguiram tratar da renovação dos blue cards dos trabalhadores não residentes, a Autora foi forçada a encerrar o estabelecimento em 31/10/2012.
Contestaram os Réus, entendendo ter cumprido as obrigações contratuais, que o estabelecimento comercial foi entregue à Autora com funcionalidade normal nem que a Autora não manifestou que não estaria interessada em adquirir o estabelecimento apenas com licença de “take away and delivery”. Reconvindos os Réus que a Autora abandonou voluntariamente o estabelecimento comercial, e não pagou as rendas compreendias entre Dezembro de 2012 e Abril de 2013, o que levou o senhorio instaurou uma acção de despeja contra o 2º Réu e que este foi condenado a pagar a indemnização, pretendendo que seja ressarcido daquele que o 2° Réu pagou e as demais despesas evolvidos.
Natureza jurídica do acordo celebrado entre a Autora e a 1ª Ré
Nos presentes autos, a Autora alegou haver com a 1ª Ré um contrato-promessa de trespasse do estabelecimento comercial.
O contrato-promessa traduz-se, segundo a sua definição legal, a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (art°404°, n°1 do C.C.).
Conforme os factos tidos por assentes, 1ª Ré celebrou, em 11/06/2012, com o E e F um acordo sobre o trespasse do estabelecimento de comidas G. Posteriormente, o E e F, com o consentimento da 1ª Ré, cedeu a sua posição contratual à Autora.
O teor do acordo de 11/06/2012 consiste no trespasse do estabelecimento de comidas G, tendo a 1ª Ré prometido a vende-lo e os E e F prometido a compra-lo. Na altura, os E e F pagaram à 1ª Ré o montante de HKD$500.000,00, a título de sinal, tendo estipulado ainda a segunda prestação seria paga na data da celebração do contrato definitivo.
Portanto, através desse acordo, os contraentes ficam vinculados com a obrigação de prestar, isto é, a obrigação da celebração do contrato definitivo, desde que estejam verificadas as condições acordadas, perante essa circunstância fáctica dúvidas não haverão que entre a Autora e a Ré foi estabelecido um contrato-promessa.
Objecto do contrato-promessa
A Autora alegou que o bem prometido a vender e a comprar é um estabelecimento comercial de restaurante, e não apenas o Estabelecimento de Comidas G, que na altura, apenas tinha licença de “take away and delivery”. Os Réus disseram que a Autora concordou a adquirir o estabelecimento acima referido nos moldes em que estava a funcionar, e nunca manifestou o desinteresse na sua aquisição se este não obtivesse a licença para o estabelecimento de comidas e bebidas.
Interesse saber qual é a vontade real dos contraentes na celebração do contrato-promessa.
Conforme o estipulado no acordo de 11 de Junho de 2012, consta, expressamente, que a 1ª Ré requereu em 09 de Fevereiro de 2012 a licença de estabelecimento junto das autoridades competentes (cláusula 3ª) e que o contrato definitivo será celebrado no prazo de um mês após a emissão da licença do estabelecimento (cláusula 4ª).
Não é muito claro qual tipo de licença a que se refere nesse acordo.
Mas, no acordo de 30 de Julho de 2012 celebrado entre a Autora e a 1ª Ré, está clarificado que a licença requerida pela 1ª Ré é a licença para estabelecimento de comidas e bebidas, acrescenta que esse estabelecimento está funcionar como estabelecimento da 1ª Ré de “take away e delivery”. Na sua cláusula 4ª estipula ainda que caso a licença não for autorizada, as partes acordaram na devolução dos valores pagos em singelo ou ….”
A par do preço e do prazo de pagamento, as partes deram ênfase especial quanto à licença para as comidas e bebidas, até que a celebração ou não do contrato definitivo dependa da emissão ou não da respectiva licença.
Perante esses termos contratuais, não restam dúvidas de que, para as partes, nomeadamente, o promitente-comprador, a licença para as comidas e bebidas é essencial para a conclusão do negócio.
Para além desses termos contratuais, discutiu-se na audiência sobre a vontade real dos promitentes-compradores.
Feita a prova, estão assentes que os promitentes-compradores originários, o que os E e F pretendiam era um restaurante pronto a funcionar e para iniciarem de imediato a respectiva exploração. Pretensão essa era do conhecimento do 2° Ré, pois este respondeu que o processo de licenciamento estava em fase de conclusão e que a licença seria emitida em breve. Vem comprovado ainda que os E e F decidiram concretizar o negócio de compra do estabelecimento de comidas G por causa dessa informação.
Perante esse acervo fáctico, é clarividente que para os promitentes-compradores, interessavam eles em adquirir uma restaurante e não um estabelecimento de comidas somente com licença de “take away e delivery”.
Dispõe-se o art°228° do C.C. que “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Comprovado está que a vontade do promitente-comprador era a aquisição do estabelecimento com a licença para as comidas e bebidas e que o promitente-vendedor também sabia a vontade real do promitente-vendedor. Daí se deduz que a vontade concertada pelas partes é o trespasse do Estabelecimento de comidas G, com a licença de comidas e bebidas, pois só assim se corresponde à vontade dos promitente-compradores de aquisição dum restaurante pronto a funcionar e faria sentido que a celebração do contrato definitivo está condicionada com a emissão da licença de restaurante.
Incumprimento pela 1ª Ré
A Autora imputa à 1ª Ré no incumprimento das obrigações assumidas, a saber, a obrigação da obtenção da licença para restaurante e a obrigação da entrega do estabelecimento à Autora para esta o poder explorar provisoriamente como take-away and delivery.
Em relação à licença de comidas e bebidas, defende a 1ª Ré que não assumiu a obrigação de obtenção da licença para comidas e bebidas, ficando adstrita apenas com a obrigação de meio e não a de resultado.
Como se sabe, na obrigação de meio, o devedor ficará obrigado a empregar as diligências necessárias para obter o resultado pretendido pelo credor enquanto na obrigação de resultado o devedor ficará adstrito a prestação dum determinado facto ou coisa.
No caso em apreço, está clausulado que “a 1ª Ré continuará a fazer tudo ao seu alcance para que o processo de licenciamento do “Estabelecimento” para estabelecimento de comidas e bebidas seja concluído no mais breve espaço de tempo possível, as partes expressamente acordam na devolução dos valores entretanto pagos em singelo, ou na alteração do contrato nos termos tidos por convenientes.” É certo que o devedor não está obrigado a obter efectivamente a licença mas apenas a fazer diligências necessárias para a emissão da licença.
Não obstante, o que a Autora imputa aos Rés não é apenas a falta de emissão da licença, mas a falta de diligência que a 1ª Ré se obrigou a realizar o que levou a suspensão de todo o processamento de licença e a consequente não emissão da licença até à data da acção.
Refuta ainda os Réus que os E e F tinham sido informados do estado em que se encontrava o processo de licenciamento pelo K, indivíduo encarregado pelos Rés para o tratamento da licença, entendendo que já cumpriu aquilo que se ficou obrigado nos termos do contrato.
Não concordamos com a conclusão retirada pelos Réus.
Na verdade, vem comprovado que E e F foram informados sobre a circunstância do processo de licenciamento e dos trabalhadores não residentes (resposta ao quesito 40°).
No entanto, não foram densificadas e concretizadas quais foram essas circunstâncias informadas à Autora, se fossem todas ou só uma parte, assim como se as “circunstâncias” estivessem fieis à verdade.
Então, o que foi realmente informada à Autora pelos Réus?
Vem comprovado que na fase de negociação, o 2º Réu disse aos E e F que o processo de licenciamento estava em fase de conclusão e que a licença seria emitida em breve, o que determinou os últimos a decisão da aquisição do “estabelecimento” (resposta ao quesito 8°). Duas semanas após da celebração do primeiro contrato-promessa, o 2° Réu reafirmou que a emissão da licença estava iminente (resposta ao quesito 12°). Posteriormente, já em Setembro de 2012, o 2° Réu afirmou, mais uma vez, que a licença estaria pronta em breve, sendo que o problema era o IACM exigir a alteração da porta exterior do estabelecimento, que era de correr e teria de passar a abrir para fora, mas que faria essa alteração rapidamente (quesito 30°).
Ou seja, o 2º Réu, quer na fase de pré-contratual, quer depois da celebração do contracto, sempre afirmou à Autora que a licença seria emitida em breve.
Na realidade, o IACM, já em Abril de 2012, comunicou à 1ª Ré várias insuficiências no processo de pedido de licenciamento do estabelecimento detectados pelo Corpo de Bombeiros e a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas, para que esta os suprisse, tendo o IACM, posteriormente, suspenso o processo por falta de respostas dos Réus, decisão essa foi comunicada à 1ª Ré por ofício de 23/08/2012. Mas a 1ª Ré só respondeu em 24/09/2012 (alínea N) a R) dos Factos Assentes).
Desses factos se revela que ao contrário do que afirmaram os Réus perante a Autora, a licença não estava pronta a emitir, nem antes nem depois da celebração dos dois acordos. Pois, já em Abril de 2012 a 1ª Ré tinha sido comunicada pela IACM os vícios e insuficiências que haviam de corrigir mas nada fez até à celebração dos dois acordos, não obstante, a 1ª Ré, através do 2° Ré informou aos E e F que a licença estava na fase de conclusão, e duas semanas depois da celebração do primeiro contrato, reforçando que a emissão da licença estava iminente. Em Setembro de 2012, sabendo que o processo de pedido de licenciamento estava suspenso por falta de acatamento das exigências solicitadas pelas entidades competentes, o 2° Réu continuou a afirmar perante a Autora que a licença seria emitida em breve. Como se vê que a 1ª Ré alegou sempre a licença seria pronta, escondendo as exigências solicitadas até a suspensão do processamento da licença, daí não é forçoso concluir que as circunstâncias do processo informadas pelos Réus à Autora não poderiam serem fiéis à verdade.
Por outro lado, os comportamentos pela 1ª Ré demonstram que esta incumpriu completamente a sua obrigação assumida perante a Autora. Durante a fase de negociação até a celebração dos acordos, a 1ª Ré não respondeu as exigências solicitadas pelas entidades competentes para a emissão de licença, nem nunca cumpriu as exigências legais após a celebração dos contratos.
Argumentam os Réus que desde a data de entrega da posse do estabelecimento, já é dever da Autora promover os necessários meios para que a licença pudesse ser emitida. Não se compreende esse raciocínio alegado pelos Réus, como bem se vê, a entrega da posse do estabelecimento foi ocorrida em 1 de Agosto de 2012, na sequência da celebração do acordo de 30/07/2012. Nesse acordo, a 1ª Ré comprometeu a continuar a fazer tudo ao seu alcance para que o processo de licenciamento seja concluído. Se o que pretenderam as partes fosse no sentido de a 1ª Ré não ficar desobrigada de empregar diligências para obter a licença com a entrega do estabelecimento pela 1ª Ré para a Autor, porquê é necessária a estipulação dessa cláusula.
Ademais, à Autora foi entregue a posse do estabelecimento, ainda não foi investida da titularidade do estabelecimento. Por uma razão lógica, quem tinha legitimidade para promover o processo de licenciamento junto das entidades competentes não poderia deixar de ser a própria 1ª Ré, nem foi alegado por esta que tinha conferido os seus poderes para a Autora. É absurdo dizer que ela deixou de ter obrigação de promover o processo de licenciamento com a entrega da posse do estabelecimento apenas com a licença de “take away and delivery”, enquanto o objecto mediato do contrato-promessa é o estabelecimento de comidas com a licença de restaurante.
Perante as razões acima iludidas, é de concluir que a 1ª Ré não cumpriu efectivamente essa obrigação.
Quanto ao incumprimento da obrigação da entrega do estabelecimento à Autora para esta o poder explorar provisoriamente como take-away and delivery até ao licenciamento do local como restaurante.
Conforme os factos tidos por assentes, o estabelecimento da 1ª Ré foi entregue e recebida pela Autora no dia 1 de Agosto de 2012.
Não está em causa a entrega do estabelecimento, mas se o estabelecimento entregue à Autora possui condições para ser explorado como take-away and delivery.
O problema coloca-se, particularmente, nas quotas dos trabalhadores não residentes. De acordo com a cláusula 2ª do contrato promessa de 10/06/2012, o estabelecimento inclui, entre outros, as quotas para trabalhadores.
De facto, o Estabelecimento de comidas G não tinha quotas para recrutamento dos trabalhadores não residentes. Os dois trabalhadores não residentes, H e I apenas foram autorizados a trabalhar no estabelecimento de bebidas G, no momento da celebração dos acordos citados.
No fundo, apesar de haver afirmado ter quotas dos trabalhadores não residentes pela 1ª Ré, a realidade é que não tinha nenhuma. O estabelecimento tinha dois trabalhadores não residentes a trabalhar mas eram trabalhadores autorizados para trabalhar no outro estabelecimento de bebidas G, pertencia à 1ª Ré.
Não discutiremos sobre a legalidade dessa operação. O problema surgiu porque a autorização desses dois trabalhadores foi concedida até 31 de Outubro de 2012.
É verdade, entre a Autora e Réus foi acordado que aquela teria de requerer as quotas necessárias para dois TNR (resposta ao quesito 45°). Mas, foi fixado prazo para esse efeito.
Para que o estabelecimento pudesse continuar a explorar com trabalhadores não residentes após Outubro de 2012, havia que requerer a renovação dos seus títulos.
Quem tinha a obrigação de a fazer é, sem dúvidas, a 1ª Ré.
Para já, mesmo com a entrega da posse do estabelecimento, o titular do estabelecimento de comidas G continua ser a 1ª Ré, a Autora não sendo proprietário do estabelecimento, não podia pedir as quotas para esse estabelecimento.
A entrega do estabelecimento pela 1ª Ré à Autora é considerada como antecipação do efeito do contrato definitivo, pois com a entrega, também foi antecipado o pagamento da segunda prestação cuja efectivação tinha sido estipulada para o momento da celebração do contrato definitivo.
Ao prometer o estabelecimento poder ser explorado como take away e delivery, até ao licenciamento, contra o pagamento de montante de HD$500.000,00, cabia à 1ª Ré a obrigação de garantir a efectividade da entrega, isto é, manter o estabelecimento ter condições necessárias para a exploração.
Prometendo a 1ª Ré a ceder junto com o estabelecimento as quotas dos trabalhadores não residentes, mas de facto, não haviam quotas para o estabelecimento cedido, mas apenas dois trabalhadores não residentes que se encontravam nele a trabalhar. Nestas circunstâncias, foi encontrada a solução de que a Autora requereu a quotas para esses dois trabalhadores. Não obstante desse acordo, a 1ª Ré não ficou dispensada com a obrigação que se vinculou, se não tivesse as quotas para transmitir à Autora, porque nunca tinha, ela, pelo menos, tinha que tomar diligência ou tratar do processamento da renovação dos TNR dos trabalhadores para que, no futuro, quando a Autora tivesse condições para pedir e obter as quotas, fossem transferidos para ela.
Como se sabe, hoje em dia, a exploração do estabelecimento de comidas depende, em muito dos trabalhadores, mormente, os não residentes. Nesse caso, a Autora só tomou a posse do estabelecimento da 1ª Ré em Agosto, sob o pedido desta, a assistência dos trabalhadores que conheciam o funcionamento do estabelecimento, é crucial e imprescindível para a Autora na fase inicial da exploração do estabelecimento. Sem esses trabalhadores, a entrega do estabelecimento está destituído de qualquer sentido.
Portanto, a entrega do estabelecimento não se refere apenas ao estabelecimento em termos físicos, mas também os outros elementos integradores do estabelecimento necessários para a sua exploração.
Provado está que a Autora exigiu em Setembro, por várias vezes, através do e-mail e pessoalmente, para resolver o problema dos blue-cards dos trabalhadores não residentes, os Réus não a trataram até o termo do prazo dos blue-cards.
Não tendo a 1ª Ré, sob insistência da Autora, diligenciado para a renovação da autorização relativas aos dois trabalhadores, o que forçou a Autora a encerrar o estabelecimento por falta de mão-de-obra, violando também a 1ª Ré essa obrigação.
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Não temos dúvidas que houve culpa por parte da 1ª Ré no incumprimento das duas obrigações acima referidas, visto que ela omitiu, completamente, a fazer as diligências para obter a licença do restaurante e para renovação dos blue-cards dos dois trabalhadores.
Aliás, nos termos do art°788°, n°1 , no incumprimento contratual, é presumida a culpa do devedor. Nos autos, não consta quaisquer factos que permite concluir que a falta de incumprimento não procedeu da sua culpa.
Incumprimento definitivo
Pretende a Autora a restituição da quantia prestada por ela aos Réus na sequência de resolução do contrato com fundamento do incumprimento definitivo por parte da 1ª Réu.
Urge aquilatar se assiste ao Autor o direito de resolução do contrato.
Dispõe-se o n°1 do art°426° do C.C., “É admitida a resolução do contrato fundado na lei ou em convenção”.
Segundo as jurisprudências e doutrina dominante, a resolução do contrato-promessa por via de lei, só pode ocorrer perante um incumprimento definitivo.
“Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.” (art° 801° do C.C.)
Segundo o acórdão do Tribunal da Segunda Instância, no processo 1245, de 24 de Fevereiro de 2000, “O incumprimento definitivo do contrato-promessa encontra-se pela verificação de situações (declaração antecipada de não cumprir, termo essencial, cláusula resolutiva expressa, impossibilidade da prestação e perda de interesse na prestação que a induzam.”
Em termos de direito comparado, decidiu-se no Acórdão de 13 de Julho de 2004, do STJ, in CJ II, p. 145, o seguinte:
“De qualquer modo, a resolução do contrato fundada na lei pressupõe que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento e a outra o tenha cumprido ou diligenciado pelo seu cumprimento.”
Assim, pode incluir-se na falta de cumprimento ou inexecução obrigacional lato sensu, para além da impossibilidade de cumprimento, o incumprimento definitivo propriamente dito, o incumprimento definitivo oriundo da conversão da situação de mora e a recusa categórica de cumprir.”
“A mora do devedor só dá ao credor o direito a resolver o contrato, por incumprimento definitivo, no caso de perda do seu interesse na prestação, ou no caso de esta não poder ser realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.”(cfr. Acórdão do T.R.P. de 19 de Janeiro de 1993, in CJ, Ano XVIII, Tomo I, 203)
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Interpelação admonitória
De acordo com o preceituado no n°1 do art°797° do C.C., o credor tem direito a resolver o contrato se em consequência da mora do devedor, perder aquele o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.
Da análise acima referida se resulta que a 1ª Ré entrou em mora no cumprimento da obrigação respeitante à licença de restaurante de que depende a celebração do contrato definitivo e da obrigação de entrega do estabelecimento em funcionamento, cabe averiguar se a mora se tinha sido convertido em incumprimento definitivo.
Dos factos considerados provados se deduza que a Autora tentou, sem êxito, entrar em contacto, por várias vezes, com os Réus para resolver o problema da licença dos trabalhadores. A Autora enviou por e-mails de 5/09/2012 e 11/09/2012, ao 2ª Réu e ao seu advogado, solicitando aos Réus para resolver o problema da licença e da renovação da autorização dos trabalhadores não residentes (alínea M) dos Factos Assentes).
Portanto, houve interpelação por parte da Autora para cumprimento dessas obrigações.
Para que haja interpelação admonitória, é necessária a fixação dum prazo certo ao promitente faltoso para o cumprimento da obrigação com a advertência de resolução do contrato caso não for cumprido dentro do prazo concedido.
Sobre o requisito da interpelação admonitória, decidiu-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de Maio de 2010, processo 1847/05, “Ora, tem-se como pacífico o entendimento que, para produzir os efeitos de incumprimento e resolução estabelecida na norma, a interpelação admonitória, deve, além de fixar um prazo razoável para o cumprimento, informar com clareza que a inexecução da prestação dentro desse prazo terá como consequência ter-se a mesma como definitivamente cumprida, isto é, deve conter uma intimação clara e inequívoca para cumprir sob pena de ser ter como verificado o incumprimento definitivo.”
No caso vertente, provado está que em Setembro de 2012, o 2° Réu deslocou ao estabelecimento prometendo resolver todos os problemas quando e que a licença estaria pronta em breve.
Nessa ocasião, a Autora disse ao 2° Réu se até 31 de Outubro não fosse emitida a licença ou se não fossem renovados os blue cards dos trabalhadores, seria forçada a encerrar o estabelecimento e poria termo ao contrato. Mas, os Réus continuaram a fugir aos contactos da Autora e não conseguiam tratar da renovação dos blue cards, a Autora reiterou essa intenção, por várias vezes, aos Reus (resposta aos quesitos 31° a 34°).
Depois da primeira interpelação por e-mail para cumprimento das obrigações, a Autora interpelou, por várias vezes, aos Réus, para fazer diligências tanto para a emissão da licença de restaurante como para a renovação da autorização dos trabalhadores não residentes, tendo, para o efeito, fixado o prazo termo o dia 31 de Outubro de 2012, com a advertência de considerar o contrato terminado. Essas comunicações, apesar de ser orais, têm o valor de interpelação admonitória.
Afigura-se razoável que o prazo concedido pela Autora à 1ª Ré. Não obstante de ser pouco mais de um mês, a verdade que a renovação dos trabalhadores não residentes era eminente, pois, a 1ª Ré sabendo bem que a respectiva autorização seria terminada no dia 31 de Outubro de 2012, sem os trabalhadores a tempo inteiro, é muito difícil senão impossível para a Autora manter o estabelecimento em funcionamento. Aliás, a renovação deveria sempre ser processada antes do termo do prazo concedido.
Ademais, conforme os factos assentes, mesmo com a advertência, os Réus não resolveram os problemas, nem nunca cumpriu as exigências legais solicitadas pelo IACM para o funcionamento do estabelecimento.
Assim, decorrido o prazo razoavelmente concedido pela Autora sem que a 1ª Ré mostrasse ter realizado qualquer diligência no sentido de cumprimento da obrigação a ela devidas, há de considerar a mora convertida em incumprimento definitivo.
Verificada está o incumprimento definitivo por parte da 1ª Ré, assim, assistirá à Autora o direito de resolução do contrato, o que foi realizado pela Autora por carta de 12 de Janeiro de 2013 (fls. 95 e 96), entregue a mão aos 1ª e 2° Réus.
Consequência do incumprimento definitivo
Determinado está que o contrato poderá ser resolvido por falta de cumprimento culposa por parte da 1ª Ré, abordamos qual é a sua consequência.
A Autora reclama a restituição a quantia de HKD1.000.000, correspondente ao dobro do sinal prestado, mais a importância de HK$450.000,00, quantia entregue pela Autora à 1ª Ré como antecipação do pagamento e os montantes das dívidas dos Réus pagas pela Autora, no montante de MOP$48.347,40.
Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, tem o credor para além de resolução do contrato, o direito de exigir a restituição da prestação que tiver prestado por inteiro.
Por outro lado, dispõe-se o art°787º do C.C. que caso a obrigação não seja cumprida o devedor faltoso torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
Mas, quanto ao destino do preço pago pelos contraentes, é de ter presente ainda a disciplina prevista no art°436° do C.C.M..
Segundo essa norma, “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.”
Ficou apurado que a Autora entregou a 1ª Ré o valor de HK$500.000,00, a título de sinal e a quantia de HKS450.000,00, a título de antecipação do pagamento do preço, assim, perante o incumprimento definitivo e culposo da obrigação pela 1ª Ré e, ao abrigo do preceito supra transcrito, tem a Autora o direito de exigir da 1ª Ré o dobro do sinal pago e a restante quantia prestada em singelo, atingindo, no total, HK$1.450.000,00.
No que diz respeito à indemnização das dívidas contraídas pela 1ª Ré até ao Julho de 2012 e pagas pela Autora.
Na petição inicial, a Autora alegou ter retido a quantia de HKD50.000,00 uma parte da segunda prestação que devia pagar à 1ª Ré conforme o aditamento de 30/07/2012, para fazer compensação das dívidas que 1ª Ré ainda não pagou aos seus fornecedores antes da entrega da posse.
Segundo esse raciocínio da Autora, com a compensação, sendo o valor da dívida inferior à quantia retida, não deverá haver mais danos, pois as dívidas, embora da responsabilidade da 1ª Ré, foram pagas pela Autora com o dinheiro que esta deveria pagar àquela. Assim, só formulou o pedido de indemnização correspondente ao dobro do sinal pago e da quantia da segunda prestação, no montante de MOP$1.547.250.00 (HKD1.500.000,00 x 1.0315).
Mas, na alegação de direito, a Autora alterou a estratégica, não falando mais da compensação, pretendendo agora a indemnização das dívidas pagas mais a restituição das prestações no montante de HKD1.450.000,00.
Porém, os factos carreados dos autos e seleccionados para a base instrutória não suporta nem da primeira nem da segunda solução pretendida pela Autora. Por o raciocínio exposto pela Autora na petição inicial, não foi seleccionado facto sobre o pagamento das dívidas pela Autora, por um lado, e por outro lado, também não foi alegado na p.i. factos sobre a Autora pagou as respectivas dívidas com tal HKD50.000,00, assim, nem é possível, para efeito da pretendida compensação, a selecção de facto sobre essa matéria.
De qualquer maneira, o facto de pagamento das dívidas não foi seleccionado para a base instrutória cuja decisão não foi objecto de reclamação nem foi ordenado o seu aditamento nos termos do art°553°, n°2, f) do C.P.C..
Não obstante disso, por esta instância não ter poderes para suprir tal omissão nesta fase processual, nada resta senão proferir sentença de acordo com a matéria dada como assente.
Assim, embora ficassem provadas as dívidas da 1ª Ré aos fornecedores, não está provado que o efectivo pagamento destas dívidas pela Autora, ou seja, o efectivo dano para a Autora, assim, essa pretensão da Autora não poderá deixar de improceder.
Responsabilidade dos 2° e 3ª Réus
Para além da 1ª Ré, exige a Autora que os 2° e 3ª Réus, como sócios da 1ª Ré se responsabilizem solidariamente com esta pelas indemnizações reclamadas, recorrendo à figura de desconsideração da personalidade jurídica da 1ª Ré ou ao instituto de enriquecimento sem causa.
Desconsideração da personalidade jurídica da 1ª Ré
A figura da desconsideração da personalidade jurídica não está consagrada na nossa lei, nem havendo uma definição completa sobre a desconsideração da personalidade jurídicas.
Contudo, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais tem sido abordado e discutidos nas doutrinas e jurisprudências recentes.
Assim, disse Pedro Cordeiro, “A desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva, imposta pelos ditames da boa fé, se traduz no desrespeito pela separação pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros. Nos casos de desconsideração o que se passe é que a própria sociedade (pessoa colectiva) se desvia da rota que o ordenamento jurídico que lhe traçou, optando por um comportamento abusivo e fraudulento que não pode ser tolerado na utilização funcional da sociedade ou de que aquela conduta não é substancialmente da sociedade mas dos seus sócios (ou vice-versa). A sociedade é, assim, utilizada para mascarar uma situação, ela serve de véu para encobrir uma realidade.” (in A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais.)
“Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva. Este abrange o abuso da personalidade e o abuso da responsabilidade limitada. A desconsideração da personalidade jurídica só deverá ser invocado quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.” ( Acórdão da Relação de Porto, de 25/10 / 2005, in www.dgsi.pt)
“Os casos mais frequentes de utilização abusiva da personalidade jurídica que podem justificar a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades são: o do sócio que mistura o seu património pessoal com a da sociedade, defendendo-se perante terceiros com a imitação da sua responsabilidade na sociedade; o dos sócios que mantém a sociedade subcapitalizada, em relação ao volume dos negócios que a envolvem, transferindo assim para os credores os riscos da empresa; e o caso dos trabalhadores que é transferido de uma sociedade para outra dentro de mesmo grupo (continuando aquele a desempenhar as mesmas funções no mesmo local) com o intuito de se libertarem das obrigações e dos compromissos que tinham para com este. Nestes casos é de admitir a “desconsideração da personalidade jurídica”, mas em termos excepcionais e apenas nos casos em que a utilização de personalidade jurídica viloa as regras da boa fé” ( Ac. de Relação de Lisboa de 05/07/2000 in www.dgsi.pt.)
“Todas entendem que a desconsideração significa uma derrogação do princípio geral da separação, que só pode admitir-se a título excepcional, para certos casos concretos. A desconsideração consiste, na verdade, numa correcção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos actos que, pelo seu carácter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que, excepcionalmente, devem obrigar outras pessoas (ou outros patrimónios.)
Porém, a sua admissibilidade resulta do ordenamento jurídico na sua globalidade e em particular das ideias contempladas no princípio do abuso de direito.” (cf. Acórdão de STJ, de 26 de Junho de 2007)
A desconsideração da personalidade jurídica assenta na ideia da utilização abusiva da personalidade jurídica o que conduz o seu levantamento e, muitas vezes, levar a responsabilização pelos actos praticados sob a veste da pessoa colectiva, directamente pelos seus sócios.
A desconsideração tem o carácter excepcional, pois só em caso excepcional é que deve derrogar o princípio fundamental de separação entre as sociedades e os sócios, com particular reflexão na área do património.
Os pressupostos fundamentais da desconsideração são o abuso objectivo de personalidade jurídica e o domínio.
No caso sub judice, os poucos factos senão indícios alegados pela Autora não se permite concluir que estamos perante um caso de abusiva utilização de personalidade jurídica.
Como se deixamos referido acima, o objecto de trespasse é um estabelecimento comercial titulado por uma sociedade comercial, ora 1ª Ré, em que os 2° e 3ª Réus são sócios. Atenta a qualidade assumida pelos Réus, é natural, como se acontece noutros casos, a intervenção do 2° Réu, como seu administrador, para praticar os actos em nome da pessoa colectiva. Os actos praticados pelo representante da sociedade colectiva produzirão efeito na esfera jurídica desta.
Na realidade, dos bens integrados no estabelecimento de comidas G, o motociclo está registado em nome do 2° Réu e o local onde se instalou o estabelecimento foi arrendado também em nome pelo 2° Réu, em vez da própria 1ª Ré. Mas não foi alegado nem provado a razão pela qual os Réus optaram ou decidiram adoptar por esse modo. Uma coisa é certa, segundo as doutrinas e jurisprudência, para justificar a intervenção da figura da desconsideração da personalidade jurídica, com a derrogação da separação da sociedade e dos sócios, é requisito essencial a utilização abusa da sociedade. Significa que tais sociedades sejam utilizadas para prosseguir finalidades contrárias àquelas que o ordenamento jurídico tem em vista ao criar tais instituto.2
Nesse caso em concreto, não obstante da confusão da domínio e da titularidade desses bens, esses bens são considerados como pertencentes à 1ª Ré, não existem factos que demonstram o 2° Réu recusou a entrega do bem ou alegou o seu direito sobre o local, alegando a posição individual do sócio e a autonomia patrimonial entre ele e a sociedade.
Outro facto alegado para Autora reporta-se ao sinal pago pela Autora foi, sob a indicação do 2° Réu, depositada na conta bancária titulada pelo 2° e 3ª Réus e a quantia da segunda prestação foi entregue em dinheiro.
Não foi apurada a razão de transferência do preço recebido pela 1ª Ré na conta individual das 2° e 3ª Réus, nem se o dinheiro entrou, efectivamente, na esfera jurídica desses Réus. Não afastamos, em absoluto, a hipótese que esse poderia ser acto de mistura do património da sociedade com o património dos sócios. Mas, para chegar a essa conclusão, carecem de mais factos para clarificar a situação, o mero depósito na conta bancária é obviamente insuficiente. Nem a entrega do dinheiro de HK$450.000,00, como segunda prestação, poderá ser considerado como acto abusivo. Pois nem sequer ficasse provado à quem foi entregue o dinheiro, aliás, sendo os 2º e 3ª Réus, sócios da 1ª Ré, é tão normal quem negociou com uma sociedade entrega o dinheiro ao seu representante, é completamente descabido dizer que existe utilização abusiva.
Outro argumento da Autora consiste no pedido reconvencional formulado pelos Réus para ressarcimento das rendas e despesas pagas pelo 2° Réu numa acção de despejo. À primeira vista, e conforme os factos alegados pelos Réu, não parece que todos os Réus têm interesse processual e legitimidade para essa pretensão reconvencional, analisarem pormenor adiante.
De qualquer maneira, a formulação duma pretensão em colectivo e não em nome individual poderá ser apenas uma falha de técnica, o que per si não implicará que os três Réus consideram indistintamente o património da 1ª Ré com o dos restantes Réus.
Pelo exposto, não se entende no presente caso justifica a desconsideração da personalidade jurídica da 1ª Ré e a derrogação do princípio de autonomia da pessoa colectiva e aqueles que constituem o seu substrato pessoal, não podendo, como pretendeu a Autora, a imputação aos 2° e 3ª Réus, enquanto sócios da 1ª Ré, a responsabilidade pelas dívidas desta.
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Enriquecimento sem causa
Por último, entende a Autora que os 2° e 3ª Réus deverãorestituir-lhe o montante de HKD$ 950.000,00, correspondente à importância prestada por aquela à 1ª Ré, mas foi depositado na conta titulada pelas ambas e lhe foi entregue em dinheiro com fundamento de enriquecimento sem causa.
Estatui-se o disposto do art°467° do C.C., “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”
Segundo o ensinamento do Antunes, in Obrigações em Geral, 7ª edição, Vol. I. pág. 467, o instituto de enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: i) que haja um enriquecimento de alguém; ii) que o enriquecimento careça de causa justificativa; iii) que ele tenha obtido à custa de quem requer a restituição (ou do seu antecessor).
Para que a acção de enriquecimento proceda, há ainda que apurar se a Autora não poderá ser indemnizada por outro meio.
Em relação à segunda prestação paga pela Autora à 1ª Ré na importância de HKD450.000,00, não consta dos factos assentes que essa quantia foi entregue nem ao 2° Réu nem a 3ª Ré, não se mostra o enriquecimento dessa quantia por parte desses dois Réus, cai por terra esse pedido.
Já quanto à quantia de HKD$500.000,00, correspondente ao sinal pago pela Autora à 1ª Ré, está assente que, sob solicitação do 2° Réu, essa quantia foi depositada directamente na conta bancária titulada pelo 2° Réu e 3ª Ré.
Ora, perante essa factualidade, sendo certo que não se verificou o requisito de falta de causa justificativa.
Segundo os factos assentes, foi por acordo estabelecido entre a Autora e 1ª Ré no âmbito dum contrato-promessa de trespasse é que aquela depositou tal quantia na conta bancária titulada pelos 2° e 3ª Réus, assim, nunca pode entender, tal como alegou a própria Autora, que o montante em jogo foi depositado sem qualquer causa. Bem ao contrário, o motivo que levou a Autora fez o depósito é justamente para cumprimento do contrato-promessa celebrado com a 1ª Ré, existindo, portanto, causa de deslocação do património da Autora para a conta bancária dos 2° e 3ª Réus.
Não consta dos autos o motivo que a 1ª Ré indicou o depósito dessa quantia directamente nas contas dos 2° e 3ª Réus, se ter por alguma relação fundamental que justifica o pagamento feito pela 1ª Ré aos 2° e 3ª Réu, não poderá dizer que esses ficaram enriquecidos por esse depósito.
Por último, mostra-se o pagamento pela Autora tem por base o cumprimento de contrato-promessa, invocando o incumprimento por parte da 1ª Ré, aquela poderá obter a sua restituição com o fundamento da resolução do contrato. Não poderá a Autora lançar mão ao instituto de enriquecimento sem causa, que só tem carácter subsidiário.
Nestes termos, não se demonstram reunidos os requisitos de enriquecimento do património nem de falta de causa justificativa, logo, não terá a Autora o direito de pedir aos 2° e 3ª Réus a devolução das quantias depositadas a título de enriquecimento sem causa.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido em relação aos 2° e 3ª Réus.
Reconvenção dos Réus
Reconvém os Réus contra a Autora o ressarcimento da indemnização no montante de MOP$361.554,73, correspondente ao valor das rendas entre Dezembro de 2012 e Abril de 2013 pagas pelo 2° Réu ao senhorio e das despesas suportadas relativas à reclamação do crédito, incluindo honorários de advogado e custas de parte.
A reconvenção formulada pelos Réus não poderá proceder, por seguintes razões:
Em primeiro lugar, a Autora pretende ser indemnizada do sinal e prestação paga por causa do contrato-promessa de trespasse celebrado com a 1ª Ré com fundamento de incumprimento. A relação material controvertida circunscreva-se à volta do contrato-promessa entre a Autora e a 1º Ré.
Na verdade, pretende a Autora a responsabilizar também os 2° e 3ª Réus pela mesma indemnização por via da desconsideração da personalidade jurídica ou enriquecimento sem causa. Aliás, como se julga improcedente a pretensão da Autora em relação aos 2° e 3ª Réus justamente por esses Réus serem apenas sócios da 1ª Ré, face ao princípio de separação da pessoa colectiva e os substracto pessoal que a constituem. Ou seja, a relação material controvertida na acção é apenas estabelecida entre a Autora e a 1ª Ré, sendo os 2° e 3ª Réus alheios à essa relação, logo, não podendo os 2º e 3ª Réus condenados solidariamente com a 1ª Ré. De mesmo modo, também não poderá o 2º Réu nem a 3ª Ré meter reconvenção contra a Autora.
Em segundo lugar, cumpra dizer que o pedido reconvencional se baseou noutro contrato de arrendamento celebrado entre o 2° Réu e o terceiro e não no próprio contrato-promessa entre a Autora e a 1ª Ré.
Em relação à 1ª e 3 ª Rés, não sendo esses Réus sujeitos desse contrato de arrendamento, eles carecem de legitimidade substancial para exigir a Autora para o pagamento de prejuízo eventualmente sofrido pelo 2° Réu por causa do contrato de arrendamento.
No que tocante ao próprio 2° Réu, a sua pretensão fundamenta-se no contrato de arrendamento estabelecido com um terceiro que tem por objecto o local onde se instalou o estabelecimento de comidas G, ou seja, que se traduz noutro facto jurídico, embora tenha alguma conexão com o contrato-promessa.
Ora, o pedido dos Réus não emerge do contrato-promessa de trespasse alegado pela Autora mas num contrato de arrendamento celebrado com um terceiro, o qual também não constitui fundamento à sua defesa. Logo, não poderá o 2° Réu exigir à Autora o ressarcimento dos danos nascidos nesse contrato.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido reconvencional formulado pelos Réus.
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IV) DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga parcialmente procedente a acção e, em consequência, decide:
- Condenar-se a 1ª Ré B, Lda., a pagar à Autora A Limitada a importância de HK$1,450,000.00 (um milhão e quatrocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), acrescida de juros à taxa legal supletiva, a contar da data da citação, e até integral cumprimento;
- Absolver-se os 2° Réu C e a 3ª Ré D do pedido formulado pela Autora;
- Absolver-se a Autora do pedido reconvencional formulado pelos Réus.
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Custas pelas partes na proporção dos decaimentos.
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Registe e Notifique.
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據上論結,本法庭裁定訴訟理由部份成立,裁決如下:
- 判處第一被告B有限公司向原告A有限公司支付HK$1,450,000.00 (港幣壹佰肆拾伍萬圓),附加自傳喚日起計以法定利率計算的遲延利息,直至完全支付為止;
- 裁定原告針對第二被告C及第三被告D提出的訴訟請求不成立,並開釋兩名被告;
- 裁定三名被告提出的反訴請求不成立,並開釋原告。
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訴訟費用由原告及被告按敗訴比例承擔。
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依法作出通知及登錄本判決。
Quid Juris?
O objecto do recurso consiste em saber se há ou não condições para accionar a figura de desconsideração da personalidade jurídica da 1ª Ré, no entendimento da Recorrente sim, enquanto os Recorridos defendem não.
A propósito desta questão o Tribunal fez uma análise exaustiva e coerente, com a qual concordamos na essencialidade, limitamo-nos agora acrescentar o seguinte:
- Como a própria Recorrente confessou nas suas alegações de recurso que a legislação macaense não prevê EXPRESSAMENTE esta figura no direito positivo, será uma ousadia defender esta figura na prática forense, sendo certo que não é de todo em todo repudiar a sua aplicação desde que estejam reunidos os respectivos pressupostos. O que está e causa, no fundo, é uma situação de abuso de direito sui generis, através de sociedade comercial de responsabilidae limitada.
- Nestes aspectos, é preciso ter factos que demonstrem que a 1ª Ré, ou o administrador da Ré ou terceiro utilizaram a figura da sociedade comercial, mormente a sua personalidade jurídica e a sua autonomia patrimonial para fugir à responsabilidade ou para prejudicar interesses legítimos de terceiros. No caso não encontramos nenhum facto provado com este sentido tal como Tribunal a quo afirmou:
“(…) A desconsideração da personalidade jurídica assenta na ideia da utilização abusiva da personalidade jurídica o que conduz o seu levantamento e, muitas vezes, levar a responsabilização pelos actos praticados sob a veste da pessoa colectiva, directamente pelos seus sócios.
A desconsideração tem o carácter excepcional, pois só em caso excepcional é que deve derrogar o princípio fundamental de separação entre as sociedades e os sócios, com particular reflexão na área do património.
Os pressupostos fundamentais da desconsideração são o abuso objectivo de personalidade jurídica e o domínio.
No caso sub judice, os poucos factos senão indícios alegados pela Autora não se permite concluir que estamos perante um caso de abusiva utilização de personalidade jurídica.
Como se deixamos referido acima, o objecto de trespasse é um estabelecimento comercial titulado por uma sociedade comercial, ora 1ª Ré, em que os 2° e 3ª Réus são sócios. Atenta a qualidade assumida pelos Réus, é natural, como se acontece noutros casos, a intervenção do 2° Réu, como seu administrador, para praticar os actos em nome da pessoa colectiva. Os actos praticados pelo representante da sociedade colectiva produzirão efeito na esfera jurídica desta.
Na realidade, dos bens integrados no estabelecimento de comidas G, o motociclo está registado em nome do 2° Réu e o local onde se instalou o estabelecimento foi arrendado também em nome pelo 2° Réu, em vez da própria 1ª Ré. Mas não foi alegado nem provado a razão pela qual os Réus optaram ou decidiram adoptar por esse modo. Uma coisa é certa, segundo as doutrinas e jurisprudência, para justificar a intervenção da figura da desconsideração da personalidade jurídica, com a derrogação da separação da sociedade e dos sócios, é requisito essencial a utilização abusa da sociedade. Significa que tais sociedades sejam utilizadas para prosseguir finalidades contrárias àquelas que o ordenamento jurídico tem em vista ao criar tais instituto.3
Nesse caso em concreto, não obstante da confusão da domínio e da titularidade desses bens, esses bens são considerados como pertencentes à 1ª Ré, não existem factos que demonstram o 2° Réu recusou a entrega do bem ou alegou o seu direito sobre o local, alegando a posição individual do sócio e a autonomia patrimonial entre ele e a sociedade.
Outro facto alegado para Autora reporta-se ao sinal pago pela Autora foi, sob a indicação do 2° Réu, depositada na conta bancária titulada pelo 2° e 3ª Réus e a quantia da segunda prestação foi entregue em dinheiro.
Não foi apurada a razão de transferência do preço recebido pela 1ª Ré na conta individual das 2° e 3ª Réus, nem se o dinheiro entrou, efectivamente, na esfera jurídica desses Réus. Não afastamos, em absoluto, a hipótese que esse poderia ser acto de mistura do património da sociedade com o património dos sócios. Mas, para chegar a essa conclusão, carecem de mais factos para clarificar a situação, o mero depósito na conta bancária é obviamente insuficiente. Nem a entrega do dinheiro de HK$450.000,00, como segunda prestação, poderá ser considerado como acto abusivo. Pois nem sequer ficasse provado à quem foi entregue o dinheiro, aliás, sendo os 2º e 3ª Réus, sócios da 1ª Ré, é tão normal quem negociou com uma sociedade entrega o dinheiro ao seu representante, é completamente descabido dizer que existe utilização abusiva.”
- É ideia assente defendida pela doutrina e jurisprudência: quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.
- Também é ideia assente que, para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.
A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem carácter subsidiário, pois só deverá ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.».
- Cite-se aqui o Ac. do STJ de 3-02-20094 em nome de direito comparado:
«Estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal.
Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.
A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem carácter subsidiário, pois só deverá ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.».
- Afirma-se também que o recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.
De entre elas avultam a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal. Em todas estas situações verifica-se que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.
A desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, envolve sempre a formulação de um juízo de censura e deve revelar-se ilícita, havendo que verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito. (Ac. do STJ de 26-06-2007).
- No caso, não encontramos estes pressupostos, nem os factos demonstrativos de abuso de direito, ou de instrumentallização da personalidade jurídica da 1ª Ré para fins ilícitos, o que determina a improcedência do recurso nesta parte.
- Do mesmo modo, não tecemos mais considerações nesta ordem na eventual aplicação do artigo 251º do Cod. Comercial (cfr. 249º, concretamente), visto que este não foi expressamente invocado pela Recorrente, nem encontramos pressupostos fácticos susceptíveis de accionar tal normativo.
Pelo expendido, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida.
*
Síntese conclusiva:
I - Quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.
II – Como no caso sub judice não se encontram os pressupostos de facto necessários a accionar a figura de desconsideração da personalidade jurídica, nem existem factos demonstrativos de abuso de direito, ou de instrumentallização da personalidade jurídica da 1ª Ré para fins ilícitos, o que determina a improcedência do recurso nesta parte.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 20 de Junho de 2019.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Maria Dias Azedo
1 Processo redistribuído em 11/04/2019, conforme a deliberação do CMJ, de 04/04/2019
2 Pedro Cordeiro, ob ci, pag. 78
3 Pedro Cordeiro, ob ci, pag. 78
4 P. 08A3991 - Paulo Sá.
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2017-255-A –desconsideração-personalidade 40