Processo n.º 395/2019 Data do acórdão: 2019-6-27
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– condenação civil
– obrigação solidária
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. Sendo solidária a condenação indemnizatória civil da arguida, não faz sentido discutir, em sede do recurso interposto por ela do acórdão condenatório, a sua quota de responsabilidade no pagamento da quantia indemnizatória fixada em total nesse aresto. Trata-se das regras de jogo do próprio instituto de obrigação solidária (cfr. maxime os art.os 505.o, n.o 1, 511.o e 517.o do Código Civil).
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 395/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
8.a arguida B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 2842 a 2926v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-18-0296-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados:
– o 1.o arguido A, como autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado (contra a ofendida C), p. e p. pelo art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do Código Penal (CP), em quatro anos de prisão, como co-autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado (contra a ofendida D), em sete anos de prisão, e como autor mediato de dois crimes consumados de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art.o 3.o, n.o 2, da Lei n.o 2/2006, em dois anos e seis meses de prisão e em quatro anos e seis meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico destas penas parcelares com as penas já aplicadas nos Processos Comuns Colectivos n.os CR4-16-0474-PCC e CR2-17-0204-PCC, finalmente em vinte e um anos de prisão única, para além de ficar condenado a pagar diversas quantias indemnizatórias;
– e a 8.a arguida B, como co-autora material de um crime consumado de receptação, p. e p. pelo art.o 227.o, n.os 2 e 5, do CP, em cinco meses de prisão, com suspensão da sua execução por três anos e seis meses, sob condição de pagar mensalmente, durante o período da suspensão da pena, dez mil patacas, como prestações mensais por conta da quantia indemnizatória total pela qual ficou condenada a pagar solidariamente (com o 1.o arguido e a 2.a arguida) à ofendida D, sem prejuízo de esta poder intentar acção executiva civil para pedir pagamento de toda a quantia indemnizatória (com respectivos juros) não paga.
Inconformados, vieram esses dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou a 8.a arguida, na sua essência, e rogou o seguinte na motivação apresentada a fls. 2992 a 300v dos presentes autos correspondentes:
– a condenação dela como autora de um crime de receptação viola o princípio de in dubio pro reo, pelo que deve ser ela absolvida;
– até porque os valores pecuniários em causa nos autos ainda não constituem coisa objecto da receptação, pois não há provas nos autos a demonstrar que as quantias pecuniárias da própria recorrente tenham sido obtidas através de acto ilícito, ou tenham sido ilícitas;
– aliás, a situação da recorrente (i.e., a sua conduta, as circunstâncias do caso e o enquadramento jurídico dos factos) é idêntica à dos 6.o e 7.o arguidos já absolvidos, pelo que ela deve ser absolvida penalmente também, e também civilmente;
– e sempre se poderia dizer que a decisão condenatória civil dela não poderia ser mantida (devido ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada), por falta da prova da ilicitude da conduta dela, e falta da prova do nexo de causalidade, porque sobretudo os danos da ofendida foram causados directamente pelo 1.o arguido;
– e fosse como fosse, não deixaria de haver excesso na medida da pena, e na determinação do montante de indemnização civil a cargo dela, devendo, pois, pelo menos substituída a pena de prisão por multa, e reduzida a quantia indemnizatória a seu cargo a um montante não superior a cinquenta mil patacas.
Enquanto o 1.o arguido alegou, na sua essência, e rogou o seguinte na motivação apresentada a fls. 3002 a 3005 dos presentes autos:
– há erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal sentenciador, nos factos respeitantes à ofendida D, pelo que deve ser ele absolvido do crime de burla e do crime de branqueamento de capitais relativamente a essa ofendida;
– e fosse como fosse, seria excessiva a medida de todas as suas penas parcelares e única de prisão, devendo ele passar a ser condenado em pena única final de dezasseis anos de prisão.
Aos recursos da arguida e do arguido ora recorrentes, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 3022 a 3027 e a fls. 3028 a 3031 dos autos, respectivamente, no sentido igual de manutenção do julgado.
Aos dois recursos, respondeu a ofendida assistente D a fls. 3044 a 3052, pugnando pela improcedência dos mesmos recursos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 3083 a 3086, opinando pelo não provimento dos dois recursos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 2842 a 2926v, cuja fundamentação fáctica, probatória e jurídica se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Desde já, é de observar que a argumentação concretamente tecida pela 8.a arguida na sua motivação para sustentar a existência da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” não tem a ver propriamente com este vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), mas sim com a eventual verificação do vício de erro notório na apreciação da prova (quando alegou ela sobretudo que a sua condenação como autora de um crime de receptação viola o princípio de in dubio pro reo) e também com a questão de enquadramento jurídico dos factos.
Por outra banda, invocou o 1.o arguido o vício de erro notório na apreciação da prova.
Assim, é de ver primeiro se o Tribunal sentenciador cometeu este vício, previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel.
Na verdade, esse Tribunal já explicou bem o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos, nas páginas 110 a 138 do texto do seu acórdão, a fls. 2896v a 2910v dos autos.
Quanto à decisão absolutória dos 6.o e 7.o arguidos, esse Tribunal também já a explicou, de modo convincente, quer a nível de factos (no 1.o parágrafo da página 136 e nos 2.o e 3.o parágrafos da página 137 do mesmo acórdão, a fls. 2909v e 2910) quer a nível de direito (nos penúltimo e antepenúltimo parágrafos da página 150 desse acórdão, a fl. 2916v). E explicou também de modo convincente a sua livre convicção (no 1.o parágrafo da página 138 desse aresto, a fl. 2910v) conducente ao entendimento de condenação da 8.a arguida ora recorrente como autora material de um crime de receptação do art.o 227.o, no 2, do CP (cfr. também o teor do 2.o parágrafo da página 152 desse acórdão, a fl. 2917v, a nível da fundamentação da decisão de direito), sendo certo que este TSI concorda com as conclusões tiradas, também de modo razoável e convincente, pelo Tribunal recorrido, escritas no 2.o parágrafo da página 150 do acórdão recorrido, a fl. 2916v.
Daí que a condenação da 8.a arguida pela prática do referido crime de receptação do art.o 227.o, n.os 2 e 5, do CP não violou o princípio de in dubio pro reo, sendo acertada a qualificação jurídico-penal, feita pelo Tribunal recorrido, dos factos provados relativamente a este delito penal, porquanto a matéria de facto já dada por provada em primeira instância integra perfeitamente a autoria material, por essa arguida, desse crime de receptação.
Assente esta condenação penal dela, assente fica também a sua condenação civil por que vinha condenada solidariamente, com o 1.o arguido e a 2.a arguida, a favor da ofendida D, porquanto a matéria de facto provada sustenta bem todos os requisitos legais dessa sua condenação civil solidária.
Sendo solidária essa condenação civil dela, não faz sentido discutir, nesta sede recursória, a sua quota de responsabilidade no pagamento da quantia indemnizatória fixada em total no acórdão recorrido. Trata-se das regras de jogo do próprio instituto de obrigação solidária (cfr. maxime os art.os 505.o, n.o 1, 511.o e 517.o do Código Civil). Improcede, pois, o pedido de redução do montante indemnizatório civil por que vinha ela condenada solidariamente no aresto recorrido.
Quanto à medida concreta da pena, é de louvar a decisão recorrida, sem mais indagação por ociosa (cfr. o art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP), sendo de salientar que a pena de cinco meses de prisão por que vinha condenada a 8.a arguida ora recorrente não pode ser substituída por multa (nos termos do art.o 44.o, n.o 1, do CP), dada a gravidade das circunstâncias fácticas (por estarem em causa montantes avultados de dinheiro) do crime de receptação por ela cometido, as quais reclamam por isso as mais elevadas necessidades da prevenção geral deste tipo de delito.
Naufraga, pois, in totum, o recurso da 8.a arguida.
No tocante ao 1.o arguido, pela análise das coisas acima feita, é de decair necessariamente a arguição, por ele, do vício de erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido, no concernente aos factos relativamente à ofendida D.
Por fim, no tangente à medida concreta das penas parcelares de prisão por que vinha ele condenado no presente processo penal e da pena única de prisão achada finalmente no acórdão recorrido, é de louvar também a decisão recorrida nesta parte em causa, sem mais indagação por desnecessária (cfr. o art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não providos os recursos.
Custas do recurso do 1.o arguido a cargo deste, com três UC de taxa de justiça e três mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Custas do recurso da 8.a arguida a cargo desta, com seis UC de taxa de justiça.
Macau, 27 de Junho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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