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Processo n.º 178/2019
(Autos de recurso de decisões jurisdicionais do TA)

Relator: Fong Man Chong
Data: 06/Junho/2019

Assuntos:
    
    - Responsabilidade civil extracontratual por actos médicos
    - Pressupostos legalmente exigidos e critérios de avaliação
    - Dano moral sofrido pelos Autores pelo falecimento da filha e quantum indemnizatório

SUMÁRIO:

I - A responsabilidade civil, em geral, colhe os seus fundamentos na verificação de determinados pressupostos que são como é consabido: o facto e nexo de imputação, o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade, o facto é entendido na sua objectiva consideração e que consubstancia a violação do direito de outrem (ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios) - V. Prof. A. Varela "Das Obrigações em Geral" I, pág. 403-404 Prof. Manuel de Andrade, "Teoria Geral da Relação Jurídica", I pág. 337).
II - O nexo de imputação ou ligação do facto ilícito (por acção ou omissão) ao agente há-de conter uma imputação culposa, subjectiva e compreende o juízo que o agente fez não só objectivamente injusto, mas cuja injustiça ele conheceu ou pode conhecer e que tal lhe seja pessoalmente reprovável (cfr. Kart. Larenz "Derecho de Obligaciones", 11, 1959, pág. 570). O mecanismo da responsabilidade civil funciona, em geral, sempre da mesma forma, o facto (seja ilícito ou proveniente de uma actividade lícita) há-de ligar-se ao agente por um nexo de imputação (de natureza subjectiva ou objectiva respectivamente) e o dano ou prejuízo, por seu turno, há-de ligar-se a facto por um nexo de causalidade (V. Dário Martins de Almeida " Manual de Acidentes de Viação", 3a. edição, pág. 50).
III - Quanto à culpa, ela é a expressão de um juízo de responsabilidade pessoal da conduta do agente que, face ás circunstâncias especiais do caso, deveria ter agido doutro modo, ou por este ter actuado ou deixado de actuar contra o dever que se lhe impunha quer em actuação diferente, quer em actuação que não levou a cabo, tudo de acordo com as normas jurídicas tomadas na sua função imperativa estatuídoras de deveres ainda que gerais (v. Prof. A\. Varela, cfr. cit., I; pág. 442; Prof. Pessoa Jorge "Ensaio" sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 315 e Prof. Figueiredo Dias "o Problema de Consciência da Ilicitude). Por culpa deverá entender-se - diz Larenz (Derecho de Obligaciones II Vol. Pag.570) o juízo que o agente fez, não apenas objectivamente injusto, mas de cuja injustiça estava ciente ou podia estar.
IV - Actualmente é comum o entendimento que, nas relações entre o médico e o doente, o primeiro se obriga a prestar ao segundo, assistência médica, na decorrência da sua prestação de serviços e para satisfazer o interesse do doente, o médico tem de detectar o problema que o afecta, escolher e aplicar uma terapia que o debele ou atenue, segundo as melhores regras disponíveis no momento da prestação. A efectivação da responsabilidade de um médico depende da verificação cumulativa de um conjunto de pressupostos, que têm que ser demonstrados em juízo.
V - Assim, um médico incorre numa situação de incumprimento de “leges artis” quando se desvie do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissional da área, deve obedecer. O seu comportamento será ilícito se se desviou desse comportamento, tomado o seu agente como um elemento de um grupo caracterizado e diferenciado dentro da categoria geral dos profissionais médicos e da especificidade da situação.
VI – No caso são os seguintes factos que evidenciam a ilicitude:
- Foi cometido erro na entubação – vidé os factos provados descritos sob os nº 24º a 44º já acima transcritos (2ª intervenção cirúrgica), facto irrefutável;
- Se a entubação visava manter o fornecimento normal de oxigénio ao corpo da vítima, mas foi cometido erro neste aspecto (facto provado) por um médico da Ré, com isso se causaram “complicações” ao corpo da vítima, o que é uma situação quase “intolerável” face às circunstâncias concretas do caso e aos conhecimentos especializados que um médico tem e devia ter.
- Depois, demorava muito tempo para a detecção da falha cometida – vidé os factos assentes descritos sob os números 24º, 42º (todas as complicações começaram a surgir depois das 13H36, e até 15H00, com a intervenção de uma outra médica, é que veio a saber-se a verdadeira causa das “complicações” observadas). Aqui demorava-se cerca de 1 hora e meia.
VII - Será culposo, se se tomando em conta a especificidade do circunstancialismo em que o concreto agente actuou, se puder concluir que ao agente era exigível outro comportamento.
Considerando a obrigação que um médico assume de prestar assistência a um determinado paciente, pode-se concluir que o resultado imediato é, então, constituído pelo aproveitamento das reais possibilidades (chances) que o doente apresenta de alcançar a satisfação do resultado imediato – a cura, a sobrevivência, a não consumação de uma deficiência ou incapacidade.
Tal aproveitamento verifica-se mediante a adopção de um comportamento atento, cuidadoso e conforme às “leges artis” – que constitui, em suma, a tradicional obrigação principal (de meios) assumida pelo profissional de saúde.

VIII - Demonstrado o incumprimento desta “outra” obrigação, caberá ao médico, para afastar a responsabilização pelo “dano de destruição das possibilidades (ou chances)” provar que aplicou a diligência ou aptidão que lhe era exigível – por outras palavras, que satisfez o interesse mediato – mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida se gorou e as chances existentes se perderam.
A culpa de um médico, na falta de qualquer norma especifica sobre o assunto, é avaliada pela regra geral contida no nº2 do artigo 480º do Código Civil de Macau, ou seja, pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”. Importante para o direito não é erro cientifico em si, mas a causa humana do mesmo, ou seja, para o surgimento de uma obrigação de indemnizar não basta a verificação de um erro, antes se exige que ele assuma uma configuração tal, que torne o agente merecedor de um juízo de reprovação. E sê-lo-á, quando o percurso seguido pelo médico deva ser censurado – seja culposo.
IX – São os seguintes factos que provam a culpa médica imputada à Ré:
1) – No caso, perante o erro médico cometido, pergunta-se, porque é que só quando foi chamada a médica pediatra e esta sugeriu que fosse feito exame Raio-X é que se soube que o tubo foi mal colocado, em vez de estar na traqueia, estava no esófago??
2) – Pergunta-se, um médico de bom pai da família adopta este tipo de comportamento?
3) – No momento foi a médica pediatra é que explicou o fenómeno de “fornecimento normal” (falso, ou aparente) de oxigénio à vítima:
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
Os outros médicos desconheciam? Faltava-lhes experiência? Nenhum médico interveniente tinha conhecimento suficiente para controlar IMEDIATAMENTE esta situação?
4) – Mais, nesta fase, cerca de depois de quase 1 hora e meia é que se veio a detectar o erro cometido! É um tempo razoável para o saber? Em situações normais, se fossem outros médicos, também precisavam de tanto tempo de detectar o problema?
5) - De acordo com o que acima ficou exposto, era a Ré que tinha de alegar e provar que aplicava a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida.
6) - Não conseguiu no entanto, provar tal facto. Subsiste a culpa médica.
X - A consequência mortal do caso agora em apreciação vai contra o normal evoluir das coisas, contra a sucessão vulgar dos acontecimentos, pelo que, pensamos que caberia aos médicos demonstrar que aforam adoptadas todas as diligências necessárias e correctas, tudo de acordo com as legis artis.
XI - No caso, a morte de causa tem a ver com as “complicações cirúrgicas” durante as quais foram cometidos erros, que afectavam a circulação de oxigénio no corpo certo da doente, e os órgãos directamente afectados pela falta ou má circulação de oxigénio são cérebro e ainda pulmões! Consignou-se no relatório de autópsia: 1) Global Anoxic - Ischemic Encephalopathy (tradução portuguesa: Axónica global, encefalopatia isquémica (em chinês: 腦部缺氧) ; with mid brain, pons infarct and focal areas of subcortical infarct/necrosis, and presence of inflammatory processing of meninges with clumps of bacteria and occasional yeast/fungal spores. (…) Tudo isto são co-causas da morte, face à evolução cronológica dos factos e aos elementos provados nos autos.
XII - Tendo em conta que a morte da vítima causou aos AA. profunda dor, angústia, desgosto, sofrimento e revolta (alínea Q) dos factos assentes)., é justo fixar nestes termos o quantum indemnizatório no valor de MOP$500,000.00 (meio milhão) para cada um dos progenitores (pai e mãe), totalizando MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas), julgando-se deste modo procedente o pedido dos Autores, revogando-se a sentença do TA ora recorrida.
    
     O Relator,

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Fong Man Chong

Processo n.º 178/2019
(Recurso de decisões jurisdicionais do TA)

Data : 06/Junho/2019

Recorrentes : - A (A)
- B (B)

Recorrida : - Direcção dos Serviços de Saúde (衛生局)


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    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
    
    I - RELATÓRIO
A (A) e B (B), Recorrentes, devidamente identificados nos autos, tendo proposto uma acção de responsabilidade civil contra a DSS por morte da sua filha após intervenções cirúrgicas, tendo o TA proferido a decisão, datada de 29/10/2018, que julgou improcedente o pedido dos Recorrentes (responsabilidade civil a título de danos morais sofridos pelos Autores), com esta não se conformando, vieram, em 12/12/2018, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 336 a 354, tendo formulado as seguintes conclusões :
1. Os Recorrentes entendem que, com o devido respeito, o Tribunal Administrativo não andou bem ao interpretar a matéria de facto dada como provada.
2. Da matéria dada como provada resulta evidente que os médicos desde o início tiveram dificuldades em entubar a vítima, que suspeitavam que ela sofria de “Treacher Collins Syndrome” e ainda assim insistiram, reiterada e sucessivamente, a entubá-Ia de forma adequada a uma criança daquela idade em circunstâncias normais.
3. Resulta ainda da matéria de facto dada como provada que os médicos tentaram, pelo menos, sete vezes entubar a vítima, tendo sucedido em quatro dessas tentativas.
4. Bem assim como, resultou provado que, pelo menos, na terceira vez que entubaram a vítima, fizeram-no no esófago e não na tragueia e não só não deram pelo erro como foi necessário que um terceiro médico viesse, analisasse a vítima e sugerisse a realização do raio X para determinar onde estava o tubo.
5. A vítima foi tantas vezes entubada entre as 13h00 e as 18h00 horas que os médicos se aperceberam ao fim da tarde que as cordas vocais estavam fora do sítio.
6. Acresce que o relatório da autópsia descreve danos cerebrais e nos pulmões, os quais se devem à falta de oxigénio e excesso de CO2 que a vítima sofreu.
7. E é descrita uma úlcera na traqueia a qual só poderia ter sido causada pelos sucessivos entubamentos realizados à vítima.
8. E não lasse o entubamento ser mal realizado, não seria necessário extubar e de imediato entubar novamente, como aconteceu várias vezes durante aquela tarde.
9. Sempre da mesma forma e sempre com o mesmo tubo, apesar das condicionantes da vítima e apesar das dificuldades sentidas no entubamento.
10. Pelo que não se entende, com o devido respeito, como pôde o Tribunal Administrativo entender, por um lado, que não houve erro e por outro que não foi a actuação dos médicos que levou ao resultado, neste caso, a morte da vítima.
11. Acresce que, é insuportavelmente restritivo e exigente considerar que os Recorrentes em sede de causalidade adequada, têm de provar que certo tratamento ou intervenção foi omitido ou que os meios utilizados foram incorrectos ou insuficientes e que, com isso, se produziu um dano, dada a falta de conhecimentos técnico-científico destes em relação à R. e aos médicos.
12. Razão pela qual existe já uma grande parte da doutrina que entende que nestas situações os Recorrentes podem ser libertos do ónus de convencer o julgador que o comportamento reprovável do médico constituiu uma condição de produção do dano e que este, sem aquele comportamento, não se teria produzido.
13. Assim, para concluir pela existência do nexo de causalidade, não é necessário demonstrar-se ‒ com carácter de certeza ‒ que a tempestiva e assertiva execução duma determinada prestação médica teria seguramente evitado o resultado danoso, sendo para tanto suficiente uma probabilidade razoável.
14. O Tribunal não podendo recorrer a presunções legais, pode, nestes casos, recorrer a presunções judiciais e através de regras de experiência comum ou de regras técnicas, estabelecer o nexo causal entre o concreto comportamento do médico e o dano específico sofrido pelo doente.
15. Ademais, refira-se que a existência do formulário em que o paciente ou, neste caso, os pais da paciente, prestaram o seu consentimento, foi dado com a confiança de que os eventuais Meios Complementares de Diagnóstico e tratamentos que venham a suceder-lhe sejam realizados de acordo com a diligência e técnica necessárias, e, claro, desde que medicamente indicados para o caso.
16. Isto significa que o erro médico culposo, procedente de uma conduta incompatível com a do médico razoável ou mediano, não se poderá incluir no âmbito do consentimento prestado pelo paciente, pelo que, verificando-se cumulativamente, os outros pressupostos da responsabilidade, o médico poderá efectivamente ser responsabilizado pelos danos decorrentes do seu comportamento ilícito.
17. Há que concluir, portanto, que se o erro médico produz um resultado lesivo ou põe em perigo grave de lesão a saúde ou vida do paciente, bem como aquele que, tendo sido fruto da violação de um dever de cuidado, sem a verificação de toda a diligência possível do médico, assumem uma relevância jurídico-civil por se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil.
18. Nos presentes Autos, resultou provado que a conduta dos médicos que assistiram a vítima não correspondeu à obrigação de fazerem o que estava ao seu alcance, dentro dos meios e conhecimentos especiais de que dispunham, ou seja, existiu, efectivamente, neste caso, uma divergência objectiva entre os actos praticados e aqueles que seriam adequados a que o resultado ‒ a sobrevivência da vítima ‒ se pudesse produzir.
19. O dano aqui em causa ‒ a morte da vítima ‒ deveu-se a uma conduta culposa por parte dos médicos que não usaram os meios auxiliares de diagnóstico e os conhecimentos que tinham ao seu dispor e, se o tivessem feito, o dano poderia ter sido evitado, na medida em que não atenderam às características físicas da vítima, sabiam que existia a possibilidade da vítima ter Síndrome de Trechor Collins mas não o confirmaram, conheciam a malformação física da vítima, mas apesar de todo este conhecimento programaram e realizaram uma entubação normal, destinada a pessoas sem malformações físicas, e apesar de verificarem dificuldades na sua realização, efectuaram várias e sucessivas tentativas de entubação da vítima.
20. No fundo, os médicos tinham a obrigação de terem agido de outra forma, de terem realizado determinados exames que lhes teriam permitido um diagnóstico certo e de terem assistido e medicado a vítima em conformidade.
21. Não fora esta sua conduta ilícita e culposa de não procederem do modo a que estavam obrigados pela lege artis e teriam dado à vítima a possibilidade de sobreviver, ou pelo menos, uma muito maior probabilidade de sobrevivência.
22. Podemos falar aqui, no conceito de perda de chance, que muitas vezes se tem aplicado no Direito Internacional, em situações semelhantes, pois foi por via do incumprimento, em sentido lato, ilícito e culposo que a vítima e os aqui Recorrentes perderam a chance que efectivamente tinham de vir a obter o resultado correspondente ao seu interesse primário ou final, pelo que a perda de chance constitui um dano autónomo e indemnizável.
23. Como se sabe, a medicina é uma ciência inexacta, comportadora de riscos, pelo que naturalmente não será facilmente aferível, com 100% de certeza, que determinada conduta é causalmente adequada à produção de um determinado dano. E se esta dificuldade se faz sentir entre peritos, torna-se muito mais evidente na esfera do paciente, leigo na matéria.
24. O recurso à perda de chance mostra-se, assim, um meio útil de distribuição da álea do risco da actividade médica, através de uma distribuição mais justa e igualitária do ónus probatório, sem que se inverta totalmente o paradigma actual.
25. Ora, nos termos do artigo 477.º do Código Civil aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, tendo-se aqui provado a responsabilidade da R..
26. E ainda que se considere que não se conseguiu, aqui, fazer prova do nexo causal entre o facto e o dano, não podemos deixar de repetir aqui que não fora a actuação dos médicos e teríamos a possibilidade da vítima ter sobrevivido, pelo que, é aplicável neste caso, a teoria da perda de chance.
27. Pois a verdade é que a morte da vítima poderia ter sido evitada com o adequado tratamento, pelo que, a conduta dos médicos em causa não é de considerar indiferente na produção do dano, aliás, parece-nos perfeitamente razoável considerar que sem a conduta dos médicos ‒ ilícita e culposa ‒ a morte não teria acontecido.
28. Assim, com o devido respeito, deve a sentença do douto Tribunal ser revogada e deve ser considerado procedente o pedido dos ora Recorrentes e a R. condenada naquele.
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A Direccção dos Serviços de Saúde (衛生局), Recorrida, contra-alegou nos termos constantes de fls. 359 a 373, tendo formulado as seguintes conclusões :
1.°
ENQUADRAMENTO
1. Através dos presentes autos pretendem os recorrentes que o demandado seja condenado no pagamento de uma indemnização em virtude de, após a realização de intervenção cirúrgica, a filha de ambos ter falecido.
2. Proferida a sentença do Tribunal a quo, alegam os recorrentes (i) que o Tribunal não ponderou correctamente a matéria de facto provada, (ii) que não deve ser exigida dos recorrentes a demonstração do nexo de causalidade e (iii) que basta a perda de chance para a efetivação da responsabilidade civil.
3. Ressalvado o respeito devido, não assiste razão aos recorrentes.
2.°
O JULGAMENTO E A SENTENÇA
4. Realizado o julgamento, deu-se como provada determinada matéria de facto, e como não provada outra matéria de facto.
5. Dá-se por reproduzida a matéria de facto assente, os factos julgados provados e a matéria de facto não provada.
6. Sem prejuízo, pela sua relevância importa elencar as seguintes conclusões alcançadas em matéria de julgamento da matéria de facto:
a) Não se provou que os médicos e técnicos de saúde do CHCSJ não avaliaram o risco quanto à intervenção cirúrgica realizada na paciente;
b) Não se provou que a morte da paciente podia ter sido evitada com diagnóstico e tratamento adequado dos técnicos de saúde do CHCSJ;
c) Não se provou que as complicações referidas na certidão de óbito (segundo a qual a causa directa da morte da paciente foi outras complicações cirúrgicas e de assistência médica, não classificadas noutros itens), não ocorreram por consequência da condição física de que a paciente padecia.
7. Em apreciação da prova testemunhal produzida, afirmou o Tribunal a quo que, “Nos processos denominados de erro ou negligência médica (...), cabe por banda da paciente ou [de] quem a representa demonstrar que não foi cumprida a “legis artis”, ou seja, que segundo os conhecimentos da medicina ao tempo em que os actos foram praticados, o procedimento a ter devia ter sido outro, que não o que foi usado, ou que foi omitido o procedimento técnico que naqueles casos deve ser usado.
Alegar-se que a paciente sofria de TCS ou que havia suspeitas de ter TCS ‒ Treacher Collins Sundrome - não é bastante para depois daí extrapolar que das suas condições era necessário ter outros cuidados que não foram usados ou proceder de forma que não foi usada.
Da prova produzida, em momento algum foi dito ou sequer aflorado [o] que é que se devia ter feito e não se fez ou o que é que se fez de forma errada e que haja sido causa dircta e necessária das lesões que levaram à morte, matéria esta que, aliás, salvo melhor opinião, já não em alegada de forma suficiente.
Por fim, quanto à própria causa da morte, em face do relatório de autópsia, não se consegue apurar o que desencadeou as causas que a vieram a gerar.
Destarte, com base na prova testemunhal e os documentos existentes no processo não tem o tribunal elementos para que, com a certeza jurídica necessária, possa aferir se as lesões que a paciente sofreu e de que lhe advieram a morte, resultaram de qualquer má deformação congénita, problema de saúde ocorrido no pós-operatório ou omissão de cuidados médicos ou cuidados médicos incorrectos no pós-operatório, sendo certo que, quanto a esta última parte, não se alegava nem se demonstra que cuidados médicos haviam de ter sido praticados e foram omitidos ou que procedimentos se praticaram em desacordo com os procedimentos médicos que se devem adoptar, pelo que a resposta à matéria que ficou por responder da base instrutória não poderia ser outra que não a negativa”.
8. Na sentença proferida, e no que ora releva, concluiu o Tribunal a quo que não se verificou a ilicitude dos actos médicos praticados, não tendo ficado demonstrada a violação de normas legais, de princípios gerais aplicáveis ou de regras de ordem técnica ou de prudência comum.
9. Concluiu que não foi demonstrada a violação da leges artis ou que, segundo os conhecimentos da medicina ao tempo em que os actos foram praticados, o procedimento a adoptar devia ter sido outro que não o que foi usado, ou que foi omitido procedimento técnico que naqueles casos devia ter sido usado.
10. E, daqui, considerou o Tribunal a quo que inexiste facto comprovado a indiciar qualquer nexo de causalidade entre a intervenção cirúrgica, as lesões sofridas pela paciente e, subsequentemente, os danos alegados pelos ora recorrentes.
11. Concluiu-se, pois, na sentença recorrida que improcede a acção proposta, no que não merece nenhum reparo.
3.°
DIREITO
A. ENQUADRAMENTO
12. Ninguém questionará o nível de dificuldade que envolve a prestação de cuidados médicos.
13. Para além da complexidade da técnica, a prática da medicina envolve um elevado grau de complexidade situacional - cada doente é único, nunca se replicando as situações de doentes.
14. Por isso se costuma dizer que “não há doenças, há doentes”.
15. Não há, por muito que custe aceitar a todos - pois todos têm que lidar com a finitude da vida -, um controlo absoluto de todos os factores susceptíveis de desencadear um resultado indesejado.
16. Por outras palavras, há sempre, por maiores que sejam os avanços da ciência, e por maior que seja a diligência empregue, uma margem de risco que é incontornável.
17. Não se pode prever tudo, não se pode evitar tudo.
18. E é por isto - por esta ineliminável margem de risco associada ao exercício da medicina - que a prestação de serviços médicos constitui sempre, do ponto de vista jurídico, uma obrigação de meios, e não uma obrigação de resultado.
19. Os médicos têm o dever de tratar. Mas não têm - porque tanto não lhes pode ser exigido - o dever de curar.
20. Os médicos têm o dever de empregar todos os seus conhecimentos e todos os meios ao seu alcance para evitar um resultado danoso; mas não têm o dever, nem podem garantir, que esse resultado não se vai verificar.
21. E quem diz os médicos, diz também a organização em que se inserem: nada, nem ninguém, pode garantir um resultado, quando está em causa o exercício da medicina.
22. Muito menos quando se trata de uma intervenção cirúrgica.
23. Nesse sentido, podem ser os médicos, ou a entidade para que trabalham, a assumir todos os riscos da (sobre) vivência humana, porque o resultado indesejado pode decorrer de uma condição do próprio paciente, ou porque, simplesmente, às vezes verificam-se situações cuja causa não é cognoscível, situações que nem se compreende como ocorreram, mas que, inelutavelmente, ocorrem sem que pudessem ter sido previstas, sem que pudessem ter sido evitadas.
24. Foi o caso: “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens”, significa isso mesmo: não se sabe o que correu mal, só se sabe que correu mal.
25.· Mas, tratando-se da responsabilidade médica, e por grave que seja o resultado, isto não chega, a não ser que se exigisse aos médicos que nada, nunca, pudesse correr mal, que se exigisse aos médicos o controlo absoluto de todas as circunstâncias, que nem os médicos têm, nem ninguém tem.
26. E o certo é que uma intervenção cirúrgica - qualquer que seja - comporta sempre um risco.
27. Não há, nem ninguém pode acreditar que haja, uma intervenção cirúrgica sem risco.
28. Dizer que implica um risco significa dizer, precisamente, que podem factores desconhecidos, ou conhecidos mas não controláveis ou evitáveis, ditar um resultado indesejado, que, mesmo fazendo os médicos tudo o que sabem e tudo o que podem, ainda assim pode o resultado não ser o pretendido.
29. Quem aceita submeter-se a uma cirurgia, aceita esse risco, não podendo pretender transferir esse risco para os médicos.
30. É por isso que se requer o consentimento: para que fique clara a partilha de riscos entre médico e paciente.
31. Na presente acção não bastava, pois, aos recorrentes demonstrarem que se verificou o resultado, antes teriam que demonstrar que esse resultado se deveu à actuação ilícita e culposa dos médicos e que não foi, tão-só, a realização do risco que é ineliminável em todos os procedimentos cirúrgicos que conduziu ao resultado.
32. Os recorrentes teriam que ter demonstrado - e não o fizeram - que o resultado se deveu à violação das leges artis, de deveres de cuidado e de zelo ou de qualquer parâmetro jurídico, e não apenas que se verificou o resultado.
33. Teriam que demonstrar, por outras palavras, que houve violação da obrigação de meios, não se bastando com a demonstração do resultado, e teriam que demonstrar que foi a violação da obrigação de meios que constitui a causa do resultado.
34. Não basta, pois, afirmar que se verificou um resultado na sequência de uma cirurgia, porque as cirurgias comportam um risco - um risco, portanto, de se verificar o resultado - e por isso mesmo é preciso demonstrar que não se está perante essa verificação do risco, mas antes perante a violação de deveres que originaram o resultado.
35. Falharam os recorrentes na demonstração da violação dos meios, só cuidando da demonstração do resultado na sequência da cirurgia.
36. Falharam igualmente na identificação dos meios que deveriam ter sido empregues e que evitariam o resultado que, infelizmente, se verificou.
37. Mas quem actuou de forma errada - e censurável - de forma a produzir o resultado indesejado? Foi o médico y ou o médico x, que fez a quando podia e devia ter feito b, e que por sua vez foi causa da morte?
38. Os recorrentes não o demonstram, nem o poderiam demonstrar, pois não se está perante a violação das obrigações dos meios, do dever de empregar os meios para evitar o resultado, mas tão só perante um resultado que se verificou apesar de serem empregues os meios devidos, cabendo a todos - e também aos recorrentes - suportar esse risco, por dolorosa que seja a situação. Por insuportável que seja o confronto com a finitude da vida, o certo é que não se pode procurar “responsáveis” onde estes não existem, não se pode, simplesmente, transferir para os médicos o peso da nossa finitude. Dito isto,
39. O Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, estabeleceu o regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, dos seus titulares e agentes por actos de gestão pública no território de Macau.
40. Exige-se aí, para operar a responsabilidade civil extracontratual, que ocorra a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o acto ou a omissão ilícita e o dano.
41. É este o regime legal (ainda hoje vigente) aplicável de um modo geral à responsabilidade civil dos entes públicos - e até 2016 era este o regime por referência ao qual se aferia a existência de responsabilidade civil por actos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos.
42. Posteriormente, a Assembleia Legislativa de Macau aprovou, nos termos da alínea 1) do art.° n.º 71.° da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, a Lei n.º 5/2016, de 29 de Agosto, que, por sua vez, instituiu o novo regime jurídico do erro médico, adaptando o regime geral da responsabilidade civil à realidade dos actos médicos, explicitando os direitos e os deveres que já resultavam contidos no regime geral, quando aplicados a esta realidade da vida em sociedade.
43. Importa, como tal, compreender o regime jurídico assim criado, ainda que não aplicável à data dos factos, por permitir dar subsídios para a interpretação das normas aplicáveis à realidade da responsabilidade médica.
44. Dir-se-á que esse novo diploma veio constituir o novo standard para as decisões sobre a matéria em discussão, não sendo despicienda a possibilidade de interpretação das normas previstas no Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, com o sentido que veio a ser expressamente acolhido pelo legislador em 2016.
45. No que respeita à definição do seu âmbito de aplicação, refere o artigo 1.º da Lei n.º 5/2016 que “[a presente lei] estabelece o regime jurídico do erro médico, a fim de salvaguardar os direitos e interesses legítimos dos utentes e dos prestadores de cuidados de saúde”, esclarecendo que se entende por prestadores de cuidados de saúde “qualquer pessoa singular ou colectiva que desenvolva actividades de prevenção, diagnóstico, tratamento ou reabilitação na área da saúde no sector público ou privado”.
46. Nesse sentido, comece por dizer-se que o conceito central da Lei n.º 5/2016 é o de erro médico, sendo considerado como tal o facto emergente de acto médico praticado, com violação culposa de diplomas legais, instruções, princípios deontológicos, conhecimentos técnicos profissionais ou regras gerais na área da saúde, que cause danos para a saúde física ou psíquica dos utentes, quer seja por acção ou por omissão (cfr. art.º 3.°).
47. Se se atentar na definição, é possível discernir que a mesma engloba já os elementos típicos da figura da responsabilidade civil, i.e. (i) facto voluntário; (ii) ilicitude; (iii) culpa; (iv) dano; e (v) nexo de causalidade.
48. Dito de outro modo, para existir erro médico devem, desde logo, estar preenchidos tais pressupostos, o que inclui a identificação do autor da conduta activa ou omissiva, a demonstração da ilicitude da sua conduta, a demonstração da culpa, a demonstração do dano e a demonstração do nexo de causalidade adequada entre a conduta ilícita e o dano.
49. Não obstante o que se referiu, o artigo 20.° da Lei n.º 5/2016 regula o regime jurídico da responsabilidade civil dos prestadores de saúde, determinando que esta encontra-se sujeita ao regime jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos1.
50. Neste ponto, importa tomar em linha de conta que, em Macau, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Última Instância, a responsabilidade civil por erro no contexto da prestação de cuidados de saúde em hospitais públicos a utentes dos Serviços de Saúde de Macau reveste natureza exclusivamente extracontratual (cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 18 de Janeiro de 2006, Processo n.º 23/2005, num caso que se refere precisamente ao Hospital Conde S. Januário;
51. No direito comparado, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo português, de 16/1/2014, processo n.º 0445/13, disponível em www.dgsi.pt: “a responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos imputados a um Hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde não tem natureza contratual, sendo-lhe aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos”).
52. O que se referiu acerca da natureza da responsabilidade civil não é despiciendo uma vez que nesta modalidade de responsabilidade civil cabe ao autor a prova de todos os pressupostos, os quais, conforme se fez referência e de acordo com a Lei n.º 5/2016, se podem considerar, cumulativamente, o facto ou omissão do agente, a ilicitude da conduta, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
53. Só após se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil por erro médico (i.e., só após ser devidamente imputada a um ou vários sujeitos o facto ou a omissão ilícitos, culposos e geradores de dano) é que se pode aferir o modo como essa responsabilidade pode ser perpassada para a Administração.
54. Nessa circunstância, importará verificar que o regime do erro médico vigente é o da responsabilidade do comitente por actos do comissário.
55. Com efeito, depois de remeter para o Código Civil no que respeita aos pressupostos de responsabilidade civil, a Lei n.º 5/2016 volta a fazê-lo ao consagrar que “o comitente que encarregue os prestadores de cuidados de saúde da prática de qualquer acto médico que vier a resultar em erro médico responde pelos danos que aqueles causarem aos utentes, nos termos do disposto do artigo 493.° do Código Civil” (cfr. artigos 20.° e 22.°, n.º 1).
56. Sendo esta a solução alcançada pelo legislador em concretização do regime geral da responsabilidade civil, é manifesta a inoperância da alegação dos recorrentes quanto (i) a uma suposta degradação na exigência da alegação e demonstração do nexo de causalidade e (ii) a uma suposta suficiência da tese da perda de chance.
B. A PRETENDIDA DEGRADAÇÃO DA EXIGÊNCIA NA AFERIÇÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE
57. No que respeita à suposta degradação na exigência da alegação e demonstração do nexo de causalidade, importa começar por referir que estes partem de um erróneo ponto de partida.
58. Ao contrário do que pretendem os recorrentes, o nexo de causalidade não exige a demonstração “- com carácter de certeza - de que a tempestiva e assertiva execução duma determinada prestação médica teria seguramente evitado o resultado danoso”.
59. Diferentemente, a demonstração do nexo de causalidade tem na sua base a concepção de que o prejuízo deve recair sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano, na formulação negativa a que adiante se aludirá.
60. Contudo, como se verificará, os recorrentes não lograram demonstrar que (i) houvesse ilicitude (ii) criadora da condição do dano.
61. Ainda em sede de prolegómenos, importa rejeitar no caso concreto qualquer putativo desequilíbrio entre as partes perante os factos, v.g. em resultado do nível de conhecimento entre as partes ou a respectiva preparação técnico-científica.
62. É que, em juízo, nenhuma das partes se apresenta isoladamente e sem a possibilidade de alegar e demonstrar factos demonstrativos das suas razões através dos meios de prova que tem ao seu dispor.
63. Para mais num caso como o dos autos, em que o ora recorrido disponibilizou a informação médica e clínica completa que, nessa medida, pôde ser analisada, escalpelizada e, se fosse o caso, contrariada pelos recorrentes.
64. Ao referido anteriormente quanto à distribuição do ónus de demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil não se opõe o estudo realizado pelo Centro de Estudos Judiciários em Portugal referenciado pelos recorrentes nas suas alegações de recurso - e de que parte em substância toda a alegação de recurso.
65. Desde logo, é importante notar que nesse estudo não advoga que se prescinda da demonstração do carácter ilícito da conduta médica ou que tenha lugar a inversão do ónus da prova.
66. Senão veja-se que aí se rejeita que ocorra qualquer inversão do ónus da prova em resultado da consideração da actividade médica como uma actividade perigosa face ao artigo 493.°, n.º 2, do Código Civil português - em termos idênticos aos previstos no artigo 486.°, n.º 2, o Código Civil.
67. Indica-se nesse estudo que “«salvo raras excepções, por referência às quais o problema terá de ser reequacionado, o médico não aumenta extraordinariamente o nível de perigo já existente»180. «Dito de outro modo, não é o médico com o seu agir que aumenta a propensão para a ocorrência do dano, resultando aquela de uma situação preexistente, clinicamente identificável com o estado patológico do doente»181. «Nessa medida, não fará sentido a mobilização do artigo 493.°, n.º2, CC para resolver uma questão deste tipo»182 183”2.
68. Com efeito, “não podem subscrever-se afirmações genéricas de que «toda a actividade médica seja perigosa, ou mesmo que toda a actividade cirúrgica se subsuma a esta norma, nem mesmo que todas as operações cirúrgicas que envolvam a abertura do abdómen sejam perigosas», ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA in “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica” cit., p. 761”3.
69. E “embora seja seguro que «qualquer intervenção médico-cirúrgica comporta riscos» (basta pensar que «a simples prescrição medicamentosa é acompanhada por uma infinidade de contra-indicações»), isto não é suficiente para qualificar a actuação dos profissionais de saúde como perigosa e, nesse sentido, sujeitá-los ao regime de responsabilidade plasmado no artigo 493.°, nº 2, do Cód. Civil, MAFALDA MIRANDA BARBOSA in “Notas esparsas sobre responsabilidade civil médica - Anotação ao Acórdão do STJ de 22 de Maio de 2003” publicado in Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 4, nº 7 - 2007, pp. 119-150 [p. 138]”4.
70. Isto mesmo é confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, de 25/02/2015, processo n.º 804/03.2TAALM.L.S1, ali citado, segundo o qual, “«A actividade de prestação de serviços médicos não se enquadra na previsão do art. 493.°, n.º 2, do CC, prevendo a responsabilidade pelo risco, por tal actividade não ser, na sua essência, genericamente, perigosa, nem por si nem nas suas consequências, devendo, por isso, o que retira proveito daquela sofrer as consequências da sua prática e prová-las, sendo excessiva a presunção de culpa no caso da actividade médica». Isto porque «A responsabilidade médica só em situações muito excepcionais se deve considerar excepcionalmente perigosa, o que teria a desvantagem, se fosse de assumir como regra, de conduzir a medicina com efeitos defensivos, trazendo o efeito de retardar o progresso em certas especialidades em prejuízo para o próprio doente, além de conduzir a inqualificáveis repercussões na dignidade pessoal e profissional do médico; de nada se lucrando alargar, sem reflexão, as hipóteses de responsabilidade objectiva, sendo salutar que a compensação pelos danos acidentais do acto médico, pelas suas “faults”, se processe por meio de um seguro ou fundo de garantia, com vantagem para o paciente que não tem que arrostar o cansaço do processo e as dificuldades patrimoniais do médico em suportar o montante dos danos»”5.
71. E quanto à inversão do ónus de prova em virtude da ocultação de informação por parte do Hospital, também mencionado no estudo do Centro de Estudos Judiciários, também ela não tem por que verificar-se no caso dos autos, visto que toda a informação clínica foi disponibilizada.
72. Ou seja: não ocorre a inversão do ónus da prova quanto à ocorrência de condutas ilícitas ou violadoras de normas técnicas ou da leges artis nem tal estudo o advoga.
73. E certo é que os recorrentes não fizeram tal prova de que tenha havido um facto ilícito que tenha sido condição do dano.
74. O que se afigura bastante - o Tribunal a quo assim o considerou - para julgar improcedente a acção.
75. Almejam os recorrentes almejar a utilizar presunções judiciais quanto ao nexo de causalidade, aportando para tanto o exemplo da doutrina portuguesa - influenciada fundamentalmente pela jurisprudência italiana.
76. Contudo, a jurisprudência portuguesa - citada nesse mesmo estudo do Centro de Estudos Judiciários - é esmagadora em apenas admitir (quando admite) presunções judiciais de nexo de causalidade quando ocorra a prática de actos violadores de normas jurídicas, de regras técnicas ou da leges artis.
77. Aliás, os exemplos de casos em que naquele estudo do Centro de Estudos Judiciários se admite a presunção judicial de que o acto médico é causa do dano, têm um ponto em comum: em todos eles é evidente, palmar, notório que o médico errou.
78. Ou seja, a presunção judicial não opera relativamente ao nexo de causalidade enquanto não se demonstrar o acto ilícito.
79. Mesmo no caso da autora C, amiúde citada naquele estudo e igualmente citada nas alegações, é esta mesma autora que, perante o funcionamento de presunções judiciais do nexo causal, afirma “a necessidade de isso ser feito com as maiores cautelas (porque «a medicina depende de tantos factores que escapam ao controlo, e mesmo ao conhecimento do médico, que o uso mais leviano destas doutrinas (...) arrisca-se a tornar o médico numa espécie de seguro do paciente, dado que não apenas se presume a sua culpa, e com isto se torna quase uma responsabilidade objectiva, como acaba também por se presumir o seu contributo causal, e com isto deixa de ser uma responsabilidade jurídica») (...)”6.
80. É esta mesma autora que afirma que “só existe falta médica quando o médico viola, cumulativamente, uma lei da arte e o dever de cuidado que lhe cabe, e assim se afasta daquilo que dele é esperado naquele caso”7. E é ainda esta autora que indica que “[n]o âmbito da responsabilidade médica a doutrina da causalidade adequada pretende demonstrar a relação de causa/efeito entre a violação das leges artis e o resultado antijurídico verificado, ou seja, o dano sofrido pelo paciente” (cfr. Do acto médico ao problema jurídico, p. 57).
81. Ainda em reforço da conclusão de que nenhuma teoria de presunção judicial afasta o ónus do autor em alegar e provar a ilicitude da conduta, afirma C:
“A ilicitude do acto médico tem que ser sempre demonstrada pelo lesado, nunca se presume. Muito menos deriva, sem mais, do mero facto de o resultado obtido não ser aquele almejado. «IV - Não estando em causa a prestação de um resultado, quando se invoque o cumprimento defeituoso é necessário provar a desconformidade objectiva entre o acto praticado e as leges artes, só depois funcionando a presunção de culpa, a ilidir mediante prova de que a desconformidade não se deveu a culpa do agente. V- O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso (acto ilícito), ele mesmo» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/092007, processo n.º 07A2334]. Pode suceder que o paciente sofra danos, e mesmo danos graves, porém, não se prove que a conduta dos médicos que o intervencionaram se afasto pelas leis da arte. (...) Ora, a presunção de ilicitude não tem qualquer fundamento jurídico nem se estriba em considerações de razoabilidade. Nem sequer nas obrigações de resultado se verifica uma presunção de ilicitude, mas tão-só de culpa, sendo que, além do mais, a obrigação médica é, em regra, uma mera obrigação de meios.
As presunções de culpa não têm poder para arrastar consigo uma concomitante presunção de ilicitude. A ideia que deve presidir à averiguação da ilicitude traduz-se no pressuposto de que «o facto de um determinado tratamento clínico não produzir os resultados desejados não significa, por si só, que tenha havido erro médico e que tenha sido este o causador das malezas de que o Autor se queixa»”8
82. Do referido resulta evidente que não se prescinde nunca do ónus de demonstração da ilicitude (que era dos recorrentes) e, só a partir daí, é que se poderia acorrer a uma presunção judicial de nexo de causalidade.
83. De outro modo ter-se-ia (i) a presunção de ilicitude e (ii) a presunção de nexo de causalidade. Ou seja, deixaria de se estar perante uma obrigação de meios para passar a estar-se perante uma obrigação de resultados e passaria a estar-se perante uma responsabilidade objectiva. Dois resultados que são afastados pelas normas legais aplicáveis.
84. Finalmente, acresce que nenhum dos exemplos em que poderia operar a presunção judicial mencionados nos artigos 16.º e 17.º das alegações de recurso, se verifica no caso dos autos.
85. Improcede, pois, a pretensão dos recorrentes.
C. A PRETENDIDA SUFICIÊNCIA DA TESE DA PERDA DE CHANCE
86. A este título, da suficiência da verificação de uma perda de chance para efectivar a responsabilidade civil peticionada, releva afirmar, lapidarmente, “o óbvio: o funcionamento desta teoria pressupõe, como seu requisito essencial, a ilicitude e a culpa, uma vez que se destina apenas a agilizar a solução de casos em que a existência do nexo causal é duvidosa. Logo, não é legítimo recorrer à perda de chance quando não se possa sequer apontar o tal comportamento ilícito e culposo e se queira fazer funcionar a perda de chance para colmatar estas insuficiências”9. “Assim, para o doente ser indemnizado pelo dano final, terá necessariamente que demonstrar que o médico não actuou como devia, porque os seus actos ficaram, na quantidade ou na qualidade, aquém do modelo de actuação que lhe era exigido. (...) Julgamos que assim será, até porque o risco - as chances de insucesso - inerente à actividade médica, que reflecte o seu carácter aleatório, é assumido, em regra, pelo doente, na medida em que, devidamente esclarecido, presta o seu consentimento para o acto médico que lhe vai ser praticado - esta assunção projecta-se na qualificação da obrigação a que o médico se vincula, como uma obrigação de meios, e nos efeitos jurídicos do respectivo incumprimento”10. “Sendo a responsabilidade civil em que o médico incorre uma responsabilidade civil por factos ilícitos e culposas (...), a ressarcibilidade da perda de uma chance pressupõe, então, a prova da verificação cumulativa de um facto do profissional desvalioso objectiva e subjectivamente (ilicitude e culpa), que causalmente provocou (nexo causal) a destruição definitiva das chances, cuja existência e perda ficaram demonstradas (dano)”11.
87. Contudo, como indicado, os autores não lograram demonstrar a prática de actos ou omissões ilícitas, o que determina imediatamente a inaplicabilidade da tese da perda de chance.
88. Por outro lado, a indemnização por perda de chance, se admitida, tem por referencial, não o dano produzido pelo resultado alcançado, mas a perda de oportunidade de atingir certo resultado, que se representa como um bem delimitado e autónomo face ao dano concreto sofrido pelo paciente12, i.e. tem por referencial a circunstância de, em virtude do acto ilícito, ocorrer a diminuição das possibilidades de melhoria ou de cura13.
89. Contudo, no caso dos autos não se apresentou qualquer possibilidade de melhoria ou de cura como um bem autónomo, cuja perda implicasse o dano cujo ressarcimento é peticionado.
90. Mais: não se alegou nos autos, nem se provou, que houvesse possibilidades de melhoria ou de cura perante a condição da paciente após a conclusão da cirurgia face à reacção que a paciente teve após a primeira extubação (perda de SPO2 e paragem cardíaca).
91. E certo é que, sem demonstrar a existência de possibilidades de melhoria ou cura, a teoria da perda de chance não opera, pois que este é o dano autónomo indemnizável por seu intermédio.
92. Com efeito, para que esta operasse havia de “exigir-se que se conclua com algum grau de certeza (...) que se o médico não tivesse adoptado aquele comportamento o paciente teria tido uma hipótese de recuperação ou, ao menos, de não deterioração da sua saúde”14, o que não se verificou no caso dos autos.
93. Finalmente, importa verificar que para essa teoria funcionar, é ainda necessário que “a possibilidade de obter a vantagem ou de evitar o prejuízo assuma um mínimo de consistência, aferida em função das exigências do caso concreto”, sendo o exemplo italiano o de apenas permitir uma indemnização quando a probabilidade for superior a 30% e o exemplo anglo-saxónico quando for superior a 51 %15.
94. Com efeito, “[e]m primeiro lugar, para que seja reconhecido o direito ao ressarcimento pela perda de uma chance, tem de existir e ser demonstrada em juízo uma efectiva possibilidade de obtenção do resultado favorável pretendido - por outras palavras, uma real chance de melhoria do estado de saúde, que se pode traduzir na cura ou na sobrevivência”16, “A chance, como entidade a se, traduz uma incerteza intrínseca, inultrapassável, mas a sua existência deverá constituir uma certeza. Quando assim não aconteça, o seu ressarcimento deve ser denegado, porque não se demonstrou o quid cujo desaparecimento poderia fundar um dano ressarcível”17.
95. Ora, no caso dos autos também não se demonstrou que houvesse possibilidade de melhoria ou de cura, qualquer probabilidade de salvaguardar ou prevenir esse outro dano autónomo.
96. E certo é que não basta, para a operatividade dessa teoria, afirmar que houve intervenção médica e que esta é só por si bastante para produzir prima facie a perda de chance.
97. É, pois, manifesta a inoperância da teoria da perda de chance no caso dos autos.
98. A esta luz torna-se claro que as teses dos recorrentes - que vão mais além do que se sustenta na doutrina inovatória e expansionista que referem nas alegações de recurso - são improcedentes.
D. A SOLUÇÃO DO CASO
99. Dito isto, no caso dos autos não haverá dúvidas quanto ao dano, relevado do falecimento (e, porventura, até do sofrimento) da paciente e de todos os nefastos efeitos que provocou nos recorrentes.
100.Mas, à luz da prova produzida, não se identificou um único acto ilícito ou um conjunto de actos ilícitos (nos termos do artigo 3.º da Lei n.º 5/2016, a “violação (...) de diplomas legais, instruções, princípios deontológicos, conhecimentos técnicos profissionais ou regras gerais na área da saúde”) que tivesse(m) sido praticados, muito menos que tivesse(m) sido apto(s) a provocar esse resultado, do mesmo modo que não se encontrou nenhum facto ilícito que tivesse diminuído as possibilidades de melhoria ou de cura.
101. Com efeito, releva verificar que:
a) No total, houve lugar a 4 entubações, todas elas justificadas;
b) A primeira entubação, prévia à cirurgia, permitiu a realização de toda a cirurgia, ao longo de cerca de três horas, nenhuma questão se tendo suscitado;
c) 30 a 40 minutos após a conclusão da cirurgia, teve lugar a extubação, dado que a paciente tinha apresentado sinais vitais fortes, com respiração espontânea (quando, de acordo com o depoimento prestado, em circunstâncias normais a extubação teria sido feita 5 a 10 minutos após a conclusão da cirurgia);
d) Depois da extubação houve queda de SPO2, o que, de acordo com os depoimentos prestados, era previsível e normal ter lugar, dado que a extubação pode levar à irritação dos órgãos e ao encolhimento e espasmos dos músculos envolventes da zona e levar à quebra de respiração espontânea.
e) Após um abaixamento de batimento cardíaco e a imediata ressuscitação, procedeu-se à segunda entubação, tendo-se auscultado os pulmões e o estômago da paciente e verificado, pela curva de ETCO2, que a entubação fora um sucesso;
f) Mas, de acordo com a prova testemunhal produzida, quando se procurou passar da ventilação manual para a máquina, o CO2 subiu, pelo que teve lugar a imediata extubação e a terceira entubação, tendo os níveis de SPO2 melhorado;
g) Contudo, teve lugar nova diminuição de batimento cardíaco, a que imediatamente se seguiu a ressuscitação;
h) Como os níveis de ETCO2 da paciente estavam irregulares (desciam e aumentavam), não era possível utilizar o ventilador mecânico, pelo que, de acordo com a prova testemunhal produzida, se continuou a utilizar a ventilação manual; de resto, as testemunhas afirmaram que os níveis altos de CO2 não eram permanentes ou durante um longo período, antes sendo níveis altos de curta duração; sempre que havia uma subida dos níveis de CO2, controlou-se esses valores através da ventilação manual; para além disso, foi pedida análise ao sangue da criança e constatou-se que não havia valores anormais de CO2 no sangue, muito menos que pudessem causar danos cerebrais;
i) Enquanto tinha lugar a ventilação manual, a Dr.ª T sugeriu a realização de um Raio-X para confirmar a localização do tubo endotraqueal;
j) Pela análise do Raio-X, a Dr.ª L sugeriu que o tubo pudesse não se encontrar na traqueia, mas no esófago, pelo que se realizou um Raio-X toráxico Iateral, que revelou suspeitar que o tubo se encontrava no esófago;
k) Imediatamente se retirou o tubo e procedeu-se posteriormente à quarta entubação, tendo depois ocorrido, com êxito, a ligação ao ventilador automático.
102. Pode verificar-se, pois, que a primeira entubação foi necessária para a realização da cirurgia - sem ela a cirurgia simplesmente não teria lugar - e as entubações seguintes resultaram das vicissitudes da condição da paciente após a cirurgia.
103. Diga-se, de resto, que, diferentemente do que é afirmado no artigo 5.º das alegações, não está demonstrada a relação entre as entubações e a diferente posição das cordas vocais, desconhecendo-se a respectiva causa.
104.Por outro lado, resultou da prova testemunhal produzida que, após a quarta entubação, e antes de ser levada para os cuidados intensivos, a criança acordou, mexeu-se e respirou sozinha.
105. Ora, se a quarta entubação tivesse falhado, ter-se-ia de recorrer à traqueotomia, estando presentes no bloco operatório os médicos especialistas - estiveram presente cerca 9 a 10 médicos de varias especialidades, e.g. cirurgiões, anestesistas, otorrinos, pediatras, pneumologistas - que poderiam ter procedido a essa intervenção e tendo, de resto, sido recolhido o consentimento dos ora recorrentes para o efeito. Mas esse procedimento não se revelou necessário.
106. Desta circunstância retira-se igualmente que a terceira entubação - a que supostamente foi feita no esófago - tivesse falhado, como pretendem os recorrentes, e se tivesse sido esta a causa da anóxica geral - encefalopatia isquémica, a criança não teria acordado, não se teria mexido e não tinha respirado sozinha antes de ser conduzida aos cuidados intensivos.
107. De resto, da prova testemunhal produzida, v.g. pela Dr.ª XXX, resultou que a entubação no esófago “não é causa suficiente para terem ocorrido os danos cerebrais que sobrevieram”. No caso dos autos houve falta de comunicação de oxigénio no cérebro, que provocou a dita anóxica geral - encefalopatia isquémica. Mas isso não resultou de falta de oxigénio no organismo, visto que este acorria aos pulmões.
108. Ora, no caso dos autos, de acordo com o depoimento do Dr. XX, importa reter que: (i) a utilização do Raio-X para aferir o local de colocação do tubo consubstancia um método indirecto; (ii) o método mais científico (Golden Standard) para essa verificação é o a verificação pelo aparelho do ETCO2, que mede a curva de dióxido de carbono; (iii) de acordo com este método, no caso dos autos, verificou-se que havia oxigénio no pulmão para ser expelido, pelo que o Dr. XX concluiu que era impossível estar no esófago e aventou a hipótese de o tubo ter ido parar muito fundo no pulmão.
109. Certo é que o nível de oxigenação durante esta terceira entubação nunca esteve abaixo dos 95% e, por vezes, nos 98%, ou seja, níveis normais.
110. E quando ocorria um aumento do nível de CO2, medido pelo ETCO2, os médicos faziam ventilação manual para baixar tais níveis, que nunca alcançaram níveis clinicamente preocupantes.
111. De tal modo que, como já indicado, a Dr.ª XX, foi expressa em afirmar que não houve “causa suficiente para terem ocorrido os danos cerebrais que sobrevieram”.
112. Acresce que a eventualidade de a terceira entubação ter alcançado o esófago, de acordo com a prova testemunhal produzida, sucede em cerca de 30% dos casos, sem prejuízo de, mesmo nessa circunstância, uma parte do oxigénio entrar na via aérea e nos pulmões.
113. Por outro lado, importa ainda relevar que a suspeita de que a paciente sofresse de síndrome Treacher Collins nunca se transformou numa certeza de que assim fosse, não tendo esse facto sido dado como provado, pelo contrário: a Dr.ª L relatou que a paciente apresentava urna evolução intelectual retardada, o que não é urna característica desse síndrome.
114. E, como é entendimento acertado, “não pode um médico ser condenado por não ter atempadamente diagnosticado uma determinada patologia, se porventura o tribunal não conseguir concluir que esta já estaria presente à data do diagnóstico”18. 115. Se não se deu como provado nos autos que a paciente sofresse desse síndrome, deixa de assumir relevância que a operação tenha sido realizada apenas com base na suspeita de que era esse o caso.
116. Vale o mesmo por referir que não se pode afirmar, em concreto, que o dano não se teria verificado sem aqueles factos (formulação negativa) ou que em abstracto tais factos fossem causa adequada do dano (formulação positiva).
117. Ou seja, não se verificou o nexo de causalidade exigido para a efectivação da responsabilidade civil.
118. Muito menos estaria ao dispor do Tribunal lançar mão de urna presunção judicial, hominis ou natural, para contrariar o depoimento destes médicos que prestaram assistência ao paciente.
119. Por outro lado, ficou provado que, em 3 de Setembro de 2015, o médico assistente concluiu pela necessidade de intervenção cirúrgica plástica à paciente a fim de corrigir a malformação física de que padecia; que houve suspeita de que a paciente sofria do síndrome Treacher Collins; que se realizou uma avaliação pré-operatória à paciente, tendo-se determinado que o risco operatório era baixo a moderado, Mallampati II da via aérea, APTO ASA; que a suspeita de síndrome Treacher Collins foi tida em conta pela médica responsável pela anestesia e entubação/extubação aquando da preparação para a cirurgia.
120. E a verdade é que, de acordo coma graduação do teste Mallampati - que classifica gradativamente de I a IV o grau de dificuldade da entubação - a conclusão de que a paciente se situava na classe II implicava a conclusão de uma relativa facilidade na entubação.
121. Não se tratou de procedimentos adoptados no pressuposto de se estar perante “uma criança «normal» daquela idade”, mas sim no pressuposto de se estar perante uma criança graduada na Classe II do teste Mallampati.
122. E, de resto, não se provou que os meios utilizados para a entubação tivessem sido os normais para “uma criança «normal» daquela idade” - pretenderiam, porventura, os recorrentes que também esse facto tivesse sido presumido, o que nunca poderia ocorrer (estaria em causa a presunção da prática de um acto ilícito, inadmissível em face da ordem jurídica).
123. Vale o mesmo por referir que as soluções adoptadas no procedimento clínico foram as adequadas de acordo com a leges artis.
124. Esta conclusão não foi abalada nos autos pelos recorrentes.
125. Mais: os recorrentes não lograram provar (até alegar suficientemente) quais dos actos que foram efectivamente praticados ou omissões incorridas que violaram qualquer daquele feixe de parâmetros jurídicos ou de normas técnicas.
126. Não lograram provar (e até alegar suficientemente) (i) que outros actos deviam ter sido praticados (e por quem) ou que outros meios deviam ter sido utilizados em substituição dos que foram efectivamente praticados e utilizados ou em acrescento aos que foram praticados e utilizados ou (ii) que tais actos alternativos ou meios alternativos empregues fossem os únicos que se conformassem (ou, ao menos, que mais bem se conformassem) com aqueles parâmetros jurídicos ou normas técnicas.
127. Não lograram provar que tenha havido qualquer inobservância dos deveres objectivos de cuidado ou de zelo que se impunham aos profissionais que prestaram os cuidados de saúde para evitar a ocorrência da lesão.
128. Em concreto, e por exemplo no que ora releva, não lograram alegar ou demonstrar que os procedimentos e meios de entubação utilizados violassem a leges artis ou que devessem ter sido utilizados outros procedimentos ou instrumentos com vista a garantir a respiração da paciente no decurso da cirurgia.
129. Não lograram alegar ou demonstrar que qualquer das entubações não devesse ter tido lugar - incluindo aquela que permitiu a realização da cirurgia.
130. Não lograram demonstrar que tubo deveria ter sido adoptado na entubação.
131. De resto, nem alegaram tal factual idade, limitando a sua alegação a formulações conclusivas e, de acordo com a prova produzida, especulativas que têm na base um único facto - o do resultado.
132. Por outro lado ainda, os recorrentes também não lograram provar que qualquer dos agentes que intervieram na prestação de cuidados de saúde em causa tenha actuado com menor zelo do que aquele a que estavam obrigados, i.e., que outros agentes, perante a mesma situação de facto concreta, teriam actuado de outro modo, esse sim medianamente diligente.
133. Sabendo-se que a omissão do dever de diligência ou de zelo integra o conceito de negligência ou de mera culpa, e cobre as situações em que o agente não adoptou as precauções necessárias para evitar o resultado danoso (culpa consciente) ou não previu sequer, por imprevidência ou descuido, a possibilidade de o facto ilícito ocorrer (culpa inconsciente), para que tivesse lugar a efectivação da responsabilidade civil em causa teria sido igualmente fundamental aos recorrentes demonstrar (alegar e provar) que a actuação ilícita geradora de dano tinha sido culposa, i.e. passível de censura quanto à desconformidade entre o zelo que foi adoptado e aquele que os agentes poderiam e deviam ter tido - o que não foi o caso.
134. Finalmente, teria sido igualmente fundamental que os recorrentes tivessem demonstrado que o resultado que ocorreu fosse a consequência normal, típica, provável das acções ou omissões imputadas aos agentes (nexo de causalidade adequada), o que também não sucedeu.
135. O artigo 557.° do Código Civil (também aplicável na solução legislativa de 2016, ex vi artigo 20.° da Lei n.º 5/2016) consagra a teoria da causalidade adequada, devendo adoptar-se a sua formulação negativa, correspondente aos ensinamentos de ENNECERUS-LEHMANN, segundo a qual uma condição do dano deixará de ser considerada causa dele sempre que seja de todo indiferente para a produção do dano e só se tenha tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias.
136. Nesta formulação, para que haja causalidade adequada, não é necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano, nada obstando a que ele seja apenas uma das condições desse dano.
137. Ora, perante a certidão de óbito, que indica que a causa directa da morte é “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” - no que não contrariado na demais prova produzida (pelo contrário) - verifica-se que também não pode ser dado como provado o nexo de causalidade entre o resultado produzido e qualquer dos actos de prestação de cuidados de saúde identificados nos autos.
138. Diferentemente, conforme resulta a apreciação da prova produzida, nem sequer foi possível identificar a verdadeira causa da morte, independentemente de qual ela tenha sido.
139. Parafraseando o que concluiu o Tribunal a quo, “com base na prova testemunhal e os documentos existentes no processo, não tem o tribunal elementos para que, com a certeza jurídica necessária, possa aferir se as lesões que a paciente sofreu e de que lhe advieram a morte, resultaram de qualquer má formação congénita, problema de saúde ocorrido no pós-operatório ou omissão de cuidados médicos ou cuidados médicos incorrectos no pós-operatório, sendo certo que, quanto a esta última parte, não se alegava nem se demonstra que cuidados haviam de ter sido praticados e foram omitidos ou que procedimentos se praticaram em desacordo com os procedimentos médicos que se devem adoptar”.
140. Dito isto, incumbindo aos recorrentes o ónus de alegar e provar os factos integradores dos pressupostos da responsabilidade (facto, ilicitude, imputação do facto ao lesante, prejuízo ou dano e nexo de causalidade entre este e o dano, mesmo nas formulações mais abertas defendidas pela doutrina portuguesa), certo é que, embora se lamentando o resultado verificado, os recorrentes não lograram provar a verificação dos pressupostos da efectivação da responsabilidade médica, por parte do comissário.
E, desse modo, não pode o comitente (o serviço demandado) ser responsabilizado.

*
O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o seguinte douto parecer (fls. 382 e 383):
A e B demandaram os Serviços de Saúde de Macau, para efectivação de responsabilidade civil extracontratual decorrente da morte da filha de ambos, C, alegando que o decesso ocorrera em resultado de facto ilícito imputável a agentes da entidade Ré.
Pela sentença de 29 de Outubro de 2018, exarada a fls. 321 e seguintes, a acção veio a ser julgada improcedente, insurgindo-se agora os autores contra tal desfecho através do presente recurso jurisdicional, para o que aduzem, em suma, que a matéria de facto provada impunha a condenação da Ré.
Não creio que lhes possa ser dada razão.
A responsabilidade civil das entidades públicas e seus titulares por actos ilícitos de gestão pública, prevista no artigo 2.° do DL 28/91/M, de 22 de Abril, depende da verificação cumulativa de pressupostos idênticos aos da responsabilidade civil geral, ou seja, o facto, a ilicitude da conduta, a culpa do agente, o prejuízo ou dano e o nexo causal entre este e o facto, cabendo aos autores, como é sabido, a prova dos factos integrantes ou constitutivos do direito que se arrogam.
Constata-se que os autores estruturaram a acção visando essencialmente a intervenção cirúrgica em sentido estrito, destinada à correcção da fenda do palato, e os preparativos que a antecederam, incluindo a avaliação do risco, imputando ao acto cirúrgico e à deficiência dos preparativos que o precederam a ilicitude em que ancoram o petitório.
Sucede que a matéria apurada a esse respeito não corrobora a sua versão, não oferecendo consistência à hipótese de actuação ilícita.
O acto cirúrgico de reparação da fenda do palato, embora precedido de alguma dificuldade inicial na operação de entubação, foi executado com sucesso, tal como bem sucedida foi a operação preliminar de entubação, conforme resulta das respostas aos quesitos 20 e 21 da base instrutória. Por outro lado, as respostas negativas aos quesitos 6, 7 e 8 da base instrutória, não permitem concluir pela hipótese de erro ou violação das leges artis por parte dos médicos e demais técnicos de saúde que lidaram com o caso, tal como os autores o expuseram na sua petição inicial.
Portanto, na falta de demonstração da ilicitude da conduta, a acção tinha que improceder, tal como concluiu a sentença impugnada.
É certo que a base instrutória acabou por incluir um grande acervo de factos respeitantes ao pós-operatório, não alegados pelos autores, e seleccionados a partir da matéria da contestação. E as respostas a estes factos mostram que o pós-operatório registou episódios demonstrativos de certa desorientação e inabilidade por parte de alguns dos vários Profissionais de saúde chamados a lidar com o caso, nomeadamente em matéria de entubação e extubação, o que pode ter interferido negativamente no processo respiratório da paciente. Sabido que a causa de morte, não obstante o especificado em P), foi Global Anoxic - lschemic Encephalopathy, de acordo com o relatório de autópsia inserto a fls. 190 e seguintes, não se pode excluir que aquela desorientação e inabilidade, que foi ao ponto de efectuar no esófago pelo menos uma das muitas entubações realizadas, possa ter contribuído para a causa da morte.
Só que, como se referiu, esta matéria foi seleccionada a partir da explicação oferecida na contestação sobre a forma como ocorreu o pós-operatório, faltando-lhe, pois, elementos essenciais da causa de pedir numa acção de responsabilidade civil por factos ilícitos, tais como a rigorosa caracterização da ilicitude e da culpa, bem como a explicitação do nexo de causalidade.
Por isso, mesmo colocando o enfoque na actuação pós-operatório, não resultam demonstrados os requisitos de que depende a responsabilização por acto ilícito de gestão pública, pelo que, também deste prisma, a acção não podia deixar de improceder.
Ante o exposto, é de negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

* * *
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
* * *
    II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
    III – FACTOS
São os seguintes factos que o Tribunal Administrativo considerou assentes com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- No dia 2 de Abril de 2014, no Centro Hospitalar Conde de São Januário (doravante, o CHCSJ), nasceu a filha dos AA. C (doravante designada por vítima) (alínea A) dos factos assentes).
- A vítima nasceu com uma malformação física que afectava apenas a sua audição (alínea B) dos factos assentes).
- Na consulta de especialidade de pediatria de dia 8 de Janeiro de 2015, foi confirmado pelo pediatra Dr. XXX que a vítima sofria de síndrome de polimicrogiria com desenvolvimento tardio e deficiência auditiva (alínea C) dos factos assentes).
- Devido à condição de que padecia, a vítima perdeu a audição do ouvido direito (alínea D) dos factos assentes).
- Os AA. deslocavam-se respectivamente em 5 e 12 de Maio, 3 e 8 de Setembro de 2015, a consultas das especialidades de Desenvolvimento de Pediatria, de Pediatria Neonatologia e de Cirurgia Plástica, a fim de receber os tratamentos necessários para melhorar a sua condição física (alínea E) dos factos assentes).
- Na consulta de cirurgia plástica referido em E), de 3 de Setembro de 2015, o médico Dr. XXX concluiu pela necessidade de intervenção cirúrgica plástica à vítima a fim de corrigir a malformação física que a mesma padecia (alínea F) dos factos assentes).
- A intervenção cirúrgica referida em F) foi realizada por Dr. XXX (alínea G) dos factos assentes).
- Pelas 13h00, no decorrer da intervenção referida em F), os AA. foram informados por Dr. XXX que ocorreram complicações durante a cirurgia e que tinham surgido obstruções nas vias respiratórias da vítima (alínea H) dos factos assentes).
- Pelas 16h00, os AA. foram informados por Dr. XXX que era necessário realizar uma outra intervenção cirúrgica à vítima, ou seja, uma cirurgia ao pescoço para efeitos de entubação (alínea I) dos factos assentes).
- A pedido do Dr. XXX, os AA. assinaram os termos de consentimento para a realização dos outros procedimentos cirúrgicos, nomeadamente, uma traqueotomia (alínea J) dos factos assentes).
- Pelas 20h00 horas, Dr. XXX e Dra. XXX informaram que a vítima tinha sofrido uma paragem cardíaca no decorrer da operação, mas que foi ressuscitada com sucesso (alínea K) dos factos assentes).
- No final da noite do mesmo dia, os AA. conseguiram ver a sua filha, a qual estava inconsciente e sem qualquer reacção (alínea L) dos factos assentes).
- Às 00h00 horas, a vítima continuava inconsciente e sem acordar (alínea M) dos factos assentes).
- A vítima esteve em coma profundo após a cirurgia (alínea N) dos factos assentes).
- A vítima acabou por falecer no dia 2 de Março de 2016, às 18h10 (alínea O) dos factos assentes).
- Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (alínea P) dos factos assentes).
- A morte da vítima causou e continuará a causar sempre aos AA. profunda dor, angústia, desgosto, sofrimento e revolta (alínea Q) dos factos assentes).
- Os AA. jamais irão recuperar da perda da sua filha, a qual, juntamente com a irmã mais velha, era a esperança de vida e razão de viver dos AA. (alínea R) dos factos assentes).
- A vítima era uma menina de 2 anos, com muita alegria de viver e com uma vida por preencher, cheia de sonhos e projectos de vida (alínea S) dos factos assentes).
- O tempo de dois meses decorridos entre a intervenção cirúrgica e a morte da vítima foi intensamente insuportável para os AA. (alínea T) dos factos assentes).
- Os AA. tiveram de presenciar a filha em estado de coma, sem saberem se estava em sofrimento ou não e sem nada poderem fazer para a ajuda (alínea U) dos factos assentes).
- Os AA. sempre tiveram esperança que a filha fosse recuperar da intervenção cirúrgica (alínea V) dos factos assentes).

Da Base Instrutória:
- A intervenção cirúrgica referida em F) ficou agendada para o dia 6 de Janeiro de 2016 (resposta ao quesito 2° da base instrutória).
- Pela malformação física descrita em B), havia suspeita de que a vítima sofria do síndrome "TREACHER COLLINS SYNDROME" (resposta ao quesito 9° da base instrutória).
- A intervenção cirúrgica referida em F) era de reparo de fenda palatina (resposta ao quesito 10° da base instrutória).
- Na consulta externa, Dr. XXX diagnosticou um aumento de peso insatisfatório da vítima, mas sem qualquer infecção no trato respiratório, tendo sido seguida por um período de tempo na Consulta Externa de Desenvolvimento Infantil (resposta ao quesito 11° da base instrutória).
- No dia 5 de Junho de 2014, a vítima foi encaminhada para o médico do Serviço de Cirurgia Plástica, Dr. XXX, que sugeriu que a vítima fizesse uma cirurgia de reparo da fenda palatina entre as idades de 1 ano e meio e dois anos (resposta ao quesito 12° da base instrutória).
- No dia 3 de Dezembro de 2015, o médico da Consulta Externa de Anestesiologia, XX, realizou a avaliação pré-operatória à vítima, tendo determinado que o risco operatório era baixo a moderado, Mallapanti II da via aérea, APTO ASA (American Society of Anesthesiologists), ou seja, risco de nível II (numa escala de I a IV) (resposta ao quesito 13° da base instrutória).
- Depois desta avaliação, foi dado conhecimento à A. quanto aos riscos da anestesia, tendo sido assinado um termo de consentimento (resposta ao quesito 14° da base instrutória).
- Na manhã de 5 de Janeiro de 2016, a vítima foi admitida na Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria de modo a ser preparada para a intervenção cirúrgica que iria ser realizada no dia seguinte (resposta ao quesito 15° da base instrutória).
- Na preparação para a cirurgia a médica responsável pela anestesia e entubação/extubação, Dra. XXX, consultou o sistema informático HIS onde se fazia referencia à malformação mandibular da paciente com suspeitas da paciente padecer do síndrome de treacher collins e onde se indicava que o risco dado na avaliação pré-operatória fora nível II (baixo a moderado) (resposta ao quesito 16° da base instrutória).
- No dia 6 de Janeiro de 2016, pelas 08h30 horas, a vítima foi enviada para o Bloco Operatório Central (resposta ao quesito 17° da base instrutória).
- Pelas 09h00 horas, Dra. XXX começou a administrar os medicamentos anestésicos à vítima e de seguida começou o processo de entubação (resposta ao quesito 18° da base instrutória).
- Dra. XXX tentou por duas vezes ver o tamanho da epiglote da vítima com laringoscópio, mas não conseguiu proceder à entubação (resposta ao quesito 19° da base instrutória).
- O Chefe do Serviço de anestesia, Dr. XX, também solicitado para colaborar na realização da entubação, optou por utilizar um laringoscópio maior e concluiu a entubação à vítima com sucesso (resposta ao quesito 20° da base instrutória).
- Dr. XXX concluiu com sucesso a cirurgia de reparo da fenda palatina da vítima (resposta ao quesito 21° da base instrutória).
- Após a intervenção cirúrgica, Dra. XXX optou por não manter a vítima entubada por mais tempo e decidiu realizar a extubação (resposta ao quesito 22° da base instrutória).
- Nessa altura, a vítima tinha todos os sinais vitais fortes, com respiração espontânea (valor de SP02 a 99%) (resposta ao quesito 23° da base instrutória).
- Pelas 13h36 horas, Dra. XXX removeu o tubo endotraqueal da vítima (resposta ao quesito 24° da base instrutória).
- Depois da extubação, continuou a ser administrado oxigénio à vítima, mas esta não conseguia tossir de uma forma natural (resposta ao quesito 25° da base instrutória).
- Tentou-se a posição lateral na vítima e constatou-se uma queda do valor de SP02 (resposta ao quesito 26° da base instrutória).
- Imediatamente, Dra. XXX tentou elevar a mandíbula superior da vítima de forma a facilitar a ventilação, tendo sido aplicada uma máscara de ventilação, mas a vítima não apresentou melhoras (resposta ao quesito 27° da base instrutória).
- Foi solicitada ajuda a Dr. XX, mas a paciente teve uma paragem cardíaca (resposta ao quesito 28° da base instrutória).
- Foi administrado “Adrenaline” à vítima, tendo esta recuperado o batimento cardíaco, e Dr. XX procedeu a nova entubação endotraqueal (resposta ao quesito 29° da base instrutória).
- Depois de recuperada a frequência cardíaca da vítima, Dr. XX procedeu à auscultação estetoscópia dos pulmões e do estômago da paciente, tendo sido verificado pela curva de ETC02 que a entubação por si realizada fora um sucesso (resposta ao quesito 30° da base instrutória).
- Alguns minutos mais tarde, o batimento cardíaco da vítima baixou outra vez tendo entrado em nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 31° da base instrutória).
- Dra. XXX orientou o processo de ressuscitação, tendo sido efectuada à vítima compressão toráxica (resposta ao quesito 32° da base instrutória).
- Dr. XX decidiu extubar a vítima e optou por realizar de seguida nova entubação (resposta ao quesito 33° da base instrutória).
- Depois desta entubação, o SPO2 a frequência cardíaca da vítima aumentou, mas a sua situação hemodinâmica era instável, tendo tido nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 34° da base instrutória).
- Foi realizada nova ressuscitação à vítima (resposta ao quesito 35° da base instrutória).
- Dr. XX propôs chamar um otorrinolaringologista, Dr. XX, para uma possível traqueotomia urgente à vítima (resposta ao quesito 36° da base instrutória).
- Subsequentemente, verificou-se que os níveis da curva de ETCO2 da vítima estavam irregulares, não sendo, por isso, possível utilizar o ventilador (resposta ao quesito 37° da base instrutória).
- Foi realizada uma fibroncospia sob anestesia uma vez que suspeitava que a vítima pudesse ter alguma obstrução na traqueia e quanto à localização do tubo endotraqueal (resposta ao quesito 38° da base instrutória).
- Uma vez que a fibroncospia tinha uma imagem pouco nítida, não houve certeza do que estava a obstruir a traqueia da Paciente, e por este motivo foi chamado um médico pneumologista, Dr. XXX, para prestar apoio (resposta ao quesito 39° da base instrutória).
- Foi também solicitada a presença de uma médica pediatra, Dra. T, na sala de operações (resposta ao quesito 40° da base instrutória).
- Tentou fazer-se a ventilação mecânica e Dra. T sugeriu a realização de um Raio-X para confirmar a localização do tubo endotraqueal, pelo que solicitou que outra médica pediatra, Dra. L, estivesse presente (resposta ao quesito 41° da base instrutória).
- Cerca das 15h00 horas, Dra. L, pela análise do Raio-X sugeriu que o tubo não se encontrava na traqueia mas sim no esófago da vítima (resposta ao quesito 42° da base instrutória).
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
- Só através do Raio-X se confirmou-se que o tubo se encontrava no esófago e não na traqueia (resposta ao quesito 46° da base instrutória).
- Dr. XX imediatamente retirou o tubo endotraqueal da vítima, e rapidamente a frequência cardíaca da paciente baixou havendo necessidade de realizar compressão toráxiça (resposta ao quesito 47° da base instrutória).
- Dr. XX tentou fazer nova entubação, mas sem sucesso, e por fim acabou por efectuar a ventilação LMA e manteve-se um nível estável de SPO2 na vítima (resposta ao quesito 48° da base instrutória).
- Posteriormente foi substituída a ventilação LMA pro nova entubação, tendo-se constatado que as cordas vocais da vítima se encontravam numa posição diferente (resposta aos quesitos 49.º a 51° da base instrutória).
- Às 18h00 horas a entubação endotraqueal foi feita e com boa ventilação, tendo sido um êxito a ligação ao ventilador automático (resposta ao quesito 52° da base instrutória).
- Às 19h00 horas, a vítima foi enviada para a Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria (resposta ao quesito 53° da base instrutória).
- Depois de ter sido transferida, a vítima continuou a ser ventilada mecanicamente, mas manteve-se em estado de coma durante algum tempo com sinais vitais instáveis, acabando mais tarde por vir a falecer (resposta ao quesito 54° da base instrutória).

* * *
    IV - FUNDAMENTOS
Como o presente recurso jurisdicional tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, importa ver o que este decidiu. Este afirmou:
I. Relatório
Autores A (A) e B (B), melhor id. nos autos,
intentaram a presente
Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual
Contra
Réu Serviços de Saúde
com os fundamentos apresentados constantes da p.i. de fls. 197 a 226 dos autos,
concluíram pedindo que seja o Réu condenado a pagar uma quantia de MOP1,500,000.00 a título de danos não patrimoniais sofridos pelos Autores.
*
O Réu contestou a acção com os fundamentos de fls. 230 a 240 dos autos, concluiu pedindo que seja julgada improcedente a acção e em consequência, absolvido o Réu do pedido.
*
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
*
Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
*
A Digna Magistrada do M.º P.º junto deste Tribunal emitiu parecer final no sentido de improcedência do pedido, com os fundamentos de fls. 318 a 320 e v dos autos.
***
II. Fundamentação
1. De Facto
(...)
* **
2. De Direito
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pela presente acção, pretenderam os AA. que sejam indemnizados dos danos não patrimoniais, pela morte da sua filha C na sequência da intervenção cirúrgica executada pelos médicos do CHCSJ.
Para o efeito, alegaram os AA. por um lado a existência da informação deficiente, isto é, os técnicos de saúde do CHCSJ não prestaram junto dos AA. com clareza e precisão exigível, as informações necessárias sobre os procedimentos médicos que estavam a adoptar, nem antes nem após a intervenção cirúrgica, por outro lado, imputaram-lhes a inadequação do diagnóstico e do tratamento por parte dos mesmos técnicos, que provocou os danos aos AA., nomeadamente os de índole não patrimonial, como os de sofrimento e tristeza pela perda da sua filha.
Contestando a acção, vem o Réu pugnar pela inexistência de erro médico, pela falta de prova quanto à violação das leges artis e ao nexo de causalidade entre a intervenção cirúrgica e o resultado danoso.
Tendo em conta a exposição feita, são equacionadas as questões pela seguinte ordem:
1) A morte da filha dos AA. e a respectiva causa.
2) A responsabilidade do R..
3) Os direitos dos AA..
*
1) A morte da filha dos AA. e a respectiva causa.
Em primeiro lugar tentamos averiguar, a partir dos factos dados como provados, a causa da morte da filha dos AA..
Nos termos alegados pelos AA., a morte da sua filha resultou do tratamento desadequado na cirurgia executada pelos médicos do Réu.
Foi, por este motivo, incluído na base instrutória um conjunto de factos sucessivamente encadeados pela ocasião da cirurgia na perspectiva de saber se uns “passos” foram mal executados ou se foram indevidamente omitidos alguns “passos” que se consideram essenciais.
Desde logo, em relação ao diagnóstico que à vítima foi feito, foi dado como assente que “a vítima nasceu com uma malformação física que afectava apenas a sua audição” (factos assentes na B)) e foi confirmado “que a vítima sofria de síndrome de polimicrogiria com desenvolvimento tardio e deficiência auditiva” (factos assentes na C)).
Não foi entretanto demonstrado que houve qualquer ignorância ou menosprezo por parte dos médicos quanto à situação patológica da vítima, não sendo provado que “aquando da consulta referida em F), Dr. XXX referiu aos AA., que a intervenção cirúrgica seria simples, rápida, e que não acarretaria riscos à saúde da vítima” (resposta ao quesito 1.º da base instrutória), nem que “os médicos e técnicos de saúde do CHCSJ não avaliaram o risco quanto à intervenção cirúrgica realizada na vítima” (resposta ao quesito 6.º da base instrutória).
Ao invés, foram procedidas seguidamente duas avaliações pré-operatórias à vítima para os efeitos de anestesia, em que se determinou o risco operatório, como “Mallapanti II da via aérea, APTO ASA (American Society of Anesthesiologists), ou seja, risco de nível II (numa escala de I a IV) ”, e se levou, na preparação para a cirurgia, devidamente em conta o síndrome de treacher collins como mencionado no sistema informático HIS, que a vítima era suspeita de padecer. (conforme as respostas dadas aos quesitos 13.º e 16.º da base instrutória).
*
De outro lado, no que respeita à execução da cirurgia, foi demonstrado que a cirurgia de reparo da fenda palatina da vítima foi concluída com sucesso (cfr. resposta ao quesito 21.º da base instrutória).
Surgem no entanto dúvidas em relação à regularidade da execução dos trabalhos da entubação para anestesia, e da subsequente extubação durante a intervenção cirúrgica.
Logo à partida, foi comprovado que a anestesista Dra. XXX teve dificuldade na primeira entubação endotraqueal e só conseguiu concluí-la com o apoio de Dr. XX, pela utilização do laringoscópio de tamanho maior (cfr. resposta aos quesitos 18.º a 22.º da base instrutória).
Para além disso, foi igualmente provado que foi procedida uma segunda entubação endotraqueal pelo Dr. XX, quando a vítima apresentou uma queda do valor de SP02, e uma obstrução significativa na via aérea, e depois, uma paragem cardíaca (cfr. resposta aos quesitos 26.º a 30.º da base instrutória).
Além de que mais tarde foi executada uma terceira entubação, vendo-se que o batimento cardíaco da vítima baixou e ela entrou em nova paragem cardíaca.
Porém, com o exame Raio-X, chegou a ser confirmado que a entubação não foi bem executada, uma vez que o tubo endotraqueal se encontrava no esófogo e não na traqueia (cfr. resposta aos quesitos 31.º a 46.º da base instrutória).
Importa afirmar, pese embora as referidas situações anómalas ocorridas durante a cirurgia, que nenhum mais facto foi dado como assente no sentido de nos esclarecer quais foram as consequências emergentes, nomeadamente, se daí decorreram os resultados danosos alegados pelos AA..
Já para não mencionar o facto de que os riscos emergentes foram sempre oportunamente removidos com a intervenção subsequente dos médicos, como foram provados com as respostas aos quesitos 20.º, 29.º, 30.º, 34.º, 45.º, 48.º da base instrutória.
Resumindo, numa retrospectiva dos acontecimentos passados durante todo o procedimento cirúrgico, não se conseguiu detectar nenhum acto médico irregular susceptível de resultar nos danos patentes nos autos, razão pela qual não foi dado como provado “a morte da vítima podia ter sido evitada com diagnóstico, tratamento adequado dos técnicos de saúde do CHCSJ.” (resposta ao quesito 7.º da base instrutória).
Pergunta-se então qual seria a causa da morte da vítima?
Não se sabe pelo menos, pelas provas produzidas no processo.
Dos factos apurados, foi apenas mencionado que a causa directa da morte da vítima é “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (facto assente na P)). Nada mais foi averiguado a fim de saber em que consistem as “outras complicações cirúrgicas e assistência médica”, nem se existirá alguma ligação com a intervenção cirúrgica executada.
Mesmo em face do relatório da autópsia, não se consegue afirmar o que desencadeou as causas que a vieram a gerar.
Mas pelo menos evidente é que nenhum elemento comprovado apto a nos levar a considerar que a morte da vítima era imputável à cirurgia executada pelos médicos do CHCSJ.
*
2) A responsabilidade do Réu.
Dispõe o Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, o art.º 2.º, “a Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
Mais dispõe o art.º 3.º, “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os titulares dos órgãos e agentes administrativos da Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente pela prática de actos ilícitos, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.”
Dessas normas, depreende-se que, a RAEM responde civilmente perante os lesados nos termos que se responsabiliza os seus órgãos e agentes, e que para impor qualquer obrigação de indemnizar ao respectivo órgão ou agente, é preciso que haja actos materiais ilícitos culposos dos respectivos órgãos ou agentes. Além disso, é indispensável que haja um nexo de causalidade entre os actos ilícitos e a lesão sofrida pela vítima.
Como foi exposto atrás, inexiste facto comprovado a indiciar qualquer nexo de causalidade entre a intervenção cirúrgica e as lesões sofridas pela vítima e subsequentemente, os danos alegados pelos AA..
Ainda por cima, nem se verificou a ilicitude dos imputados actos médicos.
Quanto ao requisito de ilicitude, o artigo 7.º do referido diploma dispõe “1. Para os efeitos deste diploma, a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses. 2. Serão também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”
In casu, os tratamentos médicos facultados pelo CHCSJ, incluindo os actos da intervenção cirúrgica, consubstanciam em actos materiais. O juízo de adequação e a verificação da ilicitude passam a depender da violação ou não das normas legais e princípios gerais aplicáveis, bem como das regras de ordem técnica e de prudência comum, tratando-se da “ilicitude de condutas” (cfr. Vieira de Andrade, A responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa na nova lei sobre responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, pag.365).
Porém, não foi alegado ou posto em causa o cumprimento de alguma “legis artis” ou da regra de ordem técnica e de prudência comum. Não foi portanto demonstrado em concreto que foi violada a “legis artis”, ou que segundo os conhecimentos da medicina ao tempo em que os actos foram praticados o procedimento a adoptar devia ter sido outro que não o que foi usado, ou que foi omitido o procedimento técnico que naqueles casos devia ter sido usado.
De igual modo, que não se verificou a ilicitude no que toca à informação deficiente que os médicos do CHCSJ foram imputados de ter facultado aos AA., como constam dos factos apurados que “os AA. assinaram os termos de consentimento para a realização dos outros procedimentos cirúrgicos, nomeadamente, uma traqueotomia” (alínea J) dos factos assentes). “Depois desta avaliação, foi dado conhecimento à A. quanto aos riscos da anestesia, tendo sido assinado um termo de consentimento” (resposta ao quesito 14° da base instrutória).
Como se sabe, a intervenção ou tratamento médico-cirúrgico arbitrária, isto é, quando realizada sem consentimento eficaz do paciente, constitui até um ilícito de carácter penal (art.º 150.º do CPM).
Mas no caso em apreço, existe manifestamente um consentimento prévio eficaz prestado pelos AA. quanto à intervenção cirúrgica em causa, e que o seu consentimento nunca chegou a ser anulado, nem foi invocada a sua anulação. Por outras palavras, não bastava que os AA. alegassem a simples informação deficiente ou incompleta para assacar ao hospital pela ilicitude da omissão, era ainda necessário que a informação omitida fosse de tal maneira essencial que sem a mesma o consentimento nunca viria a ser prestado.
Assim sendo, não há actos ilícitos no caso concreto, e por consequência, não há como responsabilizar o R. pelos danos alegados.
*
Sem necessidade de abordar a questão dos direitos que assistem aos AA..
*
Tudo visto, outra solução não nos resta senão improceder a acção.
***
IV-Decisão:
Assim, pelo exposto, decide-se:
Julga improcedente a acção e em consequência, decide absolver o Réu Serviços de Saúde dos pedidos formulados pelos A e B.
*
Custas pelos AA..
*
Registe e notifique.

Quid Juris?
É uma acção de responsabilidade civil médica, em que se colocam normalmente questões complexas e complicadas e que solicitam sensibilidade e conhecimentos especializados, sem excepção em relação ao caso dos autos.
Ora, todo o litígio nasce de uma patologia de que padecia a falecida, C, por motivo do qual ela foi submetida a uma intervenção cirúrgica (em rigor, 2 intervenções cirúrgicas), depois veio a falecer.
Importa ver que tipo de patologia e que tratamento é que era preciso e como ocorreu a cirurgia, quer antes, quer depois da mesma.
Conforme os dados clínicos constantes da ficha da falecida, esta padecia de treacher collins19, a propósito desta doença, escreve-se o seguinte:




Com estas informações clínicas básicas, de carácter genérico, sobre a patologia da filha dos Autores, C (falecida), vamos ver o que ocorreu no caso concreto e analisar a decisão do Tribunal recorrido para saber se ela merece ou não reparo.

*
Ao abrigo do disposto no artigo 629º/1-a) do CPC, entendemos que certos factos (provados e não provados) merecem algum reparo tendo em conta os elementos constantes dos autos.
Comecemos pelos factos não provados, porque a fundamentação da sentença recorrida agarra bastante aos FACTOS NÃO PROVADOS, aos quais se atribuíu muito valor.
Ora, conforme o que consta dos autos (fls. 297 a 298), os quesitos 1º a 8º ficaram não provados.
Independentemente de outro tipo de juízo que se possa formular sobre outros quesitos, certo é que o quesito 7º não pode ser considerado por ser conclusivo, senão bastaria este para resolver o litígio e dispensam-se os demais quesitos.
Outro ponto que merece destacar aqui é o de que existe alguma incoerência entre o Facto Assente da alínea c) e a resposta dada ao quesito 9º da Base Instrutória:
- Na consulta de especialidade de pediatria de dia 8 de Janeiro de 2015, foi confirmado pelo pediatra Dr. XXX que a vítima sofria de síndrome de polimicrogiria com desenvolvimento tardio e deficiência auditiva (alínea C) dos factos assentes).
- Pela malformação física descrita em B), havia suspeita de que a vítima sofria do síndrome "TREACHER COLLINS SYNDROME" (resposta ao quesito 9° da base instrutória).
Os dados clínicos documentam que a vítima padecia de "TREACHER COLLINS SYNDROME", não parece certo falar de “suspeita” no facto considerado provado depois de produção de prova.
Assim, deve tomar-se como certo e é ele que deve prevalecer o teor da alínea c) do Facto Assente.
*
Um terceiro ponto que igualmente merece sublinhar aqui é a resposta do Facto Assente P), por se reputar de insuficiência, porque não contém todas as informações constantes dos autos e que sejam absolutamente necessárias à resolução do litígio.
Tal facto tem o seguinte teor:
- Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (alínea P) dos factos assentes).
Esta insuficiência temática do facto em causa é nítida. Para a sua solução, não há outra alternativa senão a de recorrer aos dados constantes dos autos. Neste aspecto e para suprir tal insuficiência, como a certidão de óbito foi passada com base nos elementos constantes do relatório de autópsia em que estão pormenorizadamente descritos os dados sobre a vítima, há-de se socorrer deste relatório. Aliás, os Recorrentes invocaram também este relatório nas suas alegações, por entenderem que o Tribunal recorrido não procedeu de forma correcta à interpretação do teor do mesmo.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 629º/3 do CPC, tal facto passa a ter a seguinte redacção:
- Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (alínea P) dos factos assentes), com o conteúdo pormenorizadamente constante do relatório de autópsia de fls. 290 a 292 - cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos.
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Concluída esta parte respeitante aos factos, passemos a ver o mérito da acção.
O pedido dos Autores consiste no dano moral, sofrido pela perda da vida da sua filha na sequência de intervenções cirúrgicas, operadas no Centro Hospitalar de Conde S. Januário, unidade integrada na DSS, Ré nestes autos. Portanto, é um caso da responsabilidade civil por actos de gestão pública, matéria que se encontra disciplinada no DL nº 28/91/M, de 22 de Abril.
*
O artigo 2º (Responsabilidade da Administração e demais pessoas colectiva públicas) do citado DL dispõe:
    
A Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
O legislador segue aqui o mesmo raciocínio e o mesmo padrão da responsabilidade civil geral, ao fixar o regime de responsabilização por actos de gestão pública.
Ou seja, a responsabilidade civil, em geral, colhe os seus fundamentos na verificação de determinados pressupostos que são como é consabido: o facto e nexo de imputação, o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade, o facto é entendido na sua objectiva consideração e que consubstancia a violação do direito de outrem (ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios) - v. Prof. A. Varela "Das Obrigações em Geral" I, pág. 403-404 Prof. Manuel de Andrade, "Teoria Geral da Relação Jurídica", I pág. 337; Prof. Pereira Coelho "o nexo de causalidade na responsabilidade civil", pág. 64; Prof. Almeida Costa, "Direito das Obrigações", pág. 176 e segs.
O que fica dito respeita tanto à responsabilidade civil contratual como à extracontratual existindo naquela, porém, numa prévia relação jurídica obrigacional que nesta não existe.
O Código Civil de Macau, nos seus artigos 477º, 489º, 556º a 558º, 580º (correspondentes aos artigos 483º, 496º, 562º a 564º e 566º do CC 1966, designadamente) regula, com rigor os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, tanto a derivada de actos ilícitos ou subjectivos como a derivada de actos licítos ou objectivos. Nos actos ilícitos a ilicitude ou a antijuricidade destes funciona como um elemento caracterizador, não constituindo elemento ou pressuposto autónomo.
O nexo de imputação ou ligação do facto ilícito (por acção ou omissão) ao agente há-de conter uma imputação culposa, subjectiva e compreende o juízo que o agente fez não só objectivamente injusto mas cuja injustiça ele conheceu ou pode conhecer e que tal lhe seja pessoalmente reprovável (Kart. Larenz "Derecho de Obligaciones", 11, 1959, pág. 570).
O mecanismo da responsabilidade civil funciona, em geral, sempre da mesma forma, o facto (seja ilícito ou proveniente de uma actividade lícita) há-de ligar-se ao agente por um nexo de imputação (de natureza subjectiva ou objectiva respectivamente) e o dano ou prejuízo, por seu turno, há-de ligar-se a facto por um nexo de causalidade (V. Dário Martins de Almeida " Manual de Acidentes de Viação", 3a. edição, pág. 50).
É claro que se fala de causalidade adequada e esta não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas no processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.
Essencial, nesse mecanismo é que entre as condições do dano - que podem ser várias - esteja o facto ( v. Prof. A. Varela, cfr. cit., I, pág. 750 e 752 e ac. da Relação de Évora de 8.6.89 - C.J. 1989,3°., pág. 275).
Quanto à culpa, ela é a expressão de um juízo de responsabilidade pessoal da conduta do agente que, face ás circunstâncias especiais do caso, deveria ter agido doutro modo, ou por este ter actuado ou deixado de actuar contra o dever que se lhe impunha quer em actuação diferente, quer em actuação que não levou a cabo, tudo de acordo com as normas jurídicas tomadas na sua função imperativa estatuídoras de deveres ainda que gerais (v. Prof. A\. Varela, cfr. cit., I; pág. 442; Prof. Pessoa Jorge "Ensaio" sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 315 e Prof. Figueiredo Dias "o Problema de Consciência da Ilicitude).
Por culpa deverá entender-se - diz Larenz (Derecho de Obligaciones II Vol. Pag.570) o juízo que o agente fez, não apenas objectivamente injusto, mas de cuja injustiça estava ciente ou podia estar.
O critério de avaliação da culpa reside na formulação de um juízo de prognose póstuma de acordo com o qual, ponderando o condicionalismo concreto, se tenha de concluir segundo as regras de experiência comum, que os outros, agindo em condições e pressupostos análogos aos que se verificaram e levaram à actuação do agente, teriam previsto a realidade típica do evento.
Todas estas considerações valem, mutatis mutandis, para o caso em apreciação, regido pelo regime de responsabilidade civil por gestão pública instituído pelo DL acima citado.
Pois bem, vejamos in casu se estão reunidos todos estes pressupostos ou não.
Recorde-se que a justiça e o direito do caso concreto vem já do direito romano e encontrava-se espelhado no brocardo alemão "Am Anfang war der Fall".
Comecemos pelos factos, que dividimos em 4 partes, a fim de percebermos melhor a evolução das coisas em cada uma das “fases”.
Parte 1
(informações respeitantes ao estado de saúdo da falecida antes da intervenção,
deficiência física (doença) de que padecia, finalidade da intervenção cirúrgica):
(Obs.: letras grossas e partes sublinhadas são da nossa responsabilidade)
- No dia 2 de Abril de 2014, no Centro Hospitalar Conde de São Januário (doravante, o CHCSJ), nasceu a filha dos AA. C (doravante designada por vítima) (alínea A) dos factos assentes).
- A vítima nasceu com uma malformação física que afectava apenas a sua audição (alínea B) dos factos assentes).
- Na consulta de especialidade de pediatria de dia 8 de Janeiro de 2015, foi confirmado pelo pediatra Dr. XXX que a vítima sofria de síndrome de polimicrogiria com desenvolvimento tardio e deficiência auditiva (alínea C) dos factos assentes).
- Devido à condição de que padecia, a vítima perdeu a audição do ouvido direito (alínea D) dos factos assentes).
- Os AA. deslocavam-se respectivamente em 5 e 12 de Maio, 3 e 8 de Setembro de 2015, a consultas das especialidades de Desenvolvimento de Pediatria, de Pediatria Neonatologia e de Cirurgia Plástica, a fim de receber os tratamentos necessários para melhorar a sua condição física (alínea E) dos factos assentes).
- No dia 5 de Junho de 2014, a vítima foi encaminhada para o médico do Serviço de Cirurgia Plástica, Dr. XXX, que sugeriu que a vítima fizesse uma cirurgia de reparo da fenda palatina entre as idades de 1 ano e meio e dois anos (resposta ao quesito 12° da base instrutória).
- No dia 3 de Dezembro de 2015, o médico da Consulta Externa de Anestesiologia, XX, realizou a avaliação pré-operatória à vítima, tendo determinado que o risco operatório era baixo a moderado, Mallapanti II da via aérea, APTO ASA (American Society of Anesthesiologists), ou seja, risco de nível II (numa escala de I a IV) (resposta ao quesito 13° da base instrutória).
*
- Na consulta de cirurgia plástica referido em E), de 3 de Setembro de 2015, o médico Dr. XXX concluiu pela necessidade de intervenção cirúrgica plástica à vítima a fim de corrigir a malformação física que a mesma padecia (alínea F) dos factos assentes).
- A intervenção cirúrgica referida em F) foi realizada por Dr. XXX (alínea G) dos factos assentes).
Parte 2
(1ª intervenção cirúrgica, modo da sua condução, diligências adoptadas):
- Depois desta avaliação, foi dado conhecimento à A. quanto aos riscos da anestesia, tendo sido assinado um termo de consentimento (resposta ao quesito 14° da base instrutória).
- Na manhã de 5 de Janeiro de 2016, a vítima foi admitida na Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria de modo a ser preparada para a intervenção cirúrgica que iria ser realizada no dia seguinte (resposta ao quesito 15° da base instrutória).
- Na preparação para a cirurgia a médica responsável pela anestesia e entubação/extubação, Dra. XXX, consultou o sistema informático HIS onde se fazia referencia à malformação mandibular da paciente com suspeitas da paciente padecer do síndrome de treacher collins e onde se indicava que o risco dado na avaliação pré-operatória fora nível II (baixo a moderado) (resposta ao quesito 16° da base instrutória).
- No dia 6 de Janeiro de 2016, pelas 08h30 horas, a vítima foi enviada para o Bloco Operatório Central (resposta ao quesito 17° da base instrutória).
- Pelas 09h00 horas, Dra. XXX começou a administrar os medicamentos anestésicos à vítima e de seguida começou o processo de entubação (resposta ao quesito 18° da base instrutória).
- Dra. XXX tentou por duas vezes ver o tamanho da epiglote da vítima com laringoscópio, mas não conseguiu proceder à entubação (resposta ao quesito 19° da base instrutória).
- O Chefe do Serviço de anestesia, Dr. XX, também solicitado para colaborar na realização da entubação, optou por utilizar um laringoscópio maior e concluiu a entubação à vítima com sucesso (resposta ao quesito 20° da base instrutória).
- Dr. XXX concluiu com sucesso a cirurgia de reparo da fenda palatina da vítima (resposta ao quesito 21° da base instrutória).

Parte 3
(depois da 1ª intervenção e início da 2ª intervenção cirúrgica,
modo de condução, anormalidades ocorridas, diligências adoptadas):
- Após a intervenção cirúrgica, Dra. XXX optou por não manter a vítima entubada por mais tempo e decidiu realizar a extubação (resposta ao quesito 22° da base instrutória).
- Nessa altura, a vítima tinha todos os sinais vitais fortes, com respiração espontânea (valor de SP02 a 99%) (resposta ao quesito 23° da base instrutória).
- Pelas 13h36 horas, Dra. XXX removeu o tubo endotraqueal da vítima (resposta ao quesito 24° da base instrutória).
- Depois da extubação, continuou a ser administrado oxigénio à vítima, mas esta não conseguia tossir de uma forma natural (resposta ao quesito 25° da base instrutória).
- Tentou-se a posição lateral na vítima e constatou-se uma queda do valor de SP02 (resposta ao quesito 26° da base instrutória).
- Imediatamente, Dra. XXX tentou elevar a mandíbula superior da vítima de forma a facilitar a ventilação, tendo sido aplicada uma máscara de ventilação, mas a vítima não apresentou melhoras (resposta ao quesito 27° da base instrutória).
- Foi solicitada ajuda a Dr. XX, mas a paciente teve uma paragem cardíaca (resposta ao quesito 28° da base instrutória).
- Foi administrado “Adrenaline” à vítima, tendo esta recuperado o batimento cardíaco, e Dr. XX procedeu a nova entubação endotraqueal (resposta ao quesito 29° da base instrutória).
- Depois de recuperada a frequência cardíaca da vítima, Dr. XX procedeu à auscultação estetoscópia dos pulmões e do estômago da paciente, tendo sido verificado pela curva de ETC02 que a entubação por si realizada fora um sucesso (resposta ao quesito 30° da base instrutória).
- Alguns minutos mais tarde, o batimento cardíaco da vítima baixou outra vez tendo entrado em nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 31° da base instrutória).
- Dra. XXX orientou o processo de ressuscitação, tendo sido efectuada à vítima compressão toráxica (resposta ao quesito 32° da base instrutória).
- Dr. XX decidiu extubar a vítima e optou por realizar de seguida nova entubação (resposta ao quesito 33° da base instrutória).
- Depois desta entubação, o SPO2 a frequência cardíaca da vítima aumentou, mas a sua situação hemodinâmica era instável, tendo tido nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 34° da base instrutória).
- Foi realizada nova ressuscitação à vítima (resposta ao quesito 35° da base instrutória).
- Dr. XX propôs chamar um otorrinolaringologista, Dr. XX, para uma possível traqueotomia urgente à vítima (resposta ao quesito 36° da base instrutória).
- Subsequentemente, verificou-se que os níveis da curva de ETCO2 da vítima estavam irregulares, não sendo, por isso, possível utilizar o ventilador (resposta ao quesito 37° da base instrutória).
- Foi realizada uma fibroncospia sob anestesia uma vez que suspeitava que a vítima pudesse ter alguma obstrução na traqueia e quanto à localização do tubo endotraqueal (resposta ao quesito 38° da base instrutória).
- Uma vez que a fibroncospia tinha uma imagem pouco nítida, não houve certeza do que estava a obstruir a traqueia da Paciente, e por este motivo foi chamado um médico pneumologista, Dr. XXX, para prestar apoio (resposta ao quesito 39° da base instrutória).
- Foi também solicitada a presença de uma médica pediatra, Dra. T, na sala de operações (resposta ao quesito 40° da base instrutória).
- Tentou fazer-se a ventilação mecânica e Dra. T sugeriu a realização de um Raio-X para confirmar a localização do tubo endotraqueal, pelo que solicitou que outra médica pediatra, Dra. L, estivesse presente (resposta ao quesito 41° da base instrutória).
- Cerca das 15h00 horas, Dra. L, pela análise do Raio-X sugeriu que o tubo não se encontrava na traqueia mas sim no esófago da vítima (resposta ao quesito 42° da base instrutória).
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
- Só através do Raio-X se confirmou-se que o tubo se encontrava no esófago e não na traqueia (resposta ao quesito 46° da base instrutória).
- Dr. XX imediatamente retirou o tubo endotraqueal da vítima, e rapidamente a frequência cardíaca da paciente baixou havendo necessidade de realizar compressão toráxiça (resposta ao quesito 47° da base instrutória).
- Dr. XX tentou fazer nova entubação, mas sem sucesso, e por fim acabou por efectuar a ventilação LMA e manteve-se um nível estável de SPO2 na vítima (resposta ao quesito 48° da base instrutória).
- Posteriormente foi substituída a ventilação LMA pro nova entubação, tendo-se constatado que as cordas vocais da vítima se encontravam numa posição diferente (resposta aos quesitos 49.º a 51° da base instrutória).
- Às 18h00 horas a entubação endotraqueal foi feita e com boa ventilação, tendo sido um êxito a ligação ao ventilador automático (resposta ao quesito 52° da base instrutória).
- Às 19h00 horas, a vítima foi enviada para a Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria (resposta ao quesito 53° da base instrutória).
- Depois de ter sido transferida, a vítima continuou a ser ventilada mecanicamente, mas manteve-se em estado de coma durante algum tempo com sinais vitais instáveis, acabando mais tarde por vir a falecer (resposta ao quesito 54° da base instrutória).
4ª parte
(dados complementares em relação à 3ª parte):
- Pelas 16h00, os AA. foram informados por Dr. XXX que era necessário realizar uma outra intervenção cirúrgica à vítima, ou seja, uma cirurgia ao pescoço para efeitos de entubação (alínea I) dos factos assentes).
- A pedido do Dr. XXX, os AA. assinaram os termos de consentimento para a realização dos outros procedimentos cirúrgicos, nomeadamente, uma traqueotomia (alínea J) dos factos assentes).
- Pelas 20h00 horas, Dr. XXX e Dra. XXX informaram que a vítima tinha sofrido uma paragem cardíaca no decorrer da operação, mas que foi ressuscitada com sucesso (alínea K) dos factos assentes).
- No final da noite do mesmo dia, os AA. conseguiram ver a sua filha, a qual estava inconsciente e sem qualquer reacção (alínea L) dos factos assentes).
- Às 00h00 horas, a vítima continuava inconsciente e sem acordar (alínea M) dos factos assentes).
- A vítima esteve em coma profundo após a cirurgia (alínea N) dos factos assentes).
- A vítima acabou por falecer no dia 2 de Março de 2016, às 18h10 (alínea O) dos factos assentes).
- Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (alínea P) dos factos assentes).
- A morte da vítima causou e continuará a causar sempre aos AA. profunda dor, angústia, desgosto, sofrimento e revolta (alínea Q) dos factos assentes).
Quid Juris?
Posto isto e no sentido de se apreciar a questão, atentemos em alguns conceitos que entendemos por correctos, seguindo de perto Rute Teixeira Pedro (in A Responsabilidade Civil do Médico, Coimbra, 2008).
Um médico obriga-se não só a não prejudicar o aproveitamento das possibilidades (chances) de que o paciente dispõe de sucesso terapêutico, empregando a bagagem de meios (científicos e técnicos) com que ele está apetrechado, mas sobretudo a não abortar uma acreditada possibilidade médica de êxito.
Esta actividade debitória do médico não se compagina com uma mera tutela aquiliana, com um mero comportamento de “non nocere”, uma vez que assim, deixaria a descoberto aquela obrigação, que precisamente caracteriza o conteúdo do direito creditício que um doente tem face a um médico, e que se distingue, obviamente, daquele direito absoluto de exclusão, que o doente pode fazer valer contra qualquer pessoa.
Actualmente é comum o entendimento que, nas relações entre o médico e o doente, o primeiro se obriga a prestar, ao segundo, assistência médica, na decorrência da sua prestação de serviços e para satisfazer o interesse do doente, o médico tem de detectar o problema que o afecta, escolher e aplicar uma terapia que o debele ou atenue, segundo as melhores regras disponíveis no momento da prestação.
A efectivação da responsabilidade de um médico depende da verificação cumulativa de um conjunto de pressupostos, que têm que ser demonstrados em juízo.
Assim, quer se funde na responsabilidade contratual, quer na responsabilidade extracontratual, necessário é que o médico pratique um facto (positivo ou negativo), ilícito, culposo e que cause um dano ao doente.
Em princípio e de acordo com as normas da distribuição do ónus da prova – cfr. nº1 do artigo 335º do CCM (cfr. artigo 342º do CC de 1966) – caberá ao autor/doente (demandante do pedido cível) alegar e provar os factos demonstrativos da verificação daqueles pressupostos.
No entanto, o encargo probatório que recai sobre o doente – um leigo na matéria, com um acesso, muitas vezes dificultado, ao registo médico – revela-se muito pesado, tanto mais que o recurso a peritos é oneroso e nem sempre conclusivo.
Desta forma, a imposição do ónus probatório acima referido transforma-se num mecanismo de predeterminação sistemática de insucesso de uma delas – o doente – em favor da outra – o médico.
A obrigação de um médico é, em princípio, uma obrigação de meios e não de resultado, dada a elevada componente que a incerteza joga no êxito dos actos praticados por aquele, estando, pois, este apenas obrigado a uma obrigação de diligência ou de cuidado, de prudência.
Assim, um médico incorre numa situação de incumprimento quando se desvie do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissional da área, deve obedecer.
O seu comportamento será ilícito se se desviou desse comportamento, tomado o seu agente como um elemento de um grupo caracterizado e diferenciado dentro da categoria geral dos profissionais médicos e da especificidade da situação.
Comecemos pela ilicitude dos actos médicos verificados no caso sub judice:
I – Ilicitude dos actos:
Pergunta-se, no caso, que matérias de facto que evidenciam tal ilicitude dos actos médicos e da equipa médica?
Os seguintes factos assentes são ilustrativos, chamando-se especial atenção para os factos assinalados e sublinhados por nós:
    
- Pelas 09h00 horas, Dra. XXX começou a administrar os medicamentos anestésicos à vítima e de seguida começou o processo de entubação (resposta ao quesito 18° da base instrutória).
- Dra. XXX tentou por duas vezes ver o tamanho da epiglote da vítima com laringoscópio, mas não conseguiu proceder à entubação (resposta ao quesito 19° da base instrutória).
- O Chefe do Serviço de anestesia, Dr. XX, também solicitado para colaborar na realização da entubação, optou por utilizar um laringoscópio maior e concluiu a entubação à vítima com sucesso (resposta ao quesito 20° da base instrutória).
*
     - Após a intervenção cirúrgica, Dra. XXX optou por não manter a vítima entubada por mais tempo e decidiu realizar a extubação (resposta ao quesito 22° da base instrutória).
- Nessa altura, a vítima tinha todos os sinais vitais fortes, com respiração espontânea (valor de SP02 a 99%) (resposta ao quesito 23° da base instrutória).
- Pelas 13h36 horas, Dra. XXX removeu o tubo endotraqueal da vítima (resposta ao quesito 24° da base instrutória).
- Depois da extubação, continuou a ser administrado oxigénio à vítima, mas esta não conseguia tossir de uma forma natural (resposta ao quesito 25° da base instrutória).
- Tentou-se a posição lateral na vítima e constatou-se uma queda do valor de SP02 (resposta ao quesito 26° da base instrutória).
- Imediatamente, Dra. XXX tentou elevar a mandíbula superior da vítima de forma a facilitar a ventilação, tendo sido aplicada uma máscara de ventilação, mas a vítima não apresentou melhoras (resposta ao quesito 27° da base instrutória).
- Foi solicitada ajuda a Dr. XX, mas a paciente teve uma paragem cardíaca (resposta ao quesito 28° da base instrutória).
- Foi administrado “Adrenaline” à vítima, tendo esta recuperado o batimento cardíaco, e Dr. XX procedeu a nova entubação endotraqueal (resposta ao quesito 29° da base instrutória).
- Depois de recuperada a frequência cardíaca da vítima, Dr. XX procedeu à auscultação estetoscópia dos pulmões e do estômago da paciente, tendo sido verificado pela curva de ETC02 que a entubação por si realizada fora um sucesso (resposta ao quesito 30° da base instrutória).
- Alguns minutos mais tarde, o batimento cardíaco da vítima baixou outra vez tendo entrado em nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 31° da base instrutória).
- Dra. XXX orientou o processo de ressuscitação, tendo sido efectuada à vítima compressão toráxica (resposta ao quesito 32° da base instrutória).
- Dr. XX decidiu extubar a vítima e optou por realizar de seguida nova entubação (resposta ao quesito 33° da base instrutória).
- Depois desta entubação, o SPO2 a frequência cardíaca da vítima aumentou, mas a sua situação hemodinâmica era instável, tendo tido nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 34° da base instrutória).
- Foi realizada nova ressuscitação à vítima (resposta ao quesito 35° da base instrutória).
- Dr. XX propôs chamar um otorrinolaringologista, Dr. XX, para uma possível traqueotomia urgente à vítima (resposta ao quesito 36° da base instrutória).
- Subsequentemente, verificou-se que os níveis da curva de ETCO2 da vítima estavam irregulares, não sendo, por isso, possível utilizar o ventilador (resposta ao quesito 37° da base instrutória).
- Foi realizada uma fibroncospia sob anestesia uma vez que suspeitava que a vítima pudesse ter alguma obstrução na traqueia e quanto à localização do tubo endotraqueal (resposta ao quesito 38° da base instrutória).
- Uma vez que a fibroncospia tinha uma imagem pouco nítida, não houve certeza do que estava a obstruir a traqueia da Paciente, e por este motivo foi chamado um médico pneumologista, Dr. XXX, para prestar apoio (resposta ao quesito 39° da base instrutória).
- Foi também solicitada a presença de uma médica pediatra, Dra. T, na sala de operações (resposta ao quesito 40° da base instrutória).
- Tentou fazer-se a ventilação mecânica e Dra. T sugeriu a realização de um Raio-X para confirmar a localização do tubo endotraqueal, pelo que solicitou que outra médica pediatra, Dra. L, estivesse presente (resposta ao quesito 41° da base instrutória).
- Cerca das 15h00 horas, Dra. L, pela análise do Raio-X sugeriu que o tubo não se encontrava na traqueia mas sim no esófago da vítima (resposta ao quesito 42° da base instrutória).
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
- Só através do Raio-X se confirmou-se que o tubo se encontrava no esófago e não na traqueia (resposta ao quesito 46° da base instrutória).
- Dr. XX imediatamente retirou o tubo endotraqueal da vítima, e rapidamente a frequência cardíaca da paciente baixou havendo necessidade de realizar compressão toráxiça (resposta ao quesito 47° da base instrutória).
- Dr. XX tentou fazer nova entubação, mas sem sucesso, e por fim acabou por efectuar a ventilação LMA e manteve-se um nível estável de SPO2 na vítima (resposta ao quesito 48° da base instrutória).
- Posteriormente foi substituída a ventilação LMA por nova entubação, tendo-se constatado que as cordas vocais da vítima se encontravam numa posição diferente (resposta aos quesitos 49.º a 51° da base instrutória).
- Às 18h00 horas a entubação endotraqueal foi feita e com boa ventilação, tendo sido um êxito a ligação ao ventilador automático (resposta ao quesito 52° da base instrutória).
- Às 19h00 horas, a vítima foi enviada para a Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria (resposta ao quesito 53° da base instrutória).
- Depois de ter sido transferida, a vítima continuou a ser ventilada mecanicamente, mas manteve-se em estado de coma durante algum tempo com sinais vitais instáveis, acabando mais tarde por vir a falecer (resposta ao quesito 54° da base instrutória).
    
É de ver que objectivamente estão demonstradas as “falhas” (erros) no procedimento e que causam “complicações” ao corpo da falecida.
Pois, não é por acaso no certificado de óbito o médico escreveu:
- Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (alínea P) dos factos assentes).
Este facto assente tem de ser lido em conjugação com o relatório de autópsia, em que se concluiu:
- Final Diagnosis:
1) Global Anoxic - Ischemic Encephalopathy (tradução portuguesa: Axónica global, encefalopatia isquémica (em chinês: 腦部缺氧) ; with mid brain, pons infarct and focal areas of subcortical infarct/necrosis, and presence of inflammatory processing of meninges with clumps of bacteria and occasional yeast/fungal spores.
2) Dystrophic calcification in the wall of a few vessels seen in the brain, tongue, peri-tracheal tissue, as well as seen in the papillary muscle of the left ventricles and the renal tubules.
3) Congenital malformation including short down-slanting palpebral fissure, bilateral microtia with right ear atresia need using hearing aid-bone transduction, incomplete cleft palate post-operation of correction, small mouth, small chin, malar hypoplasia, mandibular hypoplasia (clinically suspect with diagnosis of “Treacher Collins syndrome”).
Pois, o médico que emitiu tal certidão não estava presente no local de operações cirúrgicas, limitou-se a relatar o que observou no cadáver da doente.
Não estamos, pois, perante situações inseríveis nas leges artis própria da cirurgia, insindicável na medida em que traduza o exercício de opções científicas e técnicas, não estamos no plano da mera falibilidade que o exercício da medicina sempre implica, mas na censurável omissão dos deveres de cuidado e de diligência que eram exigíveis naquelas circunstâncias, destacando-se aqui os seguintes aspectos:
- Após a intervenção cirúrgica, Dra. XXX optou por não manter a vítima entubada por mais tempo e decidiu realizar a extubação (resposta ao quesito 22° da base instrutória), aqui pode levantar-se sempre a questão de saber se foi correcta tal operação de extubação naquele momento?
- Foi cometido erro na entubação – vidé os factos provados descritos sob os nº 24º a 44º já acima transcritos (2ª intervenção cirúrgica), facto irrefutável;
- Se a entubação visava manter o fornecimento normal de oxigénio ao corpo da vítima, mas foi cometido erro neste aspecto (facto provado) por um médico da Ré, com isso se causaram “complicações” ao corpo da vítima, o que é uma situação quase “intolerável” face às circunstâncias concretas do caso e aos conhecimentos especializados que um médico tem e devia ter.
- Depois, demorava muito tempo para a detecção da falha cometida – vidé os factos assentes descritos sob os números 24º, 42º (todas as complicações começaram a surgir depois das 13H36, e até 15H00, com a intervenção de uma outra médica, é que veio a saber-se a verdadeira causa das “complicações” observadas). Aqui demorava-se cerca de 1 hora e meia.
- Chamavam-se sucessivamente médicos de várias áreas em cada uma das fases da 2ª intervenção cirúrgica, sem saber, a final, quem era médico responsável desta operação?
- Pergunta-se, este tipo de falhas é normal e frequente neste tipo de operações cirúrgicas E toda a equipa médica fazia esforços para evitar tais falhas? É isso que um médico de bom pai de família fazia?
Não nos parece que seja!
É do entendimento quase uniforme que um médico incorre numa situação de incumprimento quando se desvie do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissional da área, deve obedecer.
O seu comportamento será ilícito se se desviou desse comportamento, tomado o seu agente como um elemento de um grupo caracterizado e diferenciado dentro da categoria geral dos profissionais médicos e da especificidade da situação.
Todas estas falhas acabaram por contribuir para o agravamento geral do estado de saúde da doente.
Tudo isto é bastante para afirmar a ilicitude dos actos imputados aos médicos intervenientes, mormente os actos do médico responsável pela errada entubação e pela demora na detecção de falhas!
*
Neste ponto, o tribunal a quo, para afastar a ilicitude, afirmou o seguinte:
(…) As no caso em apreço, existe manifestamente um consentimento prévio eficaz prestado pelos AA. quanto à intervenção cirúrgica em causa, e que o seu consentimento nunca chegou a ser anulado, nem foi invocada a sua anulação. Por outras palavras, não bastava que os AA. alegassem a simples informação deficiente ou incompleta para assacar ao hospital pela ilicitude da omissão, era ainda necessário que a informação omitida fosse de tal maneira essencial que sem a mesma o consentimento nunca viria a ser prestado.
Assim sendo, não há actos ilícitos no caso concreto, e por consequência, não há como responsabilizar o R. pelos danos alegados.
Salvo o merecido respeito, tal afirmação merece de algum reparo!
De realçar que tal documento, mera declaração particular, não implica pelos seus dizeres que tais informações tenham sido prestadas aos Autores.
E mesmo que tivesse aceitado, consciente dos riscos, isso não significa que não pudesse exigir responsabilidade civil pelos actos médicos praticados com negligência.
Uma declaração de aceitação de intervenção cirúrgica não é uma declaração de renúncia ao direito de indemnização pelas ofensas à integridade física decorrentes de uma intervenção cirúrgica negligente, não importando sequer aqui discutir se uma tal declaração de renúncia podia alguma vez ser considerada válida.
Tal como resulta dos factos assentes acima transcritos, o foco principal da censura à Ré não na 1ª intervenção cirúrgica, mas na fase depois da 1ª e e durante a preparação da 2ª.
Todas as complicações surgiram nesta fase. Foi nesta que se cometeram erros, desvio de comportamento normalmente exigido, de modo a causar dificuldade à circulação do oxigénio para a parte certa do corpo da doente, o que afecta o funcionamento do cérebro e dos pulmões.
Nesta óptica está demonstrado o erro médico imputado à Ré (por actos desviantes dos seus médicos) por desrespeito de artis legis que se impunha no caso concreto.
*
II – Culpa da equipa médica:

Nesta matéria costuma distinguir-se entre culpa funcional e culpa do médico.
Como escreve FREITAS DO AMARAL20 «... cada vez mais nos nossos dias nos sucede que o facto ilícito e culposo causador dos danos, sobretudo se revestir a forma de uma omissão, não possa ser imputado a um autor determinado, ou a vários, antes o deva ser ao serviço público globalmente considerado.»
     «O que importa é reconhecer que a grande dimensão da Administração pública, a complexidade das suas funções, a constante variação dos seus servidores, a morosidade dos seus processos de trabalho, a rigidez das suas regras financeiras, e tantos outros factores de efeito análogo, transformam muitas vezes uma sucessão de pequenas faltas desculpáveis, ou até de dificuldades e atrasos legítimos, num conjunto unitariamente qualificável, ex post, como facto ilícito culposo.
     Nestes casos, a responsabilidade da Administração perante as vítimas não pode ser posta em dúvida: e todavia não há na sua base um comportamento individual censurável.
Para casos como os expostos, a doutrina, com o acolhimento da jurisprudência, com origem em França, construiu a teoria da culpa funcional ou culpa do serviço, em termos que merecem a nossa adesão.
Trata-se de situações em que o facto ilícito «não se revela susceptível de ser apontado como emergente da conduta ético-juridicamente censurável de um agente determinado, mas resulta de um deficiente funcionamento 21 dos serviços — caso em que se imputa subjectivamente o facto danoso não ao agente ou funcionário, mas tão-só à pessoa colectiva pública responsável pelo funcionamento».
A propósito de culpa do agente no exercício de funções públicas, foi no estudo intitulado “Responsabilidade da Administração Pública”, publicado na Revista “O Direito” (ano 95, pág. 185 e ss.) que Marcello Caetano melhor desenvolveu este tema.
Par o efeito, começa por distinguir a actuação dos órgãos mediante actos administrativos da conduta dos agentes que não revista carácter de acto administrativo. Enquanto naquela hipótese, o acto administrativo ilegal será sempre “imputável à pessoa colectiva se dimana de um órgão no exercício regular das funções, se couber dentro da competência deste e não exorbitar das atribuições ou fins da pessoa colectiva”, nesta outra há mais dificuldade em determinar quando há culpa funcional ou culpa pessoal. Diz, então, que a diferença entre as duas modalidades de culpa é esta: «a culpa funcional resulta do risco normal que todo o agente administrativo corre de errar no exercício das suas funções, embora procure, até escrupulosamente, desempenhar-se delas com zelo, ao passo que a culpa pessoal denota da parte do agente o desprezo pela natureza e pelos objectivos da sua função, o abuso ou o desvirtuamento dos seus poderes».
Em qualquer das hipóteses, os agentes administrativos, ao praticarem o facto danoso, agem sempre “na sua qualidade oficial”: mas enquanto na primeira, «verifica-se que os agentes, ao causarem o prejuízo, estavam a cumprir as suas obrigações legais, e o facto ilícito constituíu, portanto, um acidente desse cumprimento», na segunda, «o agente exorbitou dos seus poderes ou procedeu fora das suas obrigações». E continua dizendo que «na primeira hipótese a violação de uma lei ou a transgressão de um regulamento como acidente da actividade profissional dos agentes administrativos, origina a culpa funcional, que responsabiliza solidariamente os autores do facto ilícito e a pessoa colectiva de direito público de que forem serventuários»; ao passo que na segunda hipótese «deixando o agente de proceder com vista à realização do interesse público ou dentro dos limites assinados á sua função, a culpa é pessoal, e responsabiliza-o em exclusivo pelos danos causados».
De igual modo, na 4ª edição do Manual de Direito Administrativo, escreveu qua há culpa funcional quando a «prática de um acto ilegal haja decorrido em circunstâncias tais que possa considerar-se consequência natural do exercício da função, sendo portanto imputável à pessoa colectiva por conta de quem agiu o órgão ou agente no desempenho da função» e culpa pessoal quando «o órgão ou agente se afasta das regras essenciais disciplinadoras da sua actuação como tal, por forma que a função haja sido postergada e os interesses da pessoa colectiva subalternizados aos interesses, aos caprichos ou ao arbítrio de quem se arroga a qualidade de seu agente».
Os termos em que esta discussão era travada mudaram-se com a entrada em vigor do novo regime da responsabilidade civil da Administração trazido pelo Decreto-Lei nº 48051 de 21 de Novembro de 1967, que a legislação actual de Macau seguiu quase literalmente. Para efeito de responsabilizar a Administração ou o autor do facto ilícito, a distinção entre o funcional e o pessoal, deixou de ser fazer no plano da culpa para se fazer no plano da ilicitude. Agora, o que interessa é saber de o facto ilícito é um acto funcional ou um acto pessoal.
Perante o novo regime, é ainda Marcello Caetano quem avança com a nova distinção: «são actos funcionais todos aqueles que, embora ilícitos, sejam praticados durante o exercício das funções do seu autor e por causa desse exercício»; «são actos pessoais todos os outros, isto é, os que forem praticados fora do exercício das funções do seu autor ou que, mesmo praticados durante tal exercício e por ocasião dele, não forem todavia praticados por causa desse exercício».
Sendo estes conceitos muito próximos dos legais, Marcello Caetano procura saber quando é que, de um modo geral, se pode dizer que um facto ilícito está dentro dos limites das funções ou, pelo contrário, excede tais limites. E responde, dizendo que há que averiguar «se o facto praticado representou o legítimo exercício da competência para fins de interesse público ou, antes, um abuso de autoridade com excesso do que no caso exigia o cumprimento das funções. Em qualquer dos casos o facto terá sido ilícito; mas no primeiro, a ilicitude foi como que um acidente da actividade profissional do órgão ou agente administrativo, ao serviço da pessoa colectiva de direito público, ao passo que no segundo, o autor do facto ilícito exorbitou das suas funções, servindo-se delas para prosseguir os seus próprios fins» (Manual, 10ª ed. Vol. I, pág. 39 e Vol. II págs. 1228 e 1230).

Mutatis mutandis, valem estas ideias para o caso em apreciação.
Assim, será culposo se se tomando em conta a especificidade do circunstancialismo em que o concreto agente actuou, se puder concluir que ao agente era exigível outro comportamento.
Considerando a obrigação que um médico assume de prestar assistência a um determinado paciente, pode-se concluir que o resultado imediato é, então, constituído pelo aproveitamento das reais possibilidades (chances) que o doente apresenta de alcançar a satisfação do resultado imediato – a cura, a sobrevivência, a não consumação de uma deficiência ou incapacidade.
Tal aproveitamento verifica-se mediante a adopção de um comportamento atento, cuidadoso e conforme às “leges artis” – que constitui, em suma, a tradicional obrigação principal (de meios) assumida pelo profissional de saúde.
A ausência da verificação daquele resultado facilita a demonstração do incumprimento da obrigação de não destruir as possibilidades de êxito terapêutico, de que o doente dispunha.
A insatisfação do interesse final ou mediato, arrastando a insatisfação do interesse imediato ou intermédio, poderá funcionar como indício ou demonstração “prima facie” do inadimplemento da obrigação de não destruição das possibilidades de êxito terapêutico.
Demonstrado o incumprimento desta “outra” obrigação, caberá ao médico, para afastar a responsabilização pelo “dano de destruição das possibilidades (ou chances)” provar que aplicou a diligência ou aptidão que lhe era exigível – por outras palavras, que satisfez o interesse mediato – mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida se gorou e as chances existentes se perderam.
Perante a falta de consecução daquele “outro resultado” devido poderá, e deverá, ser aplicado o regime geral da responsabilidade obrigacional, sem necessidade de operar qualquer desvio, nomeadamente quanto à presunção de culpa do devedor genericamente consagrada.
A culpa de um médico, na falta de qualquer norma especifica sobre o assunto, é avaliada pela regra geral contida no nº2 do artigo 480º do Código Civil de Macau, ou seja, pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Importante para o direito não é erro cientifico em si, mas a causa humana do mesmo, ou seja, para o surgimento de uma obrigação de indemnizar não basta a verificação de um erro, antes se exige que ele assuma uma configuração tal, que torne o agente merecedor de um juízo de reprovação.
E sê-lo-á, quando o percurso seguido pelo médico deva ser censurado – seja culposo.
O desequilíbrio relacional é a nota característica da relação que se estabelece entre o doente e o médico e que se reflecte no plano probatório, na medida em que o paciente é um sujeito particularmente enfraquecido, porque física e mentalmente debilitado por força da patologia que o afecta e assimetria da relação ente o médico e o doente é aumentada pelo carácter especializado da prestação médica e pelo desnível de conhecimentos e preparação técnico-científica entre ambas as partes.
O médico devedor é um profissional de assistência médica e o doente-credor é, em regra, um leigo nessa matéria.
Posto isto, voltemos ao caso concreto em apreço.
Importa reter as seguintes ideias:
1) – A falecida tinha apenas 2 anos de idade, uma vida frágil e ainda em fase de desenvolvimento físico-intelectual inicial;
2) – Uma das características da doença Treacher Collins Syndrome é estreito da traqueia da doente! O que demanda particular atenção aquando da entubação!
3) – No caso, porque é que só quando foi chamada a médica pediatra e esta sugeriu que fosse feito exame Raio-X é que se soube que o tubo foi mal colocado, em vez de estar na traqueia, estava no esófago??
4) – Pergunta-se, um médico de bom pai da família adopta este tipo de comportamento?
5) – No momento foi a médica pediatra é que explicou a seguinte situação:
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
Os outros médicos desconheciam? Faltava-lhes experiência? Nenhum médico interveniente tinha conhecimento suficiente para controlar IMEDIATAMENTE esta situação?
6) – Mais, nesta fase, cerca de depois de quase 1 hora e meia é que se veio a detectar o erro cometido! É um tempo razoável para o saber? Em situações normais, se fossem outros médicos, também precisavam de tanto tempo de detectar o problema?
7) - De acordo com o que acima ficou exposto, era a Ré que tinha de alegar e provar que aplicava a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida.
8) - Não conseguiu no entanto, provar tal facto.
9) - Não elidiu assim, a presunção de culpa que incidia sobre a Ré, nos termos acima referidos.
10) - Ou seja, não demonstrou qualquer causa externa à sua actuação que tenha estado na origem do erro cometido, imputado ao médico responsável pela entubação errada e pela demora no pedido de ajuda de outros médicos.
11) - Por isso, subsiste a sua culpa.
Todos estes factos (uma vez provadas tais falhas médicas) evidenciam a culpa da equipa médica pelo descurar negligente dos cuidados médicos a que estavam obrigado de acompanhamento da doente no período operatório e pela omissão dos cuidados que igualmente se lhe impunham de providenciar um controlo médico efectivo de qualquer anomalia decorrente da intervenção que se constatou ter sido exigente.
A equipa médica não tomou os cuidados necessários para se poder certificar imediatamente no período operatório de algum erro que pudesse ter ocorrido,  fechando incompreensivelmente ele próprio as portas ao controlo imediato (passada quase 1 hora e meia é que se detectou o erro na entubação) e num momento em que sabia que a intervenção, já em si susceptível de riscos, se revelara alguma complexa.
Mais, era uma criança de 2 anos, sem capacidade para fazer queixas no momento nem para reportar qualquer dor. Tudo isto constitui particularidade do caso que solicitava atenção especial por parte da equipa médica.

*
Obviamente aqui pergunta-se: esta actividade dos médicos nada teve a ver com o que posteriormente veio a acontecer, nomeadamente com a morte da doente?
Esta pergunta é feita com base no que acima ficou dito sobre a ilação tirada dos factos culposos imputados aos médicos.
Face à matéria de facto dada como provada, pode extrair-se dela com segurança a conclusão sobre a diligência dos médicos, ou seja, se a sua actuação se desviou do padrão de comportamento diligente e competente.
Eis a conclusão sobre o resultado imediato e mediato: a morte da doente. Como isso passemos a ver a nexo de causalidade.
*
III – Nexo de causalidade
A medicina não é uma ciência exacta. Cada doente pode constituir um caso particular. Mas, resultando uma morte duma operação inicial, sem perigo para vida, numa doente sem dados clínicos desfavoráveis, é de considerar, em primeira aparência, a negligência de quem era o responsável pela intervenção cirúrgica.
Todos os dias, milhares e milhares de intervenções cirúrgicas são feitas sem que haja o menor dano para os pacientes. A consequência mortal do caso agora em apreciação vai contra o normal evoluir das coisas, contra a sucessão vulgar dos acontecimentos, pelo que, atenta também tal figura, pensamos que caberia aos médicos demonstrar que aforam adoptadas todas as diligências necessárias e correctas, tudo de acordo com as legis artis.
O certificado de óbito emitido pelo médico que atesta os factos relativos à causa da morte não é documento autêntico nem é susceptível de produzir a sua prova plena.
Quantas vezes é que, depois de autópsia, sem se saber ao acerto o motivo de morte.
Por outro lado, muitas vezes a morte é derivada de várias causas e não de um único motivo.
De realçar igualmente aqui que não é o medido que diz ao Tribunal o nexo de causalidade, mas sim ao julgador compete determinar, face aos elementos provados nos autos, tal nexo de causalidade entre o facto danoso e o dano verificado.
No caso, a morte de causa tem a ver com as “complicações cirúrgicas” durante as quais foram cometidos erros, que afectavam a circulação de oxigénio no corpo certo da doente, e os órgãos directamente afectados pela falta ou má circulação de oxigénio são cérebro e ainda pulmões! Tudo isto são co-causas da morte, face aos elementos provados nos autos.
No relatório de autópsia consigna-se a seguinte conclusão:
- Final Diagnosis:
1) Global Anoxic - Ischemic Encephalopathy (tradução portuguesa: Axónica global, encefalopatia isquémica (em chinês: 腦部缺氧) ; with mid brain, pons infarct and focal areas of subcortical infarct/necrosis, and presence of inflammatory processing of meninges with clumps of bacteria and occasional yeast/fungal spores.
2) Dystrophic calcification in the wall of a few vessels seen in the brain, tongue, peri-tracheal tissue, as well as seen in the papillary muscle of the left ventricles and the renal tubules.
3) Congenital malformation including short down-slanting palpebral fissure, bilateral microtia with right ear atresia need using hearing aid-bone transduction, incomplete cleft palate post-operation of correction, small mouth, small chin, malar hypoplasia, mandibular hypoplasia (clinically suspect with diagnosis of “Treacher Collins syndrome”).
Ora, tal como anteriormente referimos, estava de boa saúde a vítima antes das intervenções cirúrgicas, nem se detectou qualquer problemas no célebro nem no problema de respiração ou expiração.
Em 2º lugar, foi cometido erro na entubação, o que originou falta ou insuficiência de fornecimento de oxigénio para o cérebro (cabeça) da vítima, que deu causa a Global Anoxic - Ischemic Encephalopathy;
Em 3º lugar, este erro no entubação demorou mais do que uma hora é que veio a descobrir-se, o que agravou a situação de falta de oxigénio no corpo da vítima.
Em 4º lugar, conjugados todos estes elementos e a evolução cronológica dos factos causadores de danos acima analisados (imputados aos médicos da Ré), não encontramos outras causas que pudessem produzir tal problema de Global Anoxic - Ischemic Encephalopathy no caso concreto.
Tudo isto permite-nos estabelecer o nexo de causalidade entre os factos danosos e o resultado: morte, pois, depois das intervenções cirúrgicas, a doente entrou em coima e nunca se recuperou, e, inexistindo dados que digam que a causa de morte não tenha a ver com os actos praticados pelos médicos durante as intervenções cirúrgicas!
Verificando-se todos os pressupostos da responsabilidade civil, há-de ser atendido o pedido dos Autores nestes termos formulados, matéria que vemos de seguida.
*
Pedido dos Autores:
Uma vez preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, há de fixar a indemnização pedida pelos Autores.
O juízo de equidade a que alude o artigo 496.º do Código Civil envolve necessariamente uma margem de graduação que envolve algum subjetivismo que é necessariamente inerente a esse juízo.
Tendo em conta os seguintes factores:
- A falecida era filha dos Autores, com 2 anos de idade, a more da filha causa dor aos progenitores.
- A morte da vítima causou e continuará a causar sempre aos AA. profunda dor, angústia, desgosto, sofrimento e revolta (alínea Q) dos factos assentes).
É justo fixar nestes termos o quantum indemnizatório no valor de MOP$500,000.00 (meio milhão) para cada um dos progenitores (pai e mãe), totalizando MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas).
Uma vez que os Autores não pediram indemnização pelos danos sofridos pela própria doente, pois antes de falecer, andava em coma profundo, tudo isso devia ser compensável, mas como não foi formulado pedido nestes termos, ficamos dispensados de tecer mais considerações nesta ordem.
*
Síntese conclusiva:
I - A responsabilidade civil, em geral, colhe os seus fundamentos na verificação de determinados pressupostos que são como é consabido: o facto e nexo de imputação, o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade, o facto é entendido na sua objectiva consideração e que consubstancia a violação do direito de outrem (ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios) - V. Prof. A. Varela "Das Obrigações em Geral" I, pág. 403-404 Prof. Manuel de Andrade, "Teoria Geral da Relação Jurídica", I pág. 337).
II - O nexo de imputação ou ligação do facto ilícito (por acção ou omissão) ao agente há-de conter uma imputação culposa, subjectiva e compreende o juízo que o agente fez não só objectivamente injusto, mas cuja injustiça ele conheceu ou pode conhecer e que tal lhe seja pessoalmente reprovável (cfr. Kart. Larenz "Derecho de Obligaciones", 11, 1959, pág. 570). O mecanismo da responsabilidade civil funciona, em geral, sempre da mesma forma, o facto (seja ilícito ou proveniente de uma actividade lícita) há-de ligar-se ao agente por um nexo de imputação (de natureza subjectiva ou objectiva respectivamente) e o dano ou prejuízo, por seu turno, há-de ligar-se a facto por um nexo de causalidade (V. Dário Martins de Almeida " Manual de Acidentes de Viação", 3a. edição, pág. 50).
III - Quanto à culpa, ela é a expressão de um juízo de responsabilidade pessoal da conduta do agente que, face ás circunstâncias especiais do caso, deveria ter agido doutro modo, ou por este ter actuado ou deixado de actuar contra o dever que se lhe impunha quer em actuação diferente, quer em actuação que não levou a cabo, tudo de acordo com as normas jurídicas tomadas na sua função imperativa estatuídoras de deveres ainda que gerais (v. Prof. A\. Varela, cfr. cit., I; pág. 442; Prof. Pessoa Jorge "Ensaio" sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 315 e Prof. Figueiredo Dias "o Problema de Consciência da Ilicitude). Por culpa deverá entender-se - diz Larenz (Derecho de Obligaciones II Vol. Pag.570) o juízo que o agente fez, não apenas objectivamente injusto, mas de cuja injustiça estava ciente ou podia estar.
IV - Actualmente é comum o entendimento que, nas relações entre o médico e o doente, o primeiro se obriga a prestar ao segundo, assistência médica, na decorrência da sua prestação de serviços e para satisfazer o interesse do doente, o médico tem de detectar o problema que o afecta, escolher e aplicar uma terapia que o debele ou atenue, segundo as melhores regras disponíveis no momento da prestação. A efectivação da responsabilidade de um médico depende da verificação cumulativa de um conjunto de pressupostos, que têm que ser demonstrados em juízo.
V - Assim, um médico incorre numa situação de incumprimento de “leges artis” quando se desvie do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissional da área, deve obedecer. O seu comportamento será ilícito se se desviou desse comportamento, tomado o seu agente como um elemento de um grupo caracterizado e diferenciado dentro da categoria geral dos profissionais médicos e da especificidade da situação.
VI – No caso são os seguintes factos que evidenciam a ilicitude:
- Foi cometido erro na entubação – vidé os factos provados descritos sob os nº 24º a 44º já acima transcritos (2ª intervenção cirúrgica), facto irrefutável;
- Se a entubação visava manter o fornecimento normal de oxigénio ao corpo da vítima, mas foi cometido erro neste aspecto (facto provado) por um médico da Ré, com isso se causaram “complicações” ao corpo da vítima, o que é uma situação quase “intolerável” face às circunstâncias concretas do caso e aos conhecimentos especializados que um médico tem e devia ter.
- Depois, demorava muito tempo para a detecção da falha cometida – vidé os factos assentes descritos sob os números 24º, 42º (todas as complicações começaram a surgir depois das 13H36, e até 15H00, com a intervenção de uma outra médica, é que veio a saber-se a verdadeira causa das “complicações” observadas). Aqui demorava-se cerca de 1 hora e meia.
VII - Será culposo, se se tomando em conta a especificidade do circunstancialismo em que o concreto agente actuou, se puder concluir que ao agente era exigível outro comportamento.
Considerando a obrigação que um médico assume de prestar assistência a um determinado paciente, pode-se concluir que o resultado imediato é, então, constituído pelo aproveitamento das reais possibilidades (chances) que o doente apresenta de alcançar a satisfação do resultado imediato – a cura, a sobrevivência, a não consumação de uma deficiência ou incapacidade.
Tal aproveitamento verifica-se mediante a adopção de um comportamento atento, cuidadoso e conforme às “leges artis” – que constitui, em suma, a tradicional obrigação principal (de meios) assumida pelo profissional de saúde.
VIII - Demonstrado o incumprimento desta “outra” obrigação, caberá ao médico, para afastar a responsabilização pelo “dano de destruição das possibilidades (ou chances)” provar que aplicou a diligência ou aptidão que lhe era exigível – por outras palavras, que satisfez o interesse mediato – mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida se gorou e as chances existentes se perderam.
A culpa de um médico, na falta de qualquer norma especifica sobre o assunto, é avaliada pela regra geral contida no nº2 do artigo 480º do Código Civil de Macau, ou seja, pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”. Importante para o direito não é erro cientifico em si, mas a causa humana do mesmo, ou seja, para o surgimento de uma obrigação de indemnizar não basta a verificação de um erro, antes se exige que ele assuma uma configuração tal, que torne o agente merecedor de um juízo de reprovação. E sê-lo-á, quando o percurso seguido pelo médico deva ser censurado – seja culposo.
IX – São os seguintes factos que provam a culpa médica imputada à Ré:
7) – No caso, perante o erro médico cometido, pergunta-se, porque é que só quando foi chamada a médica pediatra e esta sugeriu que fosse feito exame Raio-X é que se soube que o tubo foi mal colocado, em vez de estar na traqueia, estava no esófago??
8) – Pergunta-se, um médico de bom pai da família adopta este tipo de comportamento?
9) – No momento foi a médica pediatra é que explicou o fenómeno de “fornecimento normal” (falso, ou aparente) de oxigénio à vítima:
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
Os outros médicos desconheciam? Faltava-lhes experiência? Nenhum médico interveniente tinha conhecimento suficiente para controlar IMEDIATAMENTE esta situação?
10) – Mais, nesta fase, cerca de depois de quase 1 hora e meia é que se veio a detectar o erro cometido! É um tempo razoável para o saber? Em situações normais, se fossem outros médicos, também precisavam de tanto tempo de detectar o problema?
11) - De acordo com o que acima ficou exposto, era a Ré que tinha de alegar e provar que aplicava a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida.
12) - Não conseguiu no entanto, provar tal facto. Subsiste a culpa médica.
X - A consequência mortal do caso agora em apreciação vai contra o normal evoluir das coisas, contra a sucessão vulgar dos acontecimentos, pelo que, pensamos que caberia aos médicos demonstrar que aforam adoptadas todas as diligências necessárias e correctas, tudo de acordo com as legis artis.
XI - No caso, a morte de causa tem a ver com as “complicações cirúrgicas” durante as quais foram cometidos erros, que afectavam a circulação de oxigénio no corpo certo da doente, e os órgãos directamente afectados pela falta ou má circulação de oxigénio são cérebro e ainda pulmões! Consignou-se no relatório de autópsia: 1) Global Anoxic - Ischemic Encephalopathy (tradução portuguesa: Axónica global, encefalopatia isquémica (em chinês: 腦部缺氧) ; with mid brain, pons infarct and focal areas of subcortical infarct/necrosis, and presence of inflammatory processing of meninges with clumps of bacteria and occasional yeast/fungal spores. (…) Tudo isto são co-causas da morte, face à evolução cronológica dos factos e aos elementos provados nos autos.
XII - Tendo em conta que a morte da vítima causou aos AA. profunda dor, angústia, desgosto, sofrimento e revolta (alínea Q) dos factos assentes)., é justo fixar nestes termos o quantum indemnizatório no valor de MOP$500,000.00 (meio milhão) para cada um dos progenitores (pai e mãe), totalizando MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas), julgando-se deste modo procedente o pedido dos Autores, revogando-se a sentença do TA ora recorrida.
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Tudo visto, resta decidir.

* * *
    V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, passando a decidir da seguinte forma:

1) – Proceder à alteração da decisão sobre o quesito 7º e o Facto Assente P) nos termos acima consignados.
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2) - Revogar a sentença do TA recorrida, julgando-se procedente o pedido dos Autores, passando a condenar a Ré a pagar aos Autores a quantia de MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas) (quinhentos mil patacas para cada um dos progenitores), a título de danos morais sofridos pelos mesmos pela perda da vida da filha.
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Custas pelas partes na proporção de decaimento.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 06 de Junho 2019.
                  Fong Man Chong
                  Ho Wai Neng
                  
                  José Cândido de Pinho
                  (vencido, conforme voto anexo)
(Creio não estar suficientemente demonstrado o nexo causal entre a morte da vítima e os erros nos actos médicos cometidos durante a cirurgia, sendo certo que, por se estar em meteria técnica, não deve o tribunal inferir resultados e causas pelo método da presunção judicial.)
                  TSI, 6/6/2019
                  José Cândido de Pinho
                  
                  Mai Man Ieng
                  

1 Art.477.º do Código Civil: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2 Cfr.http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ ebooks/Administrativo_fiscal/eb_ResponsabilidadeMedica2018.pdf, p. 70
3 Idem, nr.177.
4 Idem, nr.178.
5 Cfr.Idem,p.71.
6 Cfr.Idem,p.82.
7 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do acto médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional, Almedina, 2013, p.15.
8 Cfr. Do acto médico ao problema jurídico, pp.48,49.
9 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do ao médico ao problema jurídico, pp. 146, 147. No mesmo sentido, RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico. Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, Coimbra, 2008, pp. 293-295, 300-301.
10 Cfr. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico, pp. 424-425.
11 Cfr. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A perda de chance de cura ou sobrevivência: um remédio necessário para o funcionamento da responsabilidade civil médica? - a revisitação de um tema, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Vol. 2, Almedina, 2016, p. 94.
12 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do ao médico ao problema jurídico, pp. 148,149.
13 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do ao médico ao problema jurídico, p.153.
14 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do ao médico ao problema jurídico, p.161.
15 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do ao médico ao problema jurídico, pp.150,151.
16 Cfr. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico, p. 295.
17 Cfr. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A responsabilidade civil do médico, p. 300.
18 Cfr. VERA LÚCIA RAPOSO, Do acto médico ao problema jurídico, p. 59.
19 A propósito desta doença, escreve-se o seguinte (www.kingsnet.com.tw):
疾病名稱: Treacher Collins氏症候群  ( Treacher Collins Syndrome )19 



Treacher Collins Syndrome是一種先天性臉頰骨及下頷骨發育不全疾病,又稱為「下頷骨顏面發育不全」,是在1900年時由Treacher Collins醫師所命名。
遺傳模式:
此疾病屬於體染色體顯性遺傳疾病,致病原因為位於第五對染色體上的TCOF1基因(5q32-33.1)發生缺陷所致,大部分患者是因此基因偶發性突變而罹病,另一部分患者具有家族史,意即遺傳自父母親其中一人之缺陷基因。此疾病之臨床症狀差異很大,許多成人患者症狀十分輕微不易診斷出來,待生育此病症之患童才發現自身亦為患者。
症狀:
1.臉部外觀異常:下眼瞼呈V字型缺陷或下垂、眼睛下垂、部分患者有斜視現象;顴骨發育不全或缺失;嘴巴大、顎裂、下巴小;部分患者外耳構型異常及聽力缺損;頭髮生長延伸至兩頰(鬢毛)。
2.呼吸道狹小:咽管及鼻咽管狹小,以及發育不全的下頷造成舌頭位置向後移動,造成呼吸道狹小,睡眠時無法獲得充足的氧氣,突然呼吸暫停,而有睡眠窒息(Sleep Apnea)情形發生。
3.智能及生長:患者一般生長發育正常發展且擁有正常智能,鮮少患者有發育遲緩問題,大多是因聽力損傷導致學習及溝通困難。
診斷:
1.臨床診斷:面部外觀上的異常通常為診斷的第一步驟,X光攝影可發現顴骨發育不良缺失的現象。聽力檢查可早期發現患童是否有聽力障礙。

2.基因檢查:可利用分子生物技術,分析TCOF1基因是否帶有缺陷,此技術亦可運用於產前遺傳診斷。
治療:
治療部分首重聽力缺損修補,聽力障礙可能會造成患者學習及溝通困難。顏面顱骨手術可改善患者面部外觀異常。除此之外,照顧Treacher Collins Syndrome患者必須配合多方面的專家長期追蹤,包括耳鼻喉科、眼科、牙科、整形外科等。
1.聽力矯正:根據患者耳道缺失程度不同而有不同的治療方式,對於輕微喪失聽力患者,只需給予助聽器,即可改善聽力。若外耳及內耳構造受到影響,則需進行耳道重建手術,通常重建耳道手術可利用患童自己的肋骨軟骨組織來進行外耳道的重建,耳道重建手術通常要分3-4次進行。
2.視力矯正及追蹤:一般患者視力不受眼部構造異常影響,但少數患者有斜視現象,須配合眼科醫師做校正。
3.顏面顱骨手術:由於Treacher Collins Syndrome牽涉到不同部位的手術矯正,必須請教顏面顱骨手術的專家。手術包括顎裂的修補,下頷骨及顴骨的重建等等。
4.呼吸治療:為避免呼吸道狹小所引起的睡眠窒息問題,可選擇放置氣管切管以協助其維持呼吸道之通暢。
5.牙齒矯正:因下頷骨發育不全,影響牙齒發育及排列,應定期接受牙醫檢查,必要時以裝置假牙來治療。
6.語言治療:即早的語言治療,可避免聽力損傷所造成的傷害。
Treacher Collins Syndrome患者一般擁有正常智能,其存活生命亦不受影響。然而顏面外觀的異常,影響患者自我肯定,進而影響就學就業及與外界的社交活動,因此心理輔導及家人支持極為重要。 

20 FREITAS DO AMARAL, Direito..., III vol., p. 503 a 505.
21 ANA RAQUEL MONIZ, Quando caem em desgraça..., p. 18.
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