Proc. nº 531/2018
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 27 de Junho de 2019
Descritores:
- Execução de sentença
- Acto renovador
- Discricionariedade
- Princípio da boa fé
SUMÁRIO:
I - Na execução de sentença anulatória, nada impede a Administração de praticar um acto renovador que reitere a solução dispositiva do renovado, embora com fundamentação diferente da do primitivo.
II - O princípio da boa fé (art. 8º do CPA) apresenta-se exclusivo da actividade discricionária. Por assim ser, só perante actos administrativos concretos que, manifesta e grosseiramente, o violem pode a actuação da Administração ser sindicada judicialmente.
Proc. nº 531/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A (A), titular do passaporte de Taiwan nº …, e residente em Macau, na …, ------
Recorre contenciosamente -------
Do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 15 de Março de 2018, que lhe indeferiu o pedido de “autorização de residência” na R.A.E.M..
Na petição inicial formulou as seguintes conclusões:
“a) Recorre-se do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 15/03/2018.
b) Então reunidos os pressupostos processuais.
c) Dão-se aqui por reproduzidos os factos referidos no relatório da situação em apreço.
d) O despacho recorrido é aquele que, mais uma vez, nega “autorização de residência” ao recorrente na R.A.E.M., alegando factos que, na óptica do recorrente, são uma repetição do que é referido no despacho de 19/08/2015, agora, na óptica da entidade recorrida, indiciadores de uma presunção de falta de idoneidade e honorabilidade por parte do recorrente o que alegadamente evidenciaria um incumprimento “das leis de Macau e dos valores de cidadania prevalentes na Região ...”
Ora,
e) Com o devido respeito, o despacho recorrido é um manifesto “processo de intenções”, porquanto, imputa ao recorrente uma conduta desviante da normalidade, razão e lógica, o que faz com base em meras suposições, que não são minimamente comprovadas.
f) A decisão ora em apreço do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança não é uma outra decisão mas a mesma decisão - a aquela que foi previamente anulada, por decisão judicial já transitada - travestida por um fundamento que não decorre da lei.
g) Quando as decisões judiciais anteriores já expressamente explicitaram que o recorrente não tem antecedentes criminais.
h) O que resulta do processo administrativo, além do que, como já se referiu, a necessidade imperiosa de “reunião familiar” é o seguinte:
• O recorrente esteve detido preventivamente cerca de 3 meses em 1998;
• Posto em liberdade, apresentou TIR, indicando como sua residência Taiwan, na morada que constava do passaporte que à data detinha;
• Foi imediatamente expulso de Macau e impedido de aqui reentrar;
• Nunca foi notificado de nada e para nada no processo-crime em que
terá sido constituído arguido;
• Casou em Taiwan com uma cidadã de Macau e deste casamento nasceram dois filhos;
• Reentrou em Macau com o visto de turista;
• Trabalhou em Macau, como não residente, entre 16/02/2015 e 09/04/2016;
• Requereu a residência por “reunião familiar”; e
• Não tem registo criminal, em Macau e em Taiwan.
i) Tudo o resto é especulação.
A inacção, quanto a si, num processo-crime em que alegadamente foi constituído arguido, não lhe é minimamente imputável.
A prescrição do procedimento criminal só ocorreu por desleixo de quem o tutela.
j) Nos termos da lei que rege a “autorização de residência”, o Chefe do Executivo “pode” conceder autorização de residência na R.A.E.M., atendendo aos seguintes aspectos, no caso, inexistência de “antecedentes criminiais ou comprovado incumprimento das leis da R.A.EM”; “finalidades pretendidas com a residência na R.A.EM”; e “laços familiares do interessado com residentes da R.A.EM.”
Isto é,
k) A lei limita a autorização de residência a determinados aspectos, objectivamente analisados.
I) Mas, uma vez verificados os requisitos que a lei impõe, então, como acontece em todas as situações idênticas, a Administração está vinculada a uma decisão que - reitera-se, objectivamente - se ajusta ao interesse público.
Tendo em conta os supra citados princípios da igualdade, proporcionalidade, boa fé e imparcialidade.
m) O recorrente não tem “antecedentes criminais” como ficou demonstrado e é, salvo o devido respeito, perfeitamente descabida uma alegada e subjectiva, prognose de incumprimento das leis de Macau;
n) Sobretudo quando o que está em causa são os superiores interesses invocados pelo recorrente que derivam da sua “reunião familiar”.
o) Entende, por isso, o recorrente que o despacho recorrido é, “contra tudo e contra todos”, por um lado, uma clara violação do princípio da presunção de inocência - na medida em que imputa factos ao recorrente que não existem na ordem jurídica da R.A.E.M.; e
p) Por outro lado, uma violação do princípio da boa fé, ínsito no art.º 8º do C.P.A. - na medida em que demonstra uma imponderação sobre os valores fundamentais do direito; e
q) Uma repetição processual de factos sobre os quais já se pronunciaram os Tribunais Superiores da R.A.E.M. em decisões já transitadas que, de forma inequívoca, afirmaram que os factos que alegadamente se imputaram ao recorrente em processo-crime - e, diremos nós, todos aqueles que são consequência do mesmo - não podem ser considerados para todo e qualquer efeito, nomeadamente, aquele que o recorrente pretende, a “autorização de residência” na R.A.E.M..
r) Não sendo despiciendo recordar que, nos termos do disposto no nº2 do art.º 8º da Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei nº 9/1999), “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.”
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, anulado o Despacho recorrido, com todas as consequências legais, nomeadamente, a determinação da concessão da autorização de residência a favor do ora recorrente.”
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Na sua contestação, a entidade recorrida defende a improcedência do recurso em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Alegou apenas o recorrente, reiterando no essencial a posição inicialmente assumida.
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O digno Magistrado do MP emitiu a seguinte opinião:
“A, devidamente identificado nos autos, vem impugnar contenciosamente o despacho de 15 de Março de 2018, do Exm.º Secretário para a Segurança, que lhe indeferiu pedido de autorização de residência oportunamente formulado.
Imputa ao acto os vícios de violação do princípio da presunção de inocência e de violação do princípio da boa-fé, acrescentando que se está perante uma repetição processual de factos tidos em conta num acto administrativo precedente que foi objecto de anulação contenciosa.
A entidade recorrida refuta que o acto padeça de qualquer vício, afirmando a respectiva legalidade e pugnando pela improcedência do recurso.
Vejamos, começando pelo princípio da boa-fé.
O recorrente sustenta a violação deste princípio pelo despacho recorrido, na medida em que este se demitiu de ponderar sobre valores fundamentais do direito e efectuou uma repetição processual de factos sobre os quais já houve pronúncia anulatória dos tribunais superiores da Região Administrativa Especial de Macau.
Não creio que resulte demonstrada a apontada violação do princípio da boa- fé. As regras da boa-fé postulam que, no exercício da actividade administrativa, o relacionamento entre a Administração e os particulares se paute pela ponderação dos valores fundamentais do direito a ter em conta na situação equacionada e, sobretudo, pela confiança suscitada na contraparte pela actuação adoptada e pelo objectivo visado com essa actuação. Ora, o que resulta do acto é uma determinada interpretação jurídica da relevância de certos factores para a apreciação de um pedido de autorização de residência, interpretação que, embora insista na ponderação de elementos próximos daqueles que anteriormente erigira em pressupostos fácticos de decisão idêntica anulada, fá-lo com uma roupagem e uma argumentação diversa. Daí que não se vislumbre a invocada afronta ao princípio da boa-fé.
Diz ainda o recorrente que há violação do princípio da presunção de inocência, porquanto o acto lhe imputa factos inexistentes à luz da ordem jurídica da Região Administrativa Especial de Macau.
Constata-se que o despacho em causa arregimenta um conjunto de razões que põem em causa a honorabilidade do exequente e prognosticam a ausência de garantia de que este não venha a pôr em causa o cumprimento das leis de Macau. Razões a que está subjacente, como pano de fundo, a prisão preventiva que sofreu e o alheamento do processo criminal em que foi arguido e cujo procedimento acabou por se extinguir por prescrição.
Pois bem, não está aqui em causa propriamente a valoração de determinados indícios para, a partir deles, fazer integrar uma certa hipótese a que a lei confere relevância em matéria de concessão de autorização de residência, mas a formulação de um juízo de censura sobre a personalidade, baseado na circunstância de o recorrente ter estado preso preventivamente, durante cerca de três meses, por suspeita da prática de vários crimes, alguns deles de suposta enorme gravidade.
Como se sabe, o procedimento criminal a que o recorrente foi submetido acabou por ser declarado extinto, por prescrição, à luz do ordenamento jurídico, pelo que de nada vale invocar a sua prisão preventiva e a suspeita de crimes de gravidade considerável. Isto equivale, salvo melhor juízo, a repristinar a questão dos antecedentes criminais, embora com outra roupagem e nomenclatura.
Como se disse, não está aqui em causa a invocação de factos criminosos concretos e a apreciação e valoração de determinados e explicitados indícios para, a partir deles, fazer integrar uma certa hipótese a que a lei confere relevância em matéria de concessão de autorização de residência. A Administração pode fazê-lo validamente, independentemente da existência de processo criminal e da efectiva condenação a que este porventura conduza. O que foi ponderado foi a circunstância de o recorrente haver estado preso preventivamente, por suspeita de crimes graves. Isto é manifestamente conclusivo e não tem o suporte de uma condenação firmada na ordem jurídica, que respalde uma referência válida ao passado criminal do recorrente. O que quer dizer que a Administração não identificou nem descreveu minimamente a actuação do recorrente que justificou o juízo negativo formulado sobre a sua idoneidade/honorabilidade e o juízo de prognose acerca da falta de garantias do cumprimento das leis de Macau. No fundo, há como que uma espécie de espada de Dâmocles que continua a fazer pairar o rótulo dos antecedentes criminais sobre a cabeça do recorrente, por este ter estado preso preventivamente, por suspeita de crimes de enorme gravidade. Não se lhe imputa a prática de factos concretos baseada em indícios determinados, mas a circunstância de ter estado preso preventivamente, por suspeita da prática de crimes, o que, como se referiu, perdeu qualquer acuidade a partir do momento em que o procedimento foi extinto por prescrição. Neste contexto, e sempre salvo melhor juízo, o despacho ofende o princípio da presunção de inocência, como ofende, até, o anterior julgado anulatório - o que o recorrente invoca, sem no entanto extrair a consequência invalidante daí decorrente -, pois, no fundo e em substância, apela a factos tidos em conta num acto administrativo precedente, que foi objecto de anulação contenciosa, na medida em que continua a eleger, como pressuposto, a ligação do recorrente a um processo criminal e a falta de garantia que isso representa para o cumprimento das leis de Macau, o que, pese embora a roupagem e os termos usados, não deixa de entroncar na questão dos antecedentes criminais, pressuposto que foi directamente causal do veredicto anulatório.
Procede, assim, o vício de violação de lei por ofensa do princípio da presunção de inocência e por ofensa de julgado anulatório.
Termos em que, atento o disposto nos artigos 122.º, n.º 2, alínea h), do Código do Procedimento Administrativo, somos pelo provimento do recurso e pela declaração de nulidade do acto recorrido.”
*
Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
1 - O recorrente contencioso casou com a sua mulher, em 5 de Outubro de 2004 em Taiwan.
2 - O casal tem dois filhos, nascidos em Macau.
3 - O recorrente fora condenado em 31/05/2000, em concurso real e em co-autoria, por:
- Um crime de associação/sociedade secreta, previsto e punível pelo art. 2º, nº2, com referência ai art. 1º, nº1, al. h), ambos da Lei nº 6/97/M, de 30/07 (Lei da Criminalidade Organizada), na pena de cinco anos e três meses de prisão;
- Um crime previsto e punível pelo art. 1º, da Lei nº 8/96/M, de 22/07 (Jogo ilícito), na pena de um ano de prisão;
- Um crime previsto e punível pelo art. 70º, nº1, al. a) (Exercício ilegal da actividade de radiodifusão), com referência ais arts. 12º e 13º, todos da Lei nº 8/99/M, de 4/09 (Regime da Actividade de Radiodifusão), na pena de sete meses de prisão e trezentas mil patacas de multa com 300 dias de prisão subsidiária.
E, em cúmulo, na pena de seis anos de prisão.
4 - Os dados no P.A. mostram que o recorrente não compareceu à audiência de Julgamento.
5 - Relativamente a tais ilícitos, o recorrente esteve preso preventivamente desde 12 de Maio de 1998 até 25 de Agosto de 1998 no Estabelecimento Prisional de Coloane.
6 - Em 25 de Agosto de 1998, o recorrente foi libertado do Estabelecimento Prisional de Coloane e por despacho superior de 26 de Agosto de 1998, foi repatriado ao local de origem e foi interdito de entrar em Macau pelo período de três anos.
7 - No que concerne aos crimes cometidos, em Setembro de 2013 o Tribunal Judicial de Base declarou extinto o procedimento criminal por força da prescrição e tal extinção foi notificada oportunamente ao CPSP.
8 - O recorrente contencioso, possuidor do passaporte de Taiwan, pediu, em 30 de Março de 2015, ao Chefe do Executivo a autorização de residência por motivo de reagrupamento familiar com a mulher e filhos, a viverem em Macau.
9 - O Senhor Secretário para a Segurança, por despacho datado de 19/05/2015 indeferiu o pedido, com o fundamento de que o recorrente tinha “antecedentes criminais” na R.A.E.M., facto que potencialmente poria em causa, na óptica da entidade então recorrida, a “ordem e a segurança públicas” da R.A.E.M.
10 - Desse despacho recorreu contenciosamente para o TSI, em processo a que foi dado o número 870/2015.
11 - Por acórdão de 27/10/2016, foi dado provimento àquele recurso contencioso, anulando-se o despacho recorrido, por erro nos pressupostos de facto, por o recorrente não ter antecedentes criminais, em virtude de a sentença condenatória não ter então transitado e porque, quando apenas notificado em 2013 da pena, sob requerimento deste, o procedimento criminal fora judicialmente declarado prescrito.
12 - Deste decisão, foi interposto recurso para o Tribunal de Última Instância que, por acórdão datado de 31/05/2017, negou provimento ao recurso jurisdicional, expressando, a final, que tendo um procedimento sido extinto por prescrição, “... qualquer solução que o considerasse, de futuro, para efeitos criminais, seria atentatório do princípio da presunção de inocência, previsto no art.º 29º da Lei Básica”.
13 - Uma vez anulado aquele despacho recorrido, o recorrente reactivou, então, o seu processo de “autorização de residência” na R.A.E.M., com o mesmo fundamento então invocado: “reunião familiar”;
14 - O Senhor Comandante do C.P.S.P. da R.A.E.M., em 29/06/2017, notificou o recorrente do “sentido provável” da decisão (de indeferimento) que, como então se disse em resposta, não era mais do que “... uma repetição da decisão do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, contra a qual se pronunciaram, inequivocamente, os Tribunais Superiores de Macau (T.S.I., e T.U.I.) em decisões .... já transitadas.”
15 - Em 09/02/2018, aproximadamente 8 meses depois, o recorrente veio requerer a execução da decisão, junto do T.S.I., processo que corre por apenso ao supra citado processo (Proc. nº 870/2015-A) e que ainda está pendente.
16 - A entidade recorrida, veio juntar aos autos cópia de tal despacho, do qual o recorrente ainda não tinha sido notificado.
17- O teor desse despacho é o seguinte:
Assunto: - Pedido de autorização de residência na RAEM (proc.nº P0000270969) - Requerente: A
Avaliando ponderadamente todos os factos, declarações e decisões constantes do procedimento administrativo instrutor, designadamente a diligência complementar de audição do Requerente, verifico o seguinte:
1- O Requerente reconhece que esteve preso de 12 de Maio de 1998 a 25 de Agosto de 1998, no Estabelecimento Prisional de Coloane, por ser fortemente suspeito da prática de vários crimes, alguns deles de enorme gravidade. Mas, instado a esclarecer a Administração sobre determinados aspectos dos factos, designadamente, (1) a razão pela qual, durante mais de uma década, não tomou a iniciativa de procurar saber do processo penal, e (2) se sabia que em 13.9.2013, foi proferida decisão judicial declarando extinto o procedimento criminal relativamente aos factos que estiveram na base da sua prisão preventiva, em 1998, e (3) como explicava que, passados apenas dois meses, em 15.11.2013, o Requerente voltou a entrar em Macau, depois deter estado 15 anos, 2 meses e 17 dias sem cá ter posto os pés, o mesmo optou pelo silêncio, sem qualquer explicação credível para essa falta de cooperação.
De resto, não é credível, segundo as regras da experiência comum, que uma pessoa que esteve presa durante 3 meses e se crê inocente, se alheie absolutamente dessa situação e não procure saber do destino ulterior do processo, ao menos para defender a sua honra pessoal.
Como também não merece qualquer credibilidade, segundo as regras da experiência comum, que o regresso do Requerente à RAEM, depois de mais de 15 anos sem vir à Região, e apenas dois meses depois de uma decisão judicial ter declarado a prescrição, nada tenha a ver com essa mesma decisão judicial e com o conhecimento da mesma.
2 - A motivação principal alegada pelo Requerente para o pedido de autorização de residência é a junção familiar. Todavia, instado a esclarecer quais foram as fortes e extraordinárias razões que o levaram a não se juntar à família em Macau e nem sequer a pôr os pés na Região, desde o seu casamento, em 2004, até finais de 2013, apesar de, durante esse período a sua esposa ter vivido e trabalhado em Macau e aqui terem nascido os seus dois filhos, o Requerente alegou, no essencial, que a razão foi o seu trabalho estável em Taiwan e a obrigação de cuidar de seus pais.
Ora, mais uma vez, não é minimamente credível, face às regras da experiência comum de vida, que uma pessoa que casa com uma residente de Macau, em 2004, com a qual tem filhos em 2009 e 2011, esteja tantos anos seguidos sem se deslocar de Taiwan a Macau, onde os seus filhos nasceram e vivem, e onde a esposa sempre tem vivido e trabalhado, apesar da evidente facilidade de deslocações, em termos de frequência e custos, entre os dois territórios.
Pelo contrário, em face das regras da experiência comum de vida, os factos e as declarações do Requerente indicam fortemente que o mesmo soube da sua acusação pela autoridade Judiciária e subsequente condenação por tribunal de Macau e de que seria detido caso aqui pusesse os pés. E assim se explica, objectivamente, que o mesmo tenha estado mais de uma década sem entrar na RAEM, em "fuga" ao mandado de notificação da sentença que o condenou, sem sequer vir presenciar os nascimentos dos seus filhos, e que, justamente, só cá tenha voltado escassos dois meses depois de proferida a decisão judicial que reconheceu a prescrição criminal.
Assim,
Exercendo o poder discricionário que me está legalmente conferido, por via do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, e da delegação de poderes operada por via do artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999, com as alterações subsequentes, e da Ordem Executiva n.º 111/2014;
Atendendo a que o uso de regras de experiência comum, desde que apenas subordinado à razão e à lógica, é um critério de apreciação e de valoração de factos em sede de exercício de um poder discricionário em matéria administrativa;
Afirmando que a presunção de inocência, de que beneficiam todos os cidadãos, incluindo os não residentes, não pode transformar-se numa presunção de idoneidade / honorabilidade para os não residentes que requeiram o estatuto de residentes da RAEM;
Reconhecendo que o acto de recusa de autorização de residência a um não residente é susceptível de inutilizar as expectativas dos requerentes, em especial, como é o caso em apreço, quando os mesmos têm familiares residentes de Macau;
Mas tendo em conta, por outro lado, que a autoridade administrativa só pode/deve atribuir a autorização de residência a requerentes cujas qualidades pessoais e honorabilidade estejam fora de qualquer dúvida razoável e, portanto, em relação aos quais não esteja em causa, prognosticamente, a garantia de que serão cidadãos cumpridores das leis de Macau e dos valores de cidadania prevalentes na Região, e que, no caso concreto do Requerente A, essas condições não se mostram reunidas, decido indeferir o pedido de autorização de residência formulado pelo mesmo.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 15 de Março de 2018.” (fls. 15 e verso).
17 - É desse despacho que ora recorre contenciosamente, depois que dele foi notificado pela entidade recorrida.
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IV – O Direito
1 - Introdução
As questões a conhecer no presente recurso são as seguintes:
a) Em primeiro lugar, as que se referem aos dois vícios que o recorrente inequívoca e expressamente invocou:
- Violação do princípio da presunção de inocência;
- Violação do princípio da boa fé.
b) Em segundo lugar, e agora cautelarmente, a que se reporta ao vício que, segundo se crê, terá sido implicitamente invocado, e que é o erro nos pressupostos de facto.
Vamos conhecê-los.
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2 - Da violação do princípio da presunção de inocência
O recorrente viu, por despacho de 19/05/2015, negada a sua pretensão de autorização de residência para reagrupamento familiar com fundamento nos alegados antecedentes criminais (prática de três crimes, pelos quais fora condenado na pena única de 6 anos de prisão, que não chegou a cumprir porque tinha sido anteriormente libertado do estabelecimento prisional em onde se encontrava detido na situação de prisão preventiva, e ausentado para Taiwan, interditado de regressar durante três anos).
O recurso contencioso interposto desse despacho foi, no entanto, procedente, vindo a ser, consequentemente, anulado o acto de indeferimento com o fundamento de que ele não tinha antecedentes criminais, face à prescrição do procedimento criminal judicialmente decretada.
O recorrente pediu, então, em sede de execução de sentença, a prática de acto renovador, no sentido de lhe ser concedida a autorização de residência.
Mas o acto renovador praticado aqui impugnado foi, de novo, no sentido de indeferir a pretensão. Os fundamentos estão vazados no despacho acima transcrito.
O recorrente, para densificar o vício, argumenta o que segue:
- O despacho em crise, no fundo, acaba por reiterar os fundamentos da decisão administrativa anterior, entretanto anulada judicialmente por sentença já transitada em julgado.
- Em sede de execução de sentença, deveria ter sido proferido despacho a conceder a autorização de residência para reagrupamento familiar, e não o impugnado que mais não faz do que repetir o de 19/08/2015, a que apenas agora foi adicionado o argumento da falta de idoneidade e de honorabilidade a si imputadas, pelo facto de ter estado detido preventivamente e condenado pela prática de 3 crimes, pelos quais fora condenado, em cúmulo, na pena única de seis anos de prisão.
Em suma, a ofensa ao princípio da presunção da inocência radicaria, na sua óptica, na circunstância de não poderem ser tidos em conta os ilícitos imputados na medida em que o respectivo procedimento fora julgado prescrito.
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2.1 - (Cont.)
A especificidade do caso não está tanto na circunstância de ter sido praticado um acto renovador com a mesma solução dispositiva do renovado, mas antes no facto de radicar no quadro contextual que esteve na base do primitivo.
Trata-se, portanto, de uma situação bem curiosa e sui generis, pois que, por um lado, não se pode fazer de conta que o recorrente não foi julgado e condenado, ainda que à revelia. Na verdade, ele foi julgado e condenado pela prática de três crimes. Estes factos (o facto do julgamento e o facto da condenação) aconteceram efectivamente, não há como negá-los!
Mas, por outro lado, os ilícitos criminais indiciariamente praticados pelo recorrente, e que terão estado na justificação da sua condenação, poderiam ser novamente razão, causa e fundamento do novo acto (renovador)?
É isto o que o recorrente pretende rechaçar no recurso, dando a entender que o acto se serviu de matéria que a prescrição, judicialmente decretada, eliminou. Mas, isto não é verdade.
Com efeito, os factos que estiveram na base da sua condenação não foram considerados de modo expresso e, em vez disso, foi deduzida nova fundamentação. O que o autor do acto afirma é que:
- Não se mostram reunidas no caso concreto as qualidades pessoais e de honorabilidade acima de qualquer “dúvida razoável” (1ª parte);
- O recorrente não oferece as garantias de que será cumpridor das leis de Macau e dos valores de cidadania prevalentes na RAEM (2ª parte).
Ou seja, no rigor dos termos, não está mais em causa o argumento dos antecedentes criminais, mas sim a revelação das qualidades do indivíduo, que o autor do acto entende não possuir, nem provavelmente virá a ter. Por conseguinte, juízos de valor (1ª parte) e de prognose (2ª parte) a partir dos factos seguintes:
- Nunca mais regressou a Macau durante cerca de 15 anos, nem após a sua libertação da cadeia onde estava detido em prisão preventiva, nem após o seu casamento em 2004;
- Nunca mais quis saber do processo-crime que contra si pendia em Macau e nunca mais veio visitar a família (mulher e dois filhos que entretanto aqui nasceram);
- O seu regresso só se verificou em 2013, dois meses após a decisão judicial de julgar prescrito o procedimento criminal pelos crimes de que havia sido condenado.
Portanto, a fundamentação do novo acto, ainda que partindo das premissas que alicerçaram o primitivo, é diferente. Já não são os antecedentes criminais que suportam o acto, mas sim razões de outra ordem.
Ora, isto em nada belisca o princípio da presunção de inocência, tão característico do processo penal. O recorrente só o invocou por confundir, porventura, o alcance da fundamentação vertida no acto. O acto não afirmou em lado nenhum que o recorrente é criminoso ou que cometeu algum crime no passado. Se o dissesse, tudo seria diferente, pois iria contra o resultado da decisão do TUI, que confirmou o acórdão do TSI quando asseverou que ele não tinha antecedentes criminais na sequência da extinção do procedimento criminal.
E se o não afirmou, o princípio invocado mantém-se ileso, assim como não se pode dizer estar ofendido o art. 8º, nº2, da LBOJ (Lei nº 9/1999) razão pela qual improcede o vício.
*
3 - Violação do princípio da boa fé
Arguiu o recorrente, de seguida, o vício epigrafado, previsto no art. 8º do CPA, com o argumento de que o acto “demonstra uma imponderação sobre os valores fundamentais do direito”.
Não disse, porém, os recorrente quais os valores fundamentais que não terão sido ponderados. Cremos que se referirá ao facto de ele ter projectado na sua consciência a ideia de que não mais seria incomodado ou perseguido por causa de crimes cujo procedimento prescreveu. Ou seja, teria ele criado a forte expectativa, a confiança talvez, de que poderia regressar a Macau e aqui se fixar e residir na maior das calmas.
Todavia, não resulta minimamente dos autos que a Administração tenha procedido de maneira a criar nele a convicção e expectativa de que a sua residência seria autorizada após a prescrição do procedimento criminal. E só uma actuação em tais moldes poderia caracterizar essa confiança.
De resto, como é geralmente entendido, este princípio apresenta-se exclusivo da actividade discricionária, como esta em presença mostra ser (v.g., Ac. do TUI, de 15/10/2014, Proc. nº 103/2014; do TSI, de 23/07/2015, Proc. nº 559/2014). Por assim ser, só perante actos concretos que, manifesta e grosseiramente, o violem pode a actuação da Administração ser sindicada judicialmente (v.g., Ac. do TUI, de 15/12/2016, Proc. nº 69/2016). E tal não parece ser o caso.
Improcede, pois, o vício em causa.
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4 - Erro nos pressupostos de facto
O recorrente chegou a afirmar que o acto lhe imputa factos que não existem na ordem jurídica da RAEM. Como se disse acima, não é muito clara a arguição deste vício e não chega a perceber-se muito bem se a alusão destacada foi feita com o propósito de preencher o vício referido na epígrafe.
Ainda assim, por mera cautela, apreciemo-lo nessa perspectiva.
Não tem razão.
Mais uma vez, o recorrente parte do princípio de que o acto se serve dos factos que estiveram na base da condenação: aqueles que preencheram os ilícitos pelos quais viria a ser condenado criminalmente na pena única de 6 anos. Talvez se deva a essa errada compreensão do acto que o recorrente acabe por integrar este “vício” no âmbito da violação do princípio da presunção de inocência).
Nós, porém, já vimos que o acto se demarcou dessa factualidade.
Sendo assim, não podemos dizer que o acto padece do “vício” em apreço.
Improcede, pois, o vício.
***
V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 8UCs.
T.S.I., 27 de Junho de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Mai Man Ieng
531/2018 20