Processo n.º 369/2019
(Autos de recurso cível)
Data: 30/Maio/2019
Assuntos: Prazo para requerer a falência
SUMÁRIO
A falência pode ser declarada tanto a requerimento de qualquer credor ou do Ministério Público, como por apresentação do empresário comercial (artigo 1084.º, n.º 1).
A expressão “pode ser requerida” consagrada no n.º 1 do artigo 1083.º apenas respeita àquelas situações em que a declaração da falência depende do requerimento de qualquer credor ou do Ministério Público.
No caso da declaração da falência apresentada pelo próprio empresário devedor, a lei já não fala de “requerimento”, antes estatui que o tribunal pode declarar a falência “por apresentação” voluntária do empresário comercial (cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 1084.º do CPC).
Ao que parece, o prazo de 2 anos a que se alude no artigo 1083.º do CPC apenas se aplica a situações em que a falência é requerida por parte dos credores e do Ministério Público, e não a casos de apresentação voluntária à falência.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo n.º 369/2019
(Autos de recurso cível)
Data: 30/Maio/2019
Recorrente:
- A(requerente)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, requerente dos autos de falência que correu termos no Tribunal Judicial de Base, inconformada com a sentença que julgou improcedente o pedido de declaração de falência por apresentação, dela recorreu jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. A douta sentença recorrida refere que não se demonstram verificados nenhum dos requisitos previstos no artigo 1082º do CPC, para que a ora recorrente seja declarada falida.
2. Diz-se ali também que, porque já passaram mais de dois anos sobre o início da liquidação da ora recorrente, os seus liquidatários deveriam ter requerido o respectivo prosseguimento judicial, e não a falência, em cumprimento do n.º 1 do artigo 319º do Código Comercial.
3. E, ainda, que se esgotou o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1083º do CPC, pelo que já não é possível requerer-se a falência por apresentação da ora recorrente.
4. A ora recorrente não pode concordar com nenhum destes entendimentos.
5. As contas da ora recorrente demonstram e que o próprio Tribunal deu como provada, a situação financeira catastrófica em que a ora recorrente se encontra, já que tem um passivo de MOP1.580.853.056,00, comparado com um activo de apenas MOP208.897.393,00.
6. A ora recorrente está, ope legis, impossibilitada de continuar qualquer actividade, porque a sua autorização de funcionamento foi revogada, razão pela qual não tem qualquer forma de gerar rendimentos adicionais que lhe permitam continuar a funcionar, revelando impossibilidade de cumprimento das suas obrigações.
7. O passivo da ora recorrente resulta das actividades “comerciais” para que foi utilizada pela sua anterior administração, até 26 de Julho de 2013, as quais consistiam em supostamente servir de instrumento de abastecimento do grupo liderado pela sociedade B, sendo a responsável pela procura e aquisição de metal para reciclagem nos mercados internacionais, e a venda directa a clientes do exterior.
8. O seu activo, traduzido em dinheiro em caixa, reduziu-se drasticamente depois de a pessoa que fundou e primariamente dominava o grupo empresarial da ora recorrente ter dela retirado um montante elevadíssimo de fundos, no período que rondou a data em que a dita pessoa perdeu o controlo o grupo empresarial por si liderado, em 26 de Julho de 2013.
9. As sociedades que receberam tais fundos – a C e a D – foram constituídas a pedido da dita pessoa.
10. Em 9 de Março de 2015, o High Court de Hong Kong decretou a dissolução da holding do grupo, a B, com fundamento em que o seu valor foi altamente inflacionado de forma fraudulenta, através da utilização da ora recorrente para criar fluxos de transacções inexistentes, o chamado esquema round robin.
11. A actividade comercial da ora recorrente traduzia-se, em grande medida, em simular transacções com “clientes” e “fornecedores”, que eram outras sociedades do mesmo grupo ou controladas pela pessoa acima referida, sendo que um montante substancial dos fundos pagos pela ora recorrente a “fornecedores” era transferido quase imediatamente por estes para contas de “clientes”, os quais os reciclavam para pagar novas “compras” à ora recorrente, assim se fechando o circuito.
12. Sendo que tais transferências de fundos entre “clientes” e a ora recorrente, oscilavam entre 97% e 99% dos fundos originariamente pagos pela ora recorrente aos “fornecedores”, e não tinham qualquer fundamento comercial.
13. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não ponderou devidamente o circunstancialismo expendido, designadamente que os negócios da ora recorrente, nos anos que antecederam 2013, consistiam, primordialmente, em simular transacções comerciais, que a ora recorrente registava em 1 de Novembro de 2016 um resultado líquido negativo de responsabilidades acumuladas de mais de mil e trezentos milhões de Patacas, cerca de seis vezes o valor do seu activo, a ora recorrente está impedida de prosseguir qualquer actividade por já não deter a sua licença como instituição offshore desde 2014, e que a ora recorrente está a ser administrada por liquidatários nomeados judicialmente pelo High Court de Hong Kong.
14. Assim, não é verdade que não se verifique nenhuma das circunstâncias descritas no artigo 1082º do CPC, porque os factos acima descritos demonstram claramente que a ora recorrente está impossibilitada de cumprir as suas obrigações, não só porque está impedida de prosseguir a sua actividade, porque será fácil de concluir que a relação activo/passivo torna qualquer recuperação altamente improvável.
15. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo desatendeu factos relevantes que ele próprio deu como provado, e que evidenciam claramente a impossibilidade da retoma de actividade lucrativa da ora recorrente.
16. Afigura-se que o Tribunal a quo, ao decidir como o fez, terá confundido a falta de liquidez com o estado de falência, sendo que a primeira é, por definição, suprível através da liquidação de bens ilíquidos e traduz-se numa situação transitória, e a segunda resulta da impossibilidade total de o comerciante cumprir as suas obrigações durante o decurso normal dos seus negócios, estando numa situação de carência financeira que não pode ser suprida, nem com a passagem do tempo, nem com a liquidação de todos os bens ilíquidos do devedor.
17. A ora recorrente não está com falta de liquidez e nem será possível regressar à actividade.
18. Mesmo que a ora recorrente altere o seu objecto, dedicando-se a outro ramo de negócio, adoptando o estatuto de sociedade comercial ordinária, não offshore, é patente e óbvio que a ora recorrente não conseguirá dedicar-se a um ramo de actividade que gere lucros líquidos suficientes para cobrir o seu passivo em tempo útil e sem consideráveis investimentos, cujo financiamento é fácil de concluir ser impossível.
19. A situação financeira da ora recorrente apenas se agravou com a passagem do tempo, como se pode verificar através das contas apresentadas nos termos e ao abrigo da alínea c) do artigo 1048º do CPC, ex vi número 4 do artigo 1085º do mesmo diploma, tanto mais que, pelas contas apresentadas, se constata que não terão sido encontrado bens que acrescessem ao activo.
20. O Tribunal a quo não deu como provada, como devia, a lista de credores apresentada pelo requerente da falência, por imposição da alínea a) do número 2 do artigo 1048º do CPC, ex vi número 4 do artigo 1085º do mesmo diploma.
21. Tal lista, por a ora recorrente estar legalmente obrigada à sua apresentação, não estará, por isso, sujeita a qualquer quesitação, já que se trata do cumprimento de uma imposição legal, sendo certo que, ainda que tal não fosse o caso, sempre deveria a matéria que dela consta, e que vem reproduzida no artigo 72º do requerimento de falência, dar-se como confessada nos termos e ao abrigo do disposto no número 1 do artigo 351º do Código Civil, por se tratar de facto desfavorável à ora recorrente.
22. Assim se salvaguardando o conteúdo útil das normas contidas no número 4 do artigo 1085º e 1048º do CPC, e artigo 351º do Código Civil.
23. Naquela lista, o último crédito venceu-se em 3 de Janeiro de 2017.
24. Encontram-se efectivamente preenchidos os requisitos previstos na alínea a) do número 1 do artigo 1082º do CPC, ao contrário do que vem defendido na douta sentença recorrida.
25. A douta sentença recorrida violou a alínea a) do número 2 do artigo 1048º do CPC, ex vi número 4 do artigo 1085º do mesmo diploma legal e o artigo 351º do Código Civil e incumpriu ainda a alínea a) do número 1 do artigo 1082º do CPC.
26. Conjugando o artigo 1082º, o número 1 do artigo 1083º e os artigos 1047º a 1081º do CPC, conclui-se que, se o comerciante falido não se apresentar voluntariamente à falência no prazo previsto no n.º 1 do artigo 1047º daquele diploma, tal pode ser requerido com fundamento nos factos descritos naquela primeira norma no prazo de 2 anos, pelas pessoas descritas no artigo 1084º do CPC, incluindo o próprio empresário.
27. Ficou dito na douta sentença recorrida que, com referência à data em que foi efectuado o registo da dissolução da ora recorrente, já passaram os dois anos previstos no artigo 319º do Código Comercial, sem que os liquidatários tivessem requerido o prosseguimento judicial da liquidação, devendo ser esta – e não a falência – a via apropriada para liquidar a ora recorrente, pese embora a obrigação prevista no número 5 do artigo 322º daquele diploma, e que já passaram mais de dois anos sobre a eventual verificação dos factos previstos no artigo 1082º do CPC, por aplicação do número 1 do artigo 1083º do mesmo diploma.
28. Coloca-se então o problema de saber o que fazer com uma sociedade que notoriamente não pode prosseguir a sua actividade e que tem um passivo largamente superior ao activo, quando não será, supostamente, possível decretar a sua falência.
29. A aceitar-se a tese defendida na douta decisão recorrida, a solução seria os liquidatários requererem o prosseguimento da liquidação pela via judicial, mas será preciso liquidar o activo, e fazer a graduação e rateio dos créditos que resultam das suas contas, os quais são muito superiores àquele.
30. Mas o processo de liquidação a favor de sócios previsto nos artigos 1034º a 1042º não se coaduna com uma situação em que a sociedade a liquidar não tem património suficiente para satisfazer o seu passivo, porque essa será a função do processo de liquidação em benefício de credores, vulgo, falência, não tendo qualquer utilidade um requerimento de liquidação judicial em benefício dos sócios, pelos liquidatários/administradores da ora recorrente.
31. Tal requerimento seria indeferido liminarmente, com fundamento na alínea d) do número 1 do artigo 394º do CPC, ou seria a liquidação necessariamente convolada em processo de falência por apresentação do falido, com fundamento no número 3 do mesmo artigo.
32. Tal convolação teria lugar passados mais de dois anos sobre o registo da dissolução, porque a apresentação para continuação da liquidação pela via judicial teria lugar até oito dias após o fim do mesmo prazo, previsto no artigo 319º do Código Comercial e de se ter vencido o último dos créditos listados no requerimento da falência.
33. Não é apropriado aplicar o prazo previsto no número 1 do artigo 1083º do CPC a situações em que a falência é requerida pelo próprio falido no exercício de um poder-dever, já que tal leva a um resultado iníquo e que não se coaduna com o fim da lei falimentar, o qual é retirar do comércio jurídico empresários em situação de carência financeira, mas impor um prazo de caducidade ao exercício desse direito por parte de credores e do Ministério Público.
34. Certo é que os liquidatários sociais têm obrigação de requerer a falência, logo que se apercebem de que o activo social é insuficiente para cobrir as dívidas, de acordo com o n.º 5 do artigo 322º do CPC, mas fica por resolver o problema de o que fazer se os liquidatários não o fizerem dentro do prazo de dois anos para a duração da liquidação, previsto no n.º 1 do artigo 319º do Código Comercial nem dentro do mesmo prazo previsto no número 1 do artigo 1083º do CPC.
35. Dizer-se que, nesta situação, é de rejeitar a apresentação à falência leva a que a falida fica num limbo jurídico-financeiro, na bancarrota, sem actividade, sem poder satisfazer os seus credores, sem poder requerer a sua própria falência, e condenada a vegetar no comércio jurídico ad aeternum.
36. À espera que um qualquer credor social venha interpor processo judicial contra si para obter pagamento, possivelmente sabendo à partida que não vai obter pagamento, mesmo que vitorioso na lide, sendo que a falida, ainda que condenada, poderá não ter fundos para satisfazer globalmente o crédito reivindicado, especialmente se vários credores seguirem o exemplo do primeiro, assim se comprovando a sua situação de bancarrota, já era conhecida à partida.
37. E tal condenação também não levará, só por si, a que a ré seja declarada falida, o que só aconteceria se o credor vencedor estivesse na disposição de o requerer, arriscando-se a concorrer aos bens sociais com todos os demais credores.
38. Por outro lado, se o Tribunal indeferir liminarmente o requerimento de prosseguimento da liquidação por via judicial, por a ora recorrente se encontrar em patente e óbvia situação de falência, então também não pode haver processo falimentar por apresentação, porque então já se terá esgotado o prazo de dois anos previsto no número 1 do artigo 1083º do CPC, interpretação que leva, de novo, ao limbo jurídico.
39. Por isso, a douta sentença recorrida violou o número 1 do artigo 1083º e a alínea c) do número 1 do artigo 1084º, ambos do CPC, ao considerar que o prazo previsto no primeiro daqueles normativos extingue a faculdade de o devedor requerer a sua própria falência.
40. Mas, mesmo que se considere que o prazo previsto no número 1 do artigo 1083º do CPC é de aplicar quando a falência é requerida por apresentação do devedor, o que não se concede, ainda assim não pode aquele prazo fazer precludir o cumprimento deste poder-dever.
41. Especialmente quando se faz o paralelo com o prazo de apresentação à falência pelo devedor que consta do número 1 do artigo 18º do CIRE português, o qual, segundo a mais ampla doutrina e jurisprudência, não é, nessas circunstâncias, um prazo de caducidade.
42. Por isso, também por aqui se afigura que a douta sentença recorrida viola o número 1 do artigo 1083º e a alínea c) do número 1 do artigo 1084º, ambos do CPC.”
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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A Apresentante é uma sociedade unipessoal offshore constituída, em 21 de Março de 2005, segundo as leis da Região Administrativa Especial de Macau (“RAEM”) e registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 2x.xx8(SO); (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
Tendo como objecto social a prestação de “serviços de comissão e mediação comercial; actividades de vendas à distância; serviços de documentação; serviços de atendimento de clientes para prestação de informações, reservas, registo e encaminhamento de encomendas; actividades de apoio administrativo e arquivístico” tudo conforme certidão de registo comercial com os respectivos estatutos, junta a fls. 36 a 48 que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória)
A Apresentante operava ao abrigo da autorização para o funcionamento como instituição de serviços comerciais e auxiliares “offshore”, concedida pelo Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (de ora em diante, “IPIM”) em 18 de Abril de 2005, sob o nº DSO/029/2005, tudo conforme cópia junta a fls. 49 que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
A Apresentante é inteiramente detida pela E (de ora em diante “E”), constituída segundo as leis de Hong Kong, a qual, por sua vez, é, por via da F, indirectamente detida a 100% pela sociedade B (de ora em diante “B”), através de uma outra sociedade denominada G, constituída nas Ilhas Virgens Britânicas, conforme cópias de informações comerciais da E e da F, assim como tradução certificada de certificado de registo (certificate of incumbency) desta última, juntas a fls. 50 a 61, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais; (resposta ao quesito nº 4 da base instrutória)
A B é uma sociedade constituída nas Ilhas Caimão, registada, em 12 de Junho de 2008, como sociedade estrangeira em Hong Kong e que, em 22 de Junho de 2009, passou a estar listada na Bolsa de Valores daquela Região sob o código nº xx3, conforme Relatório Anual de 2009 da B (maxime p. 7), tradução certificada da busca da sociedade disponibilizada pela Conservatória de Registo Comercial da Região Administrativa Especial de Hong Kong e tradução certificada da publicação constante do website oficial da Securities and Futures Commission de Hong Kong, juntos a fls. 62 a 157 os quais que aqui se dão por integralmente reproduzidos; (resposta ao quesito nº 5 da base instrutória)
A mesma B é a sociedade última (holding) do Grupo H (de ora em diante o “Grupo”), o qual inclui várias subsidiárias nas Ilhas Virgens Britânicas, em Hong Kong, Macau, China Continental, Singapura e Taiwan, entre as quais a Apresentante; (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
De acordo com o prospecto apresentado pela B para listagem das suas acções na Bolsa de Valores de Hong Kong, datado de 10 de Junho de 2009 (de ora em diante o “Prospecto”), o Grupo é descrito como dedicando-se principalmente ao negócio de reciclagem, processamento e marketing de metais férreos e não-férreos, com a grande maioria das operações concentradas nas suas subsidiárias da China Continental, conforme cópia do documento, nas versões em línguas chinesa e inglesa, junto a fls. 158 a 623 que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais; (resposta ao quesito nº 7 da base instrutória)
De acordo com o Prospecto, a Apresentante supostamente funcionava como instrumento de abastecimento (“sourcing arm”) do Grupo, ou seja, era a sociedade deste responsável pela procura e aquisição de metal para reciclagem nos mercados internacionais, assim como da venda (directa) a clientes do exterior (vide pp. 121-122 da versão inglesa do Prospecto); (resposta ao quesito nº 8 da base instrutória)
O Sr. I (I e, em pinyin da China Continental, I, também conhecido por “I” ou “I”), conjuntamente com a sua esposa, Sra. J (J e, em pinyin da China Continental, J), fundou o Grupo B; (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
O Sr. I era o sócio dominante da B; (resposta ao quesito nº 10 da base instrutória)
Paralelamente, o Sr. I era também o orquestrador, com significativo controlo, da gestão dos negócios de cada uma das subsidiárias do referido Grupo, incluindo a da Apresentante; (resposta ao quesito nº 11 da base instrutória)
O Sr. I era quem dominando em todo o Grupo B era o responsável pelo planeamento da estratégia global do mesmo, por via do cargo de Chief Executive Officer, até dele ter sido destituído em 26 de Julho de 2013; (resposta ao quesito nº 12 da base instrutória)
E da Apresentante, em particular, onde exerceu o cargo de administrador desde a sua constituição até à sua destituição, por acta datada de 31 de Dezembro de 2012, mas apenas apresentada a registo em 20 de Fevereiro de 2013; (resposta ao quesito nº 13 da base instrutória)
Em finais de 2009, a Securities and Futures Commission de Hong Kong — entidade reguladora independente dos mercados financeiros da Região vizinha — iniciou investigações à B e às actividades do Grupo, por tudo indicar — o que, adianta-se, veio a ser confirmado — que este estava envolvido num esquema fraudulento em larga escala e com elevada sofisticação, com o Sr. I como figura central e a Apresentante (e outras subsidiárias da China Continental) como instrumentos fundamentais do mesmo conforme consta do parágrafo 11 do documento de fls. 765 a 802; (resposta ao quesito nº 14 da base instrutória)
Paralelamente a essas investigações, em 28 de Janeiro de 2013, foi publicado, pelo Glaucus Research Group — um grupo privado dos Estados Unidos da América que monitoriza a actividade de grupos económicos e emite relatórios e pareceres acerca das suas actividades — um relatório acerca das actividades (ilícitas) do Grupo e do envolvimento do Sr. I nas mesmas (anteriormente e de ora em diante, o “Glaucus Report”), conforme cópia do Relatório e respectiva tradução certificada, junta a fls. 624 a 717 que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais; (resposta ao quesito nº 15 da base instrutória)
Nesse relatório, concluiu o Glaucus Research Group que:
“A B Holdings Ltd. (“CMR” ou a “Sociedade”) alega ser a maior sociedade de reciclagem de resíduos de metais na China. Acreditamos que isto é uma falsidade. Dados de importação disponibilizados pelo governo da China e de acesso público sugerem que a CMR é uma fraude flagrante que enganou o mercado quanto ao seu volume de negócio.”; (resposta ao quesito nº 16 da base instrutória)
E ainda que:
“O balanço altamente alavancado da Sociedade e a escala do seu engano sugerem que os accionistas ficarão sem nada. Portanto, avaliamos as acções da CMR num preço-alvo de HKD0,00.”; (resposta ao quesito nº 17 da base instrutória)
A publicação do Glaucus Report, em 28 de Janeiro de 2013, expôs ao público a fraude em larga escala da B e do respectivo Grupo, e determinou a sucessão de acontecimentos que levaram à sua queda, e que se passam a enunciar; (resposta ao quesito nº 18 da base instrutória)
Nessa mesma data a B, suspendeu as transacções das suas acções na Bolsa de Valores de Hong Kong conforme anúncio, em línguas chinesa e inglesa, cuja cópia consta de fls. 718 e 719 e aqui se dá por integralmente reproduzida para os demais efeitos legais; (resposta ao quesito nº 19 da base instrutória)
O Sr. I foi exonerado do cargo de administrador da Apresentante, por uma decisão da sócia única E — controlada e representada pelo próprio Sr. I — que, conforme acima enunciado, foi datada de 31 de Dezembro de 2012, mas que só foi registada em 20 de Fevereiro de 2013; (resposta ao quesito nº 20 da base instrutória)
E, em sua substituição, por deliberação com a mesma data, 31 de Dezembro de 2012, foram nomeados administradores da A os Senhores K e L, os quais eram, à data, igualmente administradores de inúmeras outras subsidiárias do Grupo; (resposta ao quesito nº 21 da base instrutória)
No entanto, a verdade é que o Sr. I continuou a gerir, indirectamente e por interpostas pessoas, o Grupo e a Apresentante, quer por continuar a controlar o capital social da mesma — porque continuava a controlar a E, sócia única da A — quer por permanecer como signatário autorizado (em vários casos, o único) para movimentar as contas bancárias desta, quer, ainda, por orientar e dar instruções aos “novos” administradores nomeados, os Senhores K e L; (resposta ao quesito nº 23 da base instrutória)
No seguimento dos acontecimentos supra relatados, a Securities and Futures Commission concluiu as suas investigações e, em 26 de Julho de 2013, apresentou um pedido de dissolução e liquidação da B ao High Court de Hong Kong, fundado naquela referida actividade fraudulenta, pedido esse que resultou no processo que correu termos naquele tribunal com a referência HCCW 210/2013; (resposta ao quesito nº 24 da base instrutória)
Nessa mesma data, por ordem daquele tribunal de Hong Kong, o Sr. M e a Sra. N, foram nomeados liquidatários provisórios da B; (resposta ao quesito nº 25 da base instrutória)
Aqueles foram ainda nomeados liquidatários das subsidiárias daquela sociedade, sediadas tanto em Hong Kong, como é o caso da E, como no exterior, tudo conforme cópia e tradução certificada da decisão do High Court de Hong Kong cuja cópia consta de fls. 720 a 748, cópia e tradução certificada da deliberação por escrito da G a fls. 749 a 751 e cópia de informação comercial da E a fls. 752 a 757 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais; (resposta ao quesito nº 26 da base instrutória)
Ainda no seguimento dos acima referidos deveres, nesse mesmo dia, a E destituiu, com efeito imediato, os administradores até então registados da Apresentante — K e L — e nomeou, em sua substituição, o Sr. M, a Sra. N e, ainda, a Sra. O, os quais são, desde então, os legais e legítimos administradores da Apresentante; (resposta ao quesito nº 27 da base instrutória)
Tudo para proceder, então, a um levantamento das actividades e situação financeira da B e, separadamente, de cada uma das subsidiárias que compunham o grupo, incluindo da Apresentante, por forma a confirmar, ou a infirmar, as conclusões da Securities and Futures Commission; (resposta ao quesito nº 29 da base instrutória)
O Supremo tribunal de Hong Kong decidiu pela dissolução da B e da A; (resposta ao quesito nº 30 da base instrutória)
Foi apresentado um pedido de dissolução da Apresentante, em 8 de Agosto de 2013, que foi autuado e corre termos no mesmo tribunal de Hong Kong sob o nº HCCW 231/2013; (resposta ao quesito nº 31 da base instrutória)
Nessa mesma data, foi proferida decisão a nomear o Sr. M e a Sra. N, liquidatários provisórios da A no âmbito no referido processo HCCW 231/2013 tudo conforme cópia e tradução certificada da decisão junta a fls. 758 a 764 e aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais; (resposta ao quesito nº 32 da base instrutória)
No âmbito do processo com a referência HCCW 210/2013, acima mencionado, e com ajuda das investigações dos liquidatários provisórios da B e novos administradores da Apresentante, o High Court de Hong Kong ordenou a dissolução da B, por actividade fraudulenta conforme tradução certificada da fundamentação da sentença (“reasons for decision”) junta a fls. 765 a 802 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos; (resposta ao quesito nº 33 da base instrutória)
Damos por integralmente reproduzidos o que consta do documento de fls. 780 a 802, cuja tradução foi junta de fls. 765 a 779; (resposta ao quesito nºs 34 a 52 da base instrutória)
Entre 13 de Junho e 29 de Julho de 2013 — período que antecede o pedido de dissolução da B e a remoção do Sr. I do controlo material da mesma — este assinou sozinho ou juntamente com outra pessoa ordens de transferências bancárias para C nos valores de CNY596.800.000,00 e USD12.590.000,00 e para a D nos valores de CNY410.500.000,00 e USD9.800.000,00; (resposta ao quesito nº 53 da base instrutória)
Em 10 de Julho de 2015, o High Court de Hong Kong proferiu decisão, no âmbito do processo HCCW 231/2013, que, entre outras, determinou a dissolução da A naquela Região e que o Sr. M e a Sra. N continuassem a actuar na qualidade de liquidatários provisórios da Apresentante, conforme documento a fls. 848 a 855 que aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos efeitos legais; (resposta ao quesito nº 55 da base instrutória)
Em 26 de Julho de 2013, a nova administração da Apresentante, nomeada nas circunstâncias e para os propósitos acima referidos — isto é, fazer um levantamento das “actividades” da Apresentante e apuramento da sua situação financeira —, suspendeu, de imediato, a actividade comercial da mesma; (resposta ao quesito nº 56 da base instrutória)
Por ofício do IPIM datado de 21 de Fevereiro de 2014, com a referência 02339/DSO/2014 — conforme documento junto a fls. 856 e aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos efeitos legais —, a Apresentante foi notificada da infracção aos artigos 66º, 70º, nº 1, d) do Decreto-Lei nº 58/99/M, de 18 de Outubro de 1999, e ao prazo previsto pela Circular nº 01/DSO/IPIM/2002, por não ter apresentado o relatório financeiro da auditoria relativo ao ano de 2012, nem prestado provas, no prazo adicional que lhe foi concedido, que certificassem que a mesma possui assentos contabilísticos; (resposta ao quesito nº 60 da base instrutória)
Assim, ainda de acordo com o referido ofício, nos termos do disposto nos artigos 68º e 42º, nº 1, e), do mesmo Decreto-Lei, o Exmo. Senhor Secretário para a Economia e Finanças proferiu despacho, no dia 18 de Fevereiro de 2014, declarando a revogação da autorização, conferida à Apresentante, para o funcionamento como instituição de serviços comerciais e auxiliares “offshore”, acima devidamente identificada; (resposta ao quesito nº 61 da base instrutória)
A sócia única da Apresentante, no dia 28 de Outubro de 2016, por força do disposto no nº 5 do artigo 42º do Decreto-Lei nº 58/99/M, de 18 de Outubro, decidiu reconhecer a dissolução desta, por efeito da lei, entrando a mesma de imediato em liquidação; (resposta ao quesito nº 62 da base instrutória)
De acordo com a referida decisão da sócia única, foram nomeados o Sr. M e a Sra. N, como liquidatários da Apresentante, tudo conforme resulta da certidão comercial junta fls. 36 a 48 já antes dada por reproduzida; (resposta ao quesito nº 63 da base instrutória)
Em 30 de Dezembro de 2016, a sócia única da Apresentante aprovou, por referência a 1 de Novembro do mesmo ano, data do registo da referida dissolução, o balanço, a conta de ganhos e perdas e o inventário, elaborados pelos administradores; (resposta ao quesito nº 64 da base instrutória)
Conforme consta das mesmas contas, a A apresenta um activo total de MOP208.897.393,00 (duzentos e oito milhões, oitocentas e noventa e sete mil, trezentas e noventa e três patacas), um passivo total de MOP1.580.853.056,00 (mil quinhentos e oitenta milhões, oitocentas e cinquenta e três mil e cinquenta e seis patacas) e um resultado líquido negativo de responsabilidades acumuladas de MOP1.371.955.663,00 (mil trezentos e setenta e um milhões, novecentas e cinquenta e cinco mil, seiscentas e sessenta e três patacas), tudo conforme consta do documento a fls. 880 a 882 que aqui se dá por integralmente reproduzido; (resposta ao quesito nº 65 da base instrutória)
A apresentante não tem quaisquer trabalhadores ao seu serviço. (resposta ao quesito nº 67 da base instrutória)
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Duas são as questões suscitadas neste recurso: a primeira é saber se já decorreu o prazo de caducidade de 2 anos dentro do qual tem que requerer a falência e, em segundo lugar, indagar se estão preenchidos os requisitos previstos para a declaração de falência.
Comecemos pela primeira questão.
Entende a decisão recorrida que, não obstante a sócia única da recorrente ter aprovado, em 30.12.2016, o balanço, uma conta de ganhos e perdas e um inventário, elaborados com referência a 1.11.2016, segundo os quais a recorrente apresentava um passivo largamente superior ao activo e um resultado líquido negativo de responsabilidades acumuladas de MOP1.371.955.633,00, a falência não pode ser declarada por ter decorrido o prazo de 2 anos desde a constatação daquele facto.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 1083.º do Código de Processo Civil que “a declaração da falência pode ser requerida no prazo de 2 anos, a contar da verificação de qualquer dos factos previstos no artigo anterior, ainda que o empresário comercial tenha deixado de exercer a sua actividade ou tenha falecido”. – realçado nosso
Por sua vez, preceituam as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1084.º do CPC que a falência do empresário pode ser declarada a requerimento de qualquer credor e do Ministério Público em representação dos interesses que lhe estão legalmente confiados.
Além dos credores e do Ministério Público, a alínea c) do n.º 1 do artigo 1084.º permite ainda que o próprio empresário devedor se apresente voluntariamente à sua falência.
Quanto a este aspecto, pode o empresário devedor apresentar-se voluntariamente à sua falência no prazo previsto no n.º 1 do artigo 1047.º do CPC ou fora do prazo prescrito no mesmo artigo.
No caso de o empresário se apresentar à sua falência dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 1047.º, há lugar à convocação da assembleia de credores, a possibilidade de ser proposta concordata, a verificação provisória de créditos, a eventual aprovação de concordata ou, se não houver concordata nem acordo de credores, a declaração de falência do devedor, tudo conforme o preceituado nos artigos 1047.º a 1081.º do CPC.
Se o devedor só se apresentar à sua falência depois de decorrido o prazo previsto no artigo 1047.º do CPC, então deixa de haver lugar à apresentação e aprovação de concordata, antes vai o juiz apreciar a prova oferecida com vista a proferir uma sentença declaratória de falência (cfr. artigo 1084.º, n.º 1, alínea c) e artigo 1088.º, n.º 1, ambos do CPC).
Sendo assim, podemos concluir que a falência pode ser declarada ou por requerimento ou por apresentação voluntária do próprio empresário devedor.
No caso vertente, é a própria sociedade empresária que vem apresentar-se à sua falência.
Embora a lei não esteja clara, parece-nos que o prazo de 2 anos a que se alude no artigo 1083.º apenas se aplica a situações em que a falência é requerida por parte dos credores e do Ministério Público, e não a casos de apresentação voluntária à falência.
Pensamos que isso faz todo o sentido.
Em primeiro lugar, é bom de ver que o n.º 1 do artigo 1083.º do CPC usa a palavra “requerida”.
Ora bem, como se disse, a falência pode ser declarada tanto a requerimento de qualquer credor ou do Ministério Público, como por apresentação do empresário comercial (artigo 1084.º, n.º 1).
Daí que, salvo melhor opinião, somos a entender que a expressão “pode ser requerida” consagrada no n.º 1 do artigo 1083.º apenas respeita àquelas situações em que a declaração da falência depende do requerimento de qualquer credor ou do Ministério Público. Pois, no caso da declaração da falência apresentada pelo próprio empresário devedor, a lei já não fala de “requerimento”, antes estatui que o tribunal pode declarar a falência “por apresentação” voluntária do empresário comercial (cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 1084.º do CPC).
Em segundo lugar, entendemos que não faria qualquer sentido impedir que o devedor se apresente à sua falência, mesmo que esteja decorrido o prazo de 2 anos, se entretanto o empresário devedor já deixou de exercer qualquer actividade e se encontrava impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações.
Como bem observa a recorrente, rejeitar a apresentação à falência leva a que o empresário comercial fique condenado a “vegetar no comércio jurídico ad aeternum”, pois não tem actividade, não pode satisfazer os seus credores, não pode apresentar-se à sua falência, etc.
Nestes termos, procedem as razões da recorrente quanto a esta parte.
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Vejamos agora se estão preenchidos os requisitos previstos nos termos do artigo 1082.º do CPC de que depende a declaração da falência.
Preceitua o artigo 1082.º do CPC o seguinte:
“A declaração da falência, quando não resulte do que especialmente fica disposto na secção anterior, tem lugar desde que se prove algum dos seguintes factos:
a)Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações;
b)Fuga do empresário comercial ou, caso este seja pessoa colectiva, dos titulares do seu órgão de administração, relacionada com a falta de liquidez do devedor e sem designação de substituto idóneo;
c)Abandono da administração principal ou, caso o empresário comercial seja pessoa colectiva, da respectiva sede ou da administração principal;
d)Dissipação ou extravio de bens, constituição fictícia de créditos ou qualquer outro procedimento abusivo que revele o propósito de o devedor se colocar em situação que o impossibilite de cumprir pontualmente as suas obrigações.”
Ora bem, provado está que a recorrente registava em 1.11.2016 um resultado líquido negativo de responsabilidades acumuladas mais de mil e trezentos milhões de patacas, actualmente encontrando-se a recorrente impedida de prosseguir qualquer actividade por a sua licença como instituição offshore já ter sido revogada desde Fevereiro de 2014, acrescido ainda do facto de o High Court de Hong Kong ter decretado a dissolução do holding do grupo liderado pela B, do qual a recorrente fazia parte. Ponderados todos esses elementos, somos a entender que demonstrada está a impossibilidade de a recorrente cumprir as suas obrigações. Ademais, é bom de ver que a situação actual da recorrente evidencia que a mesma não tem condições para regressar à sua actividade.
Atento todo o circunstancialismo do caso, cremos que a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações por parte da recorrente revele, pelo seu montante ou circunstâncias do incumprimento, que a mesma se encontra impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, daí que preenchidos estão os requisitos previstos na alínea a) do artigo 1082.º do CPC, há-de ser declarada a falência.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, declarando a falência da recorrente A, devendo o Tribunal recorrido prosseguir com os ulteriores trâmites processuais.
Sem custas.
Registe e notifique.
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RAEM, 30 de Maio de 2019
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Recurso Cível 369/2019 Página 29