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Processo n.º 258/2019
(Autos de recurso em matéria cível)

Data: 06 de Junho de 2019

ASSUNTOS:

- Divórcio litigioso e falta de factos principais

SUMÁRIO:

Quando a causa de pedir de divórcio litigioso consiste em violação pela parte contrária de deveres conjugais (dever de respeito), à Autora cabe invocar e provar os factos integradores da violação de tal dever conjugal, o simples facto de apresentar queixa à polícia não satisfaz esta exigência, por faltar substância demonstrativa de tal violação. Na falta de factos principais para fundamentar o pedido formulado pela Autora, é de julgar improcedente a pretensão da mesma, mantendo-se assim a decisão recorrida.

O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 258/2019
(Autos de recurso em matéria cível)

Data : 06 de Junho de 2019

Recorrente : A (A) (Autora)

Recorrido : B (B) (Ré)

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   Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I - RELATÓRIO
    A (A), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 29/10/2018, que julgou improcedente o pedido de divórcio dela veio, em 08/01/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 96 a 109, tendo formulado as seguintes conclusões :
     A) As provas não têm forçosamente de criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível; o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida.
     B) Da factualidade provada resulta clara e evidente a violação do dever de respeito por parte do Réu, o que se depreende das agressões de que a Recorrente foi vítima e pelas quais apresentou as queixas-crime supra mencionadas, suficientes que são para permitir ao tribunal formar a sua livre convicção no sentido da verificação da factualidade subjacente (as agressões e, por conseguinte, a conclusão de direito da violação do dever de respeito por parte do cônjuge agressor), segundo as regras da experiência. É o que a lei admite, ao sufragar a prova por presunção judicial.
     C) Os factos que o tribunal (em face da revelia do Réu) veio a dar por não provados, — nomeadamente os que se relacionam com as várias queixas-crime apresentadas, — poderiam (tivesse o Réu contestado) vir a ser admitidos por acordo, em resultado da falta ou inidoneidade de impugnação e ou excepção, e ou em resultado da repartição do ónus da prova (art.º 437.° do Código de Processo Civil).
     D) Portanto, in casu, ao não admitir a comprovação de factos alegados pela Recorrente, o tribunal a quo veio a coloca-la em posição processualmente mais exigente do que a que ocorreria, do ponto de vista da lei adjectiva, naquela situação.
     E) Pode mesmo defender-se que em tais casos (falta de impugnação por parte do Réu revel) a prova deve contentar-se com um nível indiciário, de algum modo à semelhança da suficiência meramente indiciária legalmente prevista no caso dos procedimentos cautelares.
     F) Quando se está perante uma relação conflituosa de anos, e a interessada comprova, através dos respectivos registos, que apresentou várias denúncias pela prática de ilícitos criminais da autoria do cônjuge, e de que aquela foi vítima, decorre da experiência comum que, com elevado grau de certeza, — ou constituindo o que alguma doutrina (mormente no seio dos sistemas de Common Law) definem por probabilidade prevalecente, — tais factos ocorreram, sendo portanto de dar por provada a repetida violação de deveres conjugais — desde logo, e se não outros, o dever de respeito, — por parte do cônjuge denunciado.
     G) Quando é certo que as denúncias foram feitas, e que a Recorrente teve mesmo de recorrer ao auxílio de assistentes sociais, a conclusão lógica e necessária é a de que algo estava verdadeiramente mal na relação do casal, — de que é de per se suficientemente demonstrativa a própria proposição e pendência da acção especial de divórcio litigioso.
     H) Manter o vínculo matrimonial em tais circunstâncias constitui um mal injustificado, uma espécie de pena civil, que em lugar algum o legislador previu nem quis impor.
     I) Acresce que, a entender o tribunal a quo não estar demonstrada a violação de deveres conjugais por parte do Réu, (vide a douta fundamentação da decisão a quo), em face da matéria provada poderia, e deveria, então, fazer uso dos poderes inquisitórios que a lei lhe atribui; no mínimo, convidando a parte a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes, obrigação decorrente do princípio da cooperação (art.º 8.° do Código de Processo Civil), podendo mesmo ter ordenado fosse oficiado o Ministério Publico para esclarecer sobre o estado e fase dos processos de inquérito porventura iniciados na sequência das denúncias da Recorrente.
     J) E sendo certo serem os factos em questão categorizados como factos de que lhe é [ao juiz] lícito conhecer (uma vez que já inicialmente alegados pela Recorrente), incumbia ao Mtm.º juiz a quo, ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (art.° 6.°, n.º 3 do Código de Processo Civil).
     K) Não o tendo feito, o douto tribunal recorrido demitiu-se de uma das obrigações decorrentes do princípio do inquisitório, e nos limites do princípio da cooperação.
     L) Embora não existindo no nosso ordenamento jurídico norma semelhante à al. d) do art.° 1781.° do Código Civil português, correspondente ao art.º 1637.° do Código Civil de Macau, (a qual reza: «Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento»), julga-se que é nesse sentido que deve interpretar-se o contexto geral do instituto e do regime do divórcio também na RAEM, por aplicação do elemento actualista da interpretação jurídica.
     11) É o sentido para o qual caminha a generalidade dos ordenamentos das sociedades mais sofisticadas e avançadas, até pela inexorável influência da convergência de costumes e mentalidades, produto da globalização. Isto é, nas sociedades modernas, o casamento deixou ou tende a deixar de ser visto com o carácter de solidez ou perenidade que era tradição quase universal, passando a ser comummente aceite que a falência da relação é por si só fundamento suficiente para a sua dissolução, a ponto de a simples incompatibilidade de feitios ser já reconhecida como causa legal para o divórcio em certas paragens.
     N) A douta sentença a quo incorreu em erro de julgamento, na apreciação e valoração da matéria de facto provada e na consequente decisão proferida, violando, nomeadamente, as normas supramencionadas.

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    Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
  III – FACTOS ASSENTES:
    A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
     - Autora e Réu casaram entre si em 28 de Setembro de 1998, na cidade de Chongqing da RPC;
     - Filhos da Autora e do Réu nasceram Un Wai I em 20.03.1996 e Un Kin Fai em 19.11.2004;
     - Em 25 de Outubro de 2016 a Autora apresentou queixa à Polícia de que no dia anterior o marido estava embriagado e começou a insultá-la temendo a Autora que viesse a ser agredida;
     - Em 27 de Janeiro de 2017 a Autora apresentou queixa na Polícia dizendo que no dia anterior foi agredida pelo Réu com uma caixa de lenços que lhe atirou à cabeça, tendo-lhe puxado os cabelos e apertado o pescoço;
     - Em 25 de Maio de 2017 a Autora apresentou queixa na Polícia dizendo que o Réu lhe tinha atirado um objecto da cozinha à cabeça e a tinha ferido;
     - A Autora não tem intenção de continuar a manter a relação matrimonial com o Réu.

* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
    Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
     A, do sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM nº XXXXXXX(8) e com endereço de contacto em Macau, no ..................,
     vem instaurar acção especial de divórcio litigioso contra
     B, do sexo masculino, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM nº XXXXXXX(3) e residente em Macau, no ……………………..
     Para tanto alega a Autora que entre si e o Réu foi celebrado casamento em 28.09.1998 em Macau. Em 2004, a Autora descobriu a relação extraconjugal do Réu, o qual começou a invocar sempre pretextos para discutir com ela. E por várias vezes, o Réu agrediu verbal e fisicamente à Autora e a Autora apresentou queixa à Polícia Judiciária. A Autora viveu permanentemente sob pressão e medo dos actos de agressão verbal e física que o Réu lhe infligiu por muitos anos. A Autora já não tem intenção de continuar a manter a relação matrimonial com o Réu.
     Conclui pedindo que seja decretado o divórcio entre a Autora e o Réu declarando-se este como único culpado.
     
     Realizou-se a tentativa de conciliação a que alude o artº 953º nº 1 do CPC, a qual se frustrou, pelo que o Réu foi citado para contestar o que não fez.
     
     Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.
     
     O Tribunal é o competente.
     O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
     As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
     Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
     
     Nestes autos apurou-se a seguinte factualidade:
     (…)
     
     Não se provou que:
     1) A Autora descobriu, em 2004, a relação extraconjugal do Réu, o qual começou a invocar sempre pretextos para discutir com ela;
     2) O Réu começou a agredir verbal e fisicamente a Autora, com frequência e sem nenhuma razão;
     3) Para manter a família em harmonia, a Autora não pediu ajuda junto da polícia, ou mesmo que o tenha feito, acabava por desistir do procedimento contra o Réu;
     4) Em 24 de Outubro de 2016, quando a Autora voltou para casa depois de jantar com um grupo de amigos após o serviço, o Réu agrediu-a verbalmente sem nenhuma razão, acusando-a de não ter vergonha e ter ido procurar outro homem em vez de voltar para casa, etc., bem como, tentou dar um murro à Autora, que felizmente não ficou magoada por se ter desviado;
     5) O caso da Autora foi acompanhado por assistente social do IASM, que para evitar nova ocorrência de violência doméstica, organizou o internamento da Autora no centro de abrigo de mulheres – Centro do Bom Pastor;
     6) Para poder passar o ano novo chinês com os filhos, a Autora regressou em 26 de Janeiro de 2017 do Centro do Bom Pastor para a casa, a fim de antecipar o jantar de reunião de família;
     7) O Réu, ao ver a Autora, para além de agredi-la verbalmente, atirou-lhe uma caixa de plástico de lenços de papel causando-lhe ferimentos na cabeça, puxou-lhe os cabelos e pegou com muita força no pescoço da Autora fazendo com que esta não conseguisse respirar;
     8) Depois, para cuidar do filho que estava doente, a Autora voltou a morar em casa;
     9) Em 24 de Maio de 2017, a Autora e o Réu entraram em conflito por questões de família e este atingiu, com uma panela que estava colocada na cozinha, o lado esquerdo da cabeça da Autora, causando-lhe ferimento no lado esquerdo da cabeça, na zona superior perto da orelha esquerda da mesma, a qual reportou o incidente de imediato à polícia para pedir ajuda (Anexo VIII);
     10) A Autora viveu permanentemente sob pressão e medo dos actos de agressão verbal e física, que o Réu lhe infligiu por muitos anos.
     
     A convicção do tribunal resultou dos documentos juntos aos autos a fls. 10 a 16 e que consistem na certidão de casamento, certidões de nascimento dos filhos e certidões de queixa.
     Relativamente aos factos dados por não provados não foi produzida prova que com a certeza jurídica necessária permita ao tribunal concluir pela respectiva veracidade.
     Relativamente à suposta relação extraconjugal do Réu em 2004 a única prova produzida foi da testemunha ouvida no sentido de que a Autora lhe tinha contado que em 2004 uma mulher lhe havia telefonado a pedir dinheiro para fazer um aborto porque estava grávida do marido e quanto às agressões a testemunha ouvida sem contextualizar em que data e onde refere que quando iam levar os filhos à escola viu a Autora com nodos negras e ferida na cabeça e que segundo a Autora tinha sido por o marido a ter agredido, pelo que, não é este depoimento suficiente para se dar por provada esta matéria uma vez que a testemunha sabe de ouvir dizer da Autora e o pouco que viu – as alegadas marcas de ter sido agredida – não diz quando para se saber se corresponde às agressões descritas nos autos.
     Quanto aos internamentos em centros de apoio à vítima de violência doméstica não é apresentada prova alguma o que seria bastante fácil através de relatório fornecido pelo serviços de acção social ou o depoimento da assistente social que acompanhou o caso.
     As queixas apresentadas na polícia e as certidões juntas provam apenas que a Autora apresentou queixa, mas não a veracidade dos factos objecto das mesmas.
     Razão pela qual o tribunal apenas deu por provados os factos indicados, não havendo prova com a certeza jurídica necessária do demais.
     
     Cumpre assim apreciar e decidir.
     De acordo com o disposto no nº 2 do artº 1628º do C.Civ. «o divórcio litigioso é requerido no tribunal por um dos cônjuges contra o outro, com algum dos fundamentos previstos nos artigos 1635º e 1637º».
     No caso dos autos a prova produzida permite-nos apenas saber que Autora e Réu casaram entre si, tiveram dois filhos e pela Autora por três vezes foi apresentada queixa contra o Réu por alegada violência doméstica, factualidade esta que não nos permite concluir no sentido de que haja violação de algum dos deveres conjugais por banda dos cônjuges.
     Destarte, não se provando nenhum dos fundamentos do divórcio invocados a presente acção apenas pode ser julgada improcedente.
     
     Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a acção improcedente porque não provada absolvendo-se o Réu do pedido de divórcio.
     
     Custas a cargo da Autora.
     Registe e Notifique.
     
     Macau, 29 de Outubro de 2018
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    Quid Juris?
    O Tribunal recorrido entende que não estão provados os factos intetradores da causa de pedir invocada pela Autora, consistente em violação conjugal pelo Réu, nomeadamente a violação do dever de respeito, enquanto a Recorrente/Autora defende que sim.
    Vamos ver quem tem razão
    
    O artigo 1635º (Violação culposa dos deveres conjugais) do CCM dispõe
     1. Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum.
     2. Na apreciação da gravidade dos factos invocados, deve o tribunal tomar em conta, nomeadamente, a culpa que possa ser imputada ao requerente e o grau de educação e sensibilidade moral dos cônjuges.
    Começando pelos factos provados. O Tribunal a quo fixou os seguintes, entre outros, factos relevantes:
     - Em 25 de Outubro de 2016 a Autora apresentou queixa à Polícia de que no dia anterior o marido estava embriagado e começou a insultá-la temendo a Autora que viesse a ser agredida;
     - Em 27 de Janeiro de 2017 a Autora apresentou queixa na Polícia dizendo que no dia anterior foi agredida pelo Réu com uma caixa de lenços que lhe atirou à cabeça, tendo-lhe puxado os cabelos e apertado o pescoço;
     - Em 25 de Maio de 2017 a Autora apresentou queixa na Polícia dizendo que o Réu lhe tinha atirado um objecto da cozinha à cabeça e a tinha ferido;
    Ora, efectivamente estes factos considerados assentes não são capazes de esclarecer o conteúdo da violação de dever conjugal de respeito, pois a apresentação pela Autora de queixa à PJ não representa em si a violação de deveres conjugais, faltando substância. As provas podiam ser produzidas de uma forma melhor, de modo a convencer o Tribunal que tal dever fosse efectivamente violado pelo Réu. Mas não foi assim que aconteceu.
    Um outro facto que, porventura, permitisse “salvar” um pouco neste aspecto, mas não se sabe por que razão é que não foi produzida prova. Estamos a referir à alegação de que o Instituto de Acção Social chegou a intervir neste caso e prestava ajuda à Autora conforme o teor do artigo 9 da PI. Mas a prova é ZERO neste ponto! Nem relatório nem outros elementos foram juntos aos autos. Tem razão quando o Tribunal a quo afirmou:
     Quanto aos internamentos em centros de apoio à vítima de violência doméstica não é apresentada prova alguma o que seria bastante fácil através de relatório fornecido pelo serviços de acção social ou o depoimento da assistente social que acompanhou o caso.
     As queixas apresentadas na polícia e as certidões juntas provam apenas que a Autora apresentou queixa, mas não a veracidade dos factos objecto das mesmas.
    Não há omeletes sem ovos!
    Como a Autora/Recorrente não cumpriu o ónus de prova, nem veio impugnar a matéria de facto considerada pelo Tribunal a quo, na falta de mesma, é de julgar improcedente o recurso, mantendo-se assim a sentença recorrida.
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    Síntese conclusiva:
    Quando a causa de pedir de divórcio litigioso consiste em violação pela parte contrária de deveres conjugais (dever de respeito), à Autora cabe invocar e provar os factos integradores da violação de tal dever conjugal, o simples facto de apresentar queixa à polícia não satisfaz esta exigência, por faltar substância demonstrativa de tal violação. Na falta de factos principais para fundamentar o pedido formulado pela Autora, é de julgar improcedente a pretensão da mesma, mantendo-se assim a decisão recorrida.
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    Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
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    Custas pela Recorrente.
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    Registe e Notifique.
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RAEM, 06 de Junho de 2019.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho





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