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Processo n.º 55/2019. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrido: B.
Assunto: Sinal em dobro. Juros de mora. Momento da constituição em mora. Onerosidade excessiva no pagamento de juros moratórios desde a citação para a acção. Abuso de direito.
Data do Acórdão: 10 de Julho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I - São devidos juros de mora sobre o sinal em dobro, quando há lugar a restituição deste, por incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, depois de o devedor ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, a menos que o próprio devedor tenha impedido a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
   II – Não pode ser considerada excessiva a onerosidade decorrente do pagamento de juros moratórios desde a citação para a acção, que durou 13 anos até se atingir a decisão final, eventualmente, com recurso ao instituto do abuso de direito, sem que o réu alegue e prove que a demora na obtenção de uma decisão final se deveu à litigância do autor, que levou ao arrastamento dos termos processuais e impediu uma decisão célere, menos onerosa para a ré.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
B intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra A e C, pedindo:
A) Julgar-se nula e de nenhum efeito as compras e vendas celebradas entre os Réus, que tiveram por objecto as fracções autónomas “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 22 do Livro XXXX e as fracções autónomas “A18” e “B18”, do prédio descrito na mencionada Conservatória sob o nº XXXXX, a fls. 23 do Livro XXXX, tituladas pela escritura pública exarada em 10 de Dezembro de 2004 a fls. 4 do livro de notas para escrituras diversas nº XX-X do Cartório da Notária Privada D, mandando-se cancelar na Conservatória do Registo Predial de Macau o registo de aquisição a favor do Segundo Réu, fundado nas mencionadas e simuladas compra e venda, no que concerne somente às fracções autónomas acima identificadas, registo que foi efectuado mediante a inscrição nº XXXXX do Livro G;
B) Declarar-se que a Primeira Ré, por facto voluntário seu que lhe é exclusivamente imputável, não cumpriu as obrigações que havia assumido para com o Autor, através dos contratos-promessa que celebrou com este e a que se reportam os documentos 9 a 12 e 16 a 24 que ora se juntam;
C) Proferir-se sentença constitutiva que produza os efeitos da declaração negocial da Primeira Ré em falta, declarando-se vendidas ao Autor e transmitindo-se para a sua titularidade as fracções autónomas denominadas por “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, “A18” e “B18” todas acima melhor identificadas na alínea a) do pedido, pelos preços já pagos respectivamente de HKD709.645,00; HKD788.160,00; HKD484.720,00; HKD733.949,70; HKD829.500,00 e HKD804.300,00;
D) Declarar-se a resolução dos contratos-promessa celebrados entre a Primeira Ré e o Autor relativamente às fracções autónomas designadas por “A17”, “B16”, “B17”, “C17”, “D17”, “C18” e “D18”, todas do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX (fracções essas que o Segundo Réu transmitiu a terceiros), por incumprimento definitivo e culposo da Primeira Ré e, consequentemente, condenar-se esta a pagar ao Autor a quantia global de HKD11.761.000,00 equivalente para efeitos fiscais a MOP12.102.069,00, acrescida de juros à taxa legal, desde a data do seu incumprimento, isto é 10 de Dezembro de 2004, até efectivo e integral pagamento, quantia que corresponde ao dobro do sinal pago ou considerado entregue pelo Autor;
Subsidiariamente, para o caso de os pedidos constantes das alíneas A), B) e C) supra não procederem, requer-se:
E) A declaração de resolução de todos os, contratos-promessa que tiveram por objecto as seguintes treze fracções autónomas: “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, “B16”, “A17”, “B17”, “C17”, “D17”, “A18”, “B18”, “C18” e “D18”, todas atrás melhor identificadas, celebrados entre a Primeira Ré e o Autor, por incumprimento definitivo e culposo daquela e, consequentemente, a condenação da Primeira Ré no pagamento ao Autor, a título de indemnização correspondente ao dobro do sinal, a quantia global de HKD20.461.549,40 (vinte milhões quatrocentos e sessenta e um mil quinhentos e quarenta e nove dólares de Hong Kong e quarenta cêntimos), equivalente para efeitos fiscais a MOP21.054.934,33 (vinte e um milhões cinquenta e quatro mil novecentas e trinta e quatro patacas e trinta e três avos), acrescida de juros à taxa legal, desde a data do incumprimento, isto é 10 de Dezembro de 2004;
Ainda subsidiariamente, para o caso de se entender que os contratos-promessa celebrados entre a Primeira Ré e o Autor não revestem essa natureza e que, portanto, o incumprimento definitivo e culposo daquela, das obrigações que havia assumido perante o Autor não pode ter como consequência a obrigação de indemnização pelo dobro do sinal,
requer-se:
F) A condenação da Primeira Ré no pagamento ao Autor de uma indemnização no valor de HKD10.230.774,70 (dez milhões duzentos e trinta mil setecentos e setenta e quatro dólares de Hong Kong e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da celebração dos contratos-promessa, até efectivo e integral pagamento, indemnização essa que corresponde ao valor dos adiantamentos feitos pelo Autor à G e que deveriam ter sido efectuados pela Primeira Ré, deduzida das quantias relativas às três fracções autónomas cujos direitos aquele cedeu a terceiros com a anuência da Primeira Ré.
Por sentença do Ex.mo Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, foi julgado procedente o pedido da alínea E), com excepção do pedido de juros de mora, que foram concedidos apenas a partir da data da decisão.
Recorreram o autor B, quanto ao pedido de juros e a 1.ª ré A, da sua condenação, para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), que concedeu provimento ao recurso do autor, julgando serem devidos juros de mora a partir da citação e negou provimento ao recurso da 1.ª ré.
Recorre, agora, a 1.ª ré A para este Tribunal de Última Instância (TUI), da parte do acórdão do TSI que julgou serem devidos juros de mora a partir da citação, defendendo que:
- É aplicável o entendimento do acórdão uniformizador de jurisprudência que A indemnização pecuniária por facto ilícito, por danos não patrimoniais ou não patrimoniais, vence juros de mora a partir da data de decisão judicial que fixa o respectivo montante, nos termos dos artigos 560.°, n.º 5, 764.°, n.º 4 e 795.°, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, seja a sentença de 1.a instância ou tribunal de recurso ou decisão na acção executiva que liquide a obrigação.
- O acórdão recorrido, para além de se apoiar nas premissas legais erradas para concluir pela condenação da 1.a ré, ora Recorrente, no pagamento de juros de mora a contar a partir da citação, ao fazê-lo incorreu na violação do princípio da justiça contratual e da "exigibilidade por onerosidade excessiva".
- Não havendo qualquer estipulação de cláusula penal moratória ou existência de um dano excedente consideravelmente superior, não poderá haver lugar ao pagamento de juros de mora,nos termos do n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil de Macau.
- A ser devido qualquer pagamento de juros, só o deverá ser feito na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, nos termos do artigo 560.º do Código Civil.
Recorreu, também, a 1.ª ré A para este Tribunal de Última Instância (TUI), da parte do acórdão do TSI relativa à manutenção da condenação no pagamento do sinal em dobro, com fundamento no disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 583.º do Código de Processo Civil, por considerar estar em oposição com o acórdão do TSI de 17 de Novembro de 2005, no Processo n.º 56/2005.
Este recurso não foi admitido pelo relator por considerar não existir oposição entre os dois acórdãos.
Reclamou a 1.ª ré A para a conferência deste despacho.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
a) A 1ª R. é uma sociedade anónima de responsabilidade limitada que tem por objecto o fomento predial;
b) Por escritura pública de 16 de Dezembro de 1980, o Governo de Macau concedeu por arrendamento à 1ª R., um terreno situado junto à Estrada de Sete Tanques, Ilha da Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 116 do Livro X-XX, encontrando-se o direito ao arrendamento inscrito a favor da dita R. sob o nº XXXXX do Livro XXXX;
c) O terreno destinava-se a desenvolver um empreendimento denominado “E”, dividido por Fases I, II, III, IV e V, em que a Fase I é composta por 4 Blocos (designados A1, A2, A3 e A4), e as Fases II, III, IV e V são compostas por 3 Torres (designadas B1, B2 e B3) um conjunto de 10 vivendas (designadas M1), um conjunto de 14 moradias geminadas (designadas M2), um conjunto de 12 moradias em banda (designadas M3) e ainda um clube, um hotel e uma escola;
d) O A. é sócio e gerente da sociedade comercial denominada por “F”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº XXXX (XX), com o capital social de MOP40.000.000,00, onde detém uma quota no valor nominal de MOP12.000.000,00, ou seja, 30% do capital social;
e) O A. é sócio maioritário e dominante (detém 90% do capital social), e também gerente da sociedade comercial denominada por “G”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº XXXX (XX), com o capital social de MOP500.000,00, onde detém uma quota no valor nominal de MOP450.000,00;
f) Em 1 de Novembro de 1989, a 1ª R. e a “F” assinaram um contrato, que se junta como doc. nº 4 da petição inicial e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, pelo qual acordaram em associar-se com vista ao desenvolvimento das fases II, III, IV e V do mencionado complexo que ficou designado por “E”;
g) Por contrato celebrado em 1 de Julho de 1991 entre a sociedade comercial denominada “H” e a F, que se junta como doc. nº 6 da petição inicial e cujo teor se dá aqui por reproduzido, a H cedeu à F os seus direitos de construção, administração e venda dos quatro blocos que compunham a Fase I do complexo imobiliário denominado “E” e que lhe tinha sido concedidos pela 1ª R.;
h) Os blocos A1 e A2, bem como algumas das infra-estruturas inerentes, foram construídos pela H, ao abrigo do contrato que esta havia celebrado com 1ª R.;
i) Do complexo estavam concluídos, em 1995, os blocos A1, A2 e A3, as torres B1, B2 e B3, dez vivendas (M1), a escola e as infra-estruturas inerentes.;
j) Para realizar a construção do restante da urbanização a F contratou uma sociedade comercial denominada “G”, sociedade essa que se encontra registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o nº XXXX, a fls. 69 do Livro XX;
k) O A. e a 1ª R. celebraram em 22 de Fevereiro de 1995, dezasseis acordos, nos termos dos quais, a 1ª R. declarou prometer vender ao A. que, por sua vez, declarou prometer comprar livre de quaisquer ónus ou encargos e devolutas as seguintes fracções autónomas:
- fracções autónomas designadas por “C1”, “AC/V”, “BC/V” e “CC/V”, todas do prédio sito na Rua cidade de Lisboa com os nºs XX a XX e na Estrada de Sete Tanques, nº XXX, na Ilha da Taipa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 22 do Livro X-XXX, denominado por Bloco A3, identificado como Edifício “I”, do complexo habitacional “E”;
- fracções autónomas designadas por “A15”, “B15”, “A16”, “B16”, “A17”, “B17”, “C17”, “D17”, “A18”, “B18”, “C18” e “D18”, todas do prédio sito na Rua cidade de Lisboa com os nºs XXX a XXX-X, na Ilha da Taipa, descrita na Conservatória do Registro Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 23 do Livro X-XXX, denominado por Torre B3, identificado como Edifício “J”, do complexo habitacional “E”;
l) Pelos preços respectivamente de:
- fracção autónoma designada por “C1”: HKD709.645,00;
- fracção autónoma designada por “AC/V”: HKD788.160,00;
- fracção autónoma designada por “BC/V”: HKD484.720,00;
- fracção autónoma designada por “CC/V”: HKD733.949,70;
- fracção autónoma designada por “A15”: HKD799.500,00;
- fracção autónoma designada por “B15”: HKD774.300,00;
- fracção autónoma designada por “A16”: HKD809.500,00;
- fracção autónoma designada por “B16”: HKD784.300,00;
- fracção autónoma designada por “A17”: HKD819.500,00;
- fracção autónoma designada por “B17”: HKD794.300,00;
- fracção autónoma designada por “C17”: HKD853.000,00;
- fracção autónoma designada por “D17”: HKD878.200,00;
- fracção autónoma designada por “A18”: HKD829.500,00;
- fracção autónoma designada por “B18”: HKD804.300,00;
- fracção autónoma designada por “C18”: HKD863.000,00; e
- fracção autónoma designada por “D18”: HKD888.200,00;
m) Os imóveis supra identificados encontravam-se, sem excepção, à data da celebração dos respectivos contratos promessa, inscritos na Conservatória do Registo Predial a favor da Primeira R., sob a inscrição nº XXXXX, tendo sido nessa qualidade de proprietária e titular registada das fracções autónomas que a A celebrou os aludidos contratos promessa;
n) O A. celebrou com K e a sua mulher L, M e sua mulher N e O três contratos pelos quais cedeu a essas pessoas todos os direitos resultantes dos acordos celebrados com a 1ª R. e que tiveram por objecto respectivamente as fracções autónomas “A15”, “B15” e “A16” do Bloco III supra identificadas;
o) Em 10 de Dezembro de 2004, 1ª R. celebrou com C, ora 2º R., uma escritura pública de compra e venda, lavrada a fls. 4 do Livro XX-X do Cartório da Notária Privada D, através da qual declarou vender a este que, por seu turno, declarou comprar pelo preço global já pago de MOP8.441.020,00 as fracções autónomas designadas por “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, “B16”, “A17”, “B17”, “C17”, “D17”, “A18”, “B18”, “C18” e “D18”, todas supra melhor identificadas;
p) O 2º R. procedeu ao registo dessa aquisição no próprio dia da outorga da escritura pública mencionada em o)1 dos factos assentes, conforme apresentação nº 227 de 10 de Dezembro de 2004;
q) Foi incidida sobre as supra 13 fracções uma providência cautelar, a qual foi declarada sem efeito, cessando as proibições que a mesma impunha, por despacho proferido no âmbito do processo 79/95/A, do então 4º Juízo em 17 de Novembro de 2004, notificado às partes no dia 18 do mesmo mês, e que, portanto, transitou em julgado no dia 6 de Dezembro de 2004;
r) Entre Autor e 1ª Ré foram celebrados os contratos de promessa de compra e venda a que aludem as alíneas k) e l)2 dos factos assentes;
s) Aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais o que consta do texto dos contratos de promessa de compra e venda a fls. 77 a 156;
t) A 1ª R., no dia posterior ao trânsito em julgado da (referida) decisão que fez cessar as medidas decretadas na providência cautelar mencionada na alínea q)3 (da matéria de facto assente), estava já reunir em conselho de administração, deliberando a venda destas treze fracções autónomas e designando um seu representante na celebração da escritura pública, precisamente o comprador das mesmas: o 2º R.;
u) A 1ª R., representada pelo 2º R., declarou vender todos estes imóveis por um valor que é exactamente igual ao seu valor matricial;
v) Para desenvolver a supra mencionado empreendimento imobiliário de “E”, durante os anos 1991 a 1993, a 1ª R. obteve facilidades bancárias no montante global de HKD49.500.000,00 junto do [Banco (1)] (anteriormente designada [Banco (1)]);
w) No ano de 1995, as facilidades bancárias mencionadas na alínea anterior não foram liquidadas;
x) A presente acção judicial e o seu registo na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição nº XXXXX do livro F impediu o 2º R. a alienar, livre de ónus e de encargos, os direitos resultantes da concessão por arrendamento das referidas fracções autónomas “C1”, “CC/V”, “AC/V”, “BC/V”, “A18” e “B18” a favor de terceiros;
y) O preço devido pelas cessões referidas na alínea n)4 (da matéria de facto assente) foi integralmente pago ao A. pelos cessionários, com o conhecimento e anuência da 1ª R.;
z) A 1ª R. nunca recebeu pelo preço das ditas cessões ou sequer reclamou o pagamento de qualquer quantia;
aa) Em 20 de Julho de 2001, a 1ª R. em cumprimento dos contratos de cessão referidos na alínea n)5 (da matéria de facto assente), celebrou com os promitentes-compradores cessionários as respectivas escrituras públicas referentes às transmissões de titularidade das fracções autónomas “A15” e “A16” e em 22 de Setembro de 2001 a 1ª R. em cumprimento dos contratos de cessão referidos na alínea n) (da matéria de facto assente), celebrou com os promitentes-compradores cessionários as respectivas escrituras públicas referentes às transmissões de titularidade da fracção autónoma “B15”;
bb) A 1ª R. declarou nas aludidas escrituras como preço de venda precisamente o mesmo que consta dos acordos referidos da alínea k)6 (da matéria de facto assente) celebrados entre a 1ª R. e o A., preço que ela nada recebeu.
  
  


III – O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de apreciar a reclamação para a conferência e decidir se são devidos juros de mora sobre o sinal em dobro, quando há lugar a restituição deste sinal em dobro, por incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel. E, a serem devidos, desde quando.

2. Reclamação para a conferência
Antes de mais, cabe corrigir uma confusão da reclamante. O despacho do relator não constituiu nenhuma decisão sumária, mas sim um despacho de não admissão do recurso, dado que, na parte em questão do acórdão recorrido, houve manutenção da decisão de 1.ª instância, por unanimidade (n.º 2 do artigo 638.º do Código de Processo Civil, vigente ao tempo), sendo que, por outro lado, não existia ente o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (acórdão do TSI de 17 de Novembro de 2005, no Processo n.º 56/2005) a oposição a que se refere a alínea e) do n.º 2 do artigo 583.º do Código de Processo Civil.
Tal despacho foi proferido ao abrigo do n.º 1 do artigo 621.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que o relator aprecia se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso. A tese da reclamante de que o relator não tem poderes para decidir não conhecer um recurso por a decisão ser irrecorrível, além de contrariar lei expressa, não tem apoio na doutrina conhecida e certo é que a reclamante não invoca nenhum autor em seu abono.
Explicam LEBRE DE FREITAS e RIBEIRO MENDES7, referindo-se ao n.º 1 do artigo 701.º do Código de Processo Civil português de 1961, que é semelhante à norma do Código de Macau: “Após a distribuição, o processo é concluso ao relator, o qual deve apreciar se o recurso é o próprio, isto é, se a espécie foi bem fixada pelo tribunal a quo (art. 702), se deve manter-se o efeito que lhe foi fixado (art. 703) e se há circunstâncias que obstem ao conhecimento do seu objecto, como, por exemplo, a irrecorribilidade da decisão, a ilegitimidade do recorrente ou a falta de outro pressuposto processual específico (art. 704)”.
A tese da recorrente é a de que a questão fundamental decidida pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 17 de Novembro de 2005, no Processo n.º 56/2005 é que se parta do regime do artigo 436.° do Código Civil e, preenchimento dos seus pressupostos, ou seja, entrega real e efectiva do preço, para que haja uma efectiva condenação, ou não, ao pagamento do sinal em dobro em caso de incumprimento definitivo.
E que no acórdão recorrido bastaram-se com a mera declaração formal do pagamento do preço inserido em cláusula template dos contratos-promessa, sem curar da entrega efectiva e real do valor do sinal/preço pelo Autor à 1.a Ré, ora Recorrente.
Ora, não só no acórdão recorrido não há nenhuma decisão expressa sobre a questão mencionada pela reclamante, como também no acórdão fundamento não há decisão expressa sobre a mesma questão.
Ora, como este Tribunal tem decidido, a oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.
Por outro lado, em bom rigor, a questão que a recorrente identifica não é uma questão de direito, mas uma mera questão de facto.
Tanto basta para confirmar o despacho do relator que não admitiu, nesta parte, o recurso.

3. Juros de mora. Dobro do sinal
Trata-se, como se disse, de saber se são devidos juros de mora sobre o sinal em dobro, quando há lugar a restituição deste sinal em dobro, por incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel. E, a serem devidos, desde quando.
A questão nunca foi objecto de decisão por este Tribunal e não é pacífica, podendo considerar-se maioritária na jurisprudência e na doutrina a tese da exigibilidade dos juros moratórios.
Como se sabe, em matéria de mora do devedor, os princípios gerais estão previstos no artigo 793.º do Código Civil, inserido na Divisão III Mora do devedor, da Subsecção II, da Secção II, do Capítulo VII, do Título I, do Livro II Direito das Obrigações.
Dispõe o artigo 793.º:
 Artigo 793.º
 (Princípios gerais)
 1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
 2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.

Quanto ao momento da mora, rege o artigo 794.º:
 Artigo 794.º
 (Momento da constituição em mora)
 1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
 2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
 a) Se a obrigação tiver prazo certo;
 b) Se a obrigação provier de facto ilícito; ou
 c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
 3. No caso da alínea a) do número anterior, devendo a prestação ser cumprida no domicílio do devedor, só há mora se o credor a reclamar aí.
 4. Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor.

Relativamente às obrigações pecuniárias, o artigo 795.º esclarece qual a indemnização devida em caso de mora:
Artigo 795.º
(Obrigações pecuniárias)
 1. Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.
 2. Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.
 3. Pode, no entanto, o credor provar que a mora lhe causou dano consideravelmente superior aos juros referidos no número anterior e exigir a indemnização suplementar correspondente.

Quer isto dizer que, nas obrigações pecuniárias, em princípio:
- A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
- O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
- Em regra (que tem excepções), o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
- A indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, que, em regra, são os legais.
Vejamos, agora se o regime de indemnização pelo incumprimento contratual quando haja sinal, afasta as normas acabadas de citar.
Estatui sobre a matéria o artigo 436.º do Código Civil:
Artigo 436.º
(Sinal)
1. Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.
3. A parte que não tenha dado causa ao incumprimento poderá, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, quando esse poder lhe seja atribuído nos termos gerais.
4. Na ausência de estipulação em contrário, e salvo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
5. É igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 801.º

A tese da recorrente é a de que o n.º 4 do artigo 436.º impede outra indemnização, que não o dano excedente, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
Mas não é assim.
O que o n.º 4 do artigo 436.º impede é outra indemnização pelo não cumprimento do contrato, que não o dano excedente, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
Como vimos, a indemnização a que se referem os artigos 793.º, 794.º e 795.º é pela mora, isto é, pelo atraso no cumprimento e não pelo incumprimento.
Podemos concluir que o n.º 4 do artigo 436.º não preclude a indemnização pela mora na restituição do sinal em dobro8.

4. Momento da constituição em mora
Dado que a obrigação não tinha prazo certo, o momento da constituição em mora só se dá, de acordo com o artigo 794.º, depois o devedor ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, a menos que a obrigação provier de facto ilícito ou se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
Como a obrigação não provem de facto ilícito extracontratual9e o autor não alegou que devedor tenha impedido a interpelação, a mora deu-se com a citação para a acção10.
O acórdão de uniformização de jurisprudência de 2 de Março de 2011 não se aplica à situação dos autos, pois estava em causa um ilícito extracontratual. Dissemos nesse acórdão:
«Há casos, no entanto, em que a interpelação não é necessária para que o devedor fique constituído em mora e, assim, obrigado a indemnizar os danos causados por esta.
Um destes casos, em que há mora do devedor independentemente de interpelação para cumprir, é o de a obrigação provir de facto ilícito [artigo 794.º, n.º 2, alínea b) do Código Civil].
Desta norma, com origem no Direito Romano, resulta que quando a obrigação provem de facto ilícito extracontratual a mora conta-se a partir do facto ilícito11.
Contudo, mesmo que a obrigação provenha de facto ilícito, “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor” (artigo 794.º, n.º 4 do Código Civil).
Ora, conjugando este preceito com aquele outro, atrás mencionado, segundo o qual “... a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” (n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil), temos que, em caso de litígio judicial quanto ao valor dos danos, o crédito só se torna líquido quando o juiz o fixa, seja na sentença em 1.ª instância, seja na decisão em recurso, quando o valor fixado anteriormente é alterado ou quando em 1.ª instância, por uma razão ou por outra, nenhum valor foi fixado. Podendo mesmo acontecer que o devedor só entre em mora na execução, se o montante dos danos só nesta fase for liquidado (artigo 564.º, n.º 2 do Código de Processo Civil)».
No nosso caso, está em causa, por um lado, a responsabilidade contratual e, por outro, o crédito era líquido.
Logo, não tem aplicação o acórdão de uniformização de jurisprudência.
5. Onerosidade excessiva no pagamento de juros moratórios desde a citação para a acção
Alega a recorrente ser excessivamente oneroso o pagamento de juros legais desde a citação para a acção.
A onerosidade excessiva é um instituto do Código Civil brasileiro de 2002, possibilitando a resolução ou modificação do contrato, nos contratos de execução continuada ou diferida, quando a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis (artigo 478.º), o que se assemelha ao instituto do Direito português e de Macau, da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, quando as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (artigo 431.º do Código Civil)
Na exigência de juros moratórios não estamos perante esta realidade, de quebra do equilíbrio contratual.
Mas, para que o fundamento pudesse ser considerado, eventualmente com recurso ao instituto do abuso de direito, teria a ré, no mínimo, de alegar e provar que a demora na obtenção de uma decisão final se deveu à litigância do autor, que levou ao arrastamento dos termos processuais e impediu uma decisão célere, menos onerosa para a ré, portanto.
Não tendo a recorrente demonstrado que deve ser imputado ao autor e à sua litigância o tempo decorrido excessivo para a obtenção de uma decisão final, falece a pretensão da recorrente.

IV – Decisão
Face ao expendido:
A) Indefere-se a reclamação para a conferência;
B) Nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente tanto do recurso como da reclamação para a conferência, fixando-se a taxa desta em 3 UC.
Macau, 10 de Julho de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 Antes M) resultando a alteração de letras por a inicial ser por remissão para os factos assentes indicados aquando da elaboração do saneador e a actual, a que resulta das alterações posteriormente introduzidas por mor das reclamações.
     2 Alteração de letra pelas razões expostas na nota de rodapé anterior.
     3 Alteração de letra pelas razões expostas na nota de rodapé anterior.
     4 Alteração de letra pelas razões expostas na nota de rodapé anterior.
     5 Alteração de letra pelas razões expostas na nota de rodapé anterior.
     6 Alteração de letra pelas razões expostas na nota de rodapé anterior.
     7 LEBRE DE FREITAS e RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 3.º volume, p. 77.
     8 Por todos, para o Direito português, JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, 1.ª edição, 2011, p. 341 e 342.
     9 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, II vol., 9.ª edição, p. 119.
     10 Neste sentido, JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA, Lições…, p. 342.
     11 ANTUNES VARELA, Das Obrigações..., Volume II, reimpressão da 7.ª edição, 2001, p. 119.
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