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Proc. nº 871/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 30 de Maio de 2019
Descritores:
- Acções ao portador
- Acção de reivindicação
- Usucapião

SUMÁRIO:

I - As acções ao portador (actualmente extintas face à publicação da Lei nº 4/2015) são valores mobiliários que representam participação em sociedades através de um título próprio.

II - Apesar de resultar da acção um direito em benefício do seu titular, certo é que a acção/título não deixa de ser uma “res”. Cabe, por isso, no âmbito de “coisa”, cuja entrega judicial é requerida ao tribunal, em acção de reivindicação nos termos do art. 1235º do Código Civil.

III - No entanto, pela sua própria natureza, dificilmente pode a usucapião com base no trato sucessivo pode ter êxito, face à circunstância de as acções se transmitirem pelo mero efeito da entrega ao adquirente.

IV - Tal não quer dizer que a usucapião se não invoque com base na presunção derivada do registo ou emergente da posse, nos termos nos termos do art. 1193º, do CC.

V - A propriedade derivada da usucapião tem que ser expressamente invocada.
Proc. nº 871/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - Relatório
A, do sexo masculino, casado, de nacionalidade chinesa, titular do BIRP n.º 7xxxxxx(3), emitido pela DSI da RAEM em …, com o endereço de contacto em Macau, na …, adiante designado por “1.º Autor”; e ----
B, do sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRP n.º 5xxxxxx(7), emitido pela DSI da RAEM em …, com o endereço de contacto em Macau, na …, adiante designada por “2.ª Autora”, ----
Instauraram no TJB (Proc. nº CV1-16-0082-CAO) ----
Acção declarativa com processo ordinário contra: ----
C, do sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRP n.º 5xxxxxx(2), emitido pela DSI da RAEM em …, com o endereço de contacto em Macau, na A…, adiante designada por “Ré”.
Na petição formulou os pedidos seguintes:
1º. Condenação da ré a restituir as acções depositadas;
2º. Caso não seja possível à ré proceder à restituição, a condenação desta no pagamento de uma indemnização correspondente aos danos, computados no valor de HKD$10.000.000,00, bem como juros legais desde a data de citação, até ao seu pagamento integral.
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À matéria da contestação, responderam os AA com a réplica, na qual alteraram os pedidos, passando estes a ser os seguintes:
1º-a) Resolução do contrato de depósito, com a consequente restituição pela ré das acções nela depositadas;
1º-b) Subsidiariamente, e nos termos do art. 1235º do CC, o reconhecimento pela ré de que as acções pertencem aos AA, com a consequente restituição;
2º - Subsidariamente, para a hipótese de a Ré não poder já restituir as acções depositadas, a condenação desta no pagamento da indemnização no valor de HKD$10.000.000,00.
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Por despacho de fls. 172-181 dos autos, foi admitida a alteração do pedido (fls. 13 e 14 do apenso “traduções”).
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No despacho saneador, o juiz titular do processo conheceu de várias excepções. Em consequência desse conhecimento, decidiu:
a) Em relação ao pedido 1-a), absolver a ré da instância, nos termos dos arts. 139º, nº2, al. c), 230º, nº1, al. b), 413º, al. b) e 414º, do CPC com base na nulidade decorrente da ineptidão por formulação de pedidos substancialmente incompatíveis;
b) Improcedência do pedido 1º-b);
c) Em relação ao pedido 2º, absolver a ré da instância, com base na ineptidão da petição inicial, por falta de factos concretos e caracterizadores da causa de pedir, nos termos dos arts. 139º, nº2, al. c), 230º, nº1, al. b), 413º, al. b) e 414º, do CPC.
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Contra esta decisão, vêm os AA apresentar recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“1. É seguinte a decisão proferida pelo tribunal a quo em 2018.4.30:
- Na acção de reivindicação, se o autor adquire, por meio de aquisição transmissiva, a coisa que este prende outrem a restituir, não pode limitar-se a alegar e prova o negócio de compra e venda e deve também alegar e provar a propriedade do vendedor à coisa vendida.
- Os dois autores não alegam qualquer facto de que o vendedor das acções em causa tinha a propriedade. De acordo com as doutrinas e jurisprudências acima citadas, a acção de reivindicação instaurada pelos dois autores vai ser julgada improcedente porque não se prova que o vendedor das acções tinha propriedade destas e, por consequência, não se prova eles têm propriedade das acções em causa.
- Para efeito do princípio de não realizar actos processuais inúteis, este juízo também aplica a opinião em cima, entendendo que o juízo pode na fase de saneamento julgar improcedente o pedido com base em que o autor falta a alegar facto necessário para a procedência do pedido.
- Nestes termos, com base em que os dois autores faltam a alegar qualquer facto de o vendedor das acções em causa ter o direito de propriedade e que a acção de reivindicação instaurada por eles vai ser julgada improcedente por causa de não se provar a propriedade deles às acções em causa, julga improcedente o pedido subsidiário 1.b apresentado pelos dois autores (condenar a ré no reconhecimento da propriedade das acções referidas no artigo 4º da petição inicial e na restituição das acções) e indefere o pedido.
- Pelo exposto, julga: (…) improcedente o pedido subsidiário 1.b) e indefere o pedido.
2. Salvo o devido respeito, os dois recorrente não se conforma com a decisão, com os fundamentos seguintes:
a) Erro notório na apreciação das provas
3. Em primeiro lugar, é de notar que a coisa litigiosa é acções ao portador (不記名股票), com os dados detalhados seguintes: 1) 500,000 acções da Sociedade de D有限公司, com RMB 2.00 por acção; 2) 40,000 acções da Sociedade de E有限公司 com RMB 2.00 por acção; 3) 31,000 acções da F, com RMB 2.00 por acção.
4. Nos termos do art.º 40.º, conjugado 41.º, do Código Civil, as duas partes da compra e venda não determinaram a lei aplicável e são todas no Interior da China as três sociedades emitentes das acções. Ademais, os dois recorrentes compraram na Cidade Zhuhai da China as acções ao portador acima referidas. Por isso, deve ser aplicável a lei chinesa.
5. Dispõe o art.º 140.º da «Lei da Sociedades Comerciais da RPC» de 2013: “A transmissão das acções ao portador produz efeito logo que o sócio entregue estas ao transmissário.”
6. De facto, devida à natureza das acções ao portador (não se consta o nome do proprietário), na maioria dos sistemas normativos, a propriedade destas pertence ao portador e é transmissível pela simples entrega da coisa.
7. Por isso, o simples facto de que os dois recorrentes eram portadores das acções ao portador quando entregaram estas à recorrida para depósito, pode provar que os dois recorrente têm a propriedade, os quais não precisa de alegar e provar o direito de propriedade do vendedor à coisa vendida, nem de alegar e provar o negócio da compra e venda, para verificar a propriedade dos dois recorrente.
8. Nestes termos, o tribunal a quo padece do erro notório na apreciação das provas, faltando a considerar a natureza das acções ao portador, por consequência, concluindo que os dois recorrentes não conseguiam provar a propriedade deles das acções em causa e julgando improcedente os pedidos deles.
Se assim não se entender, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, os dois recorrentes continuam a alegar como seguinte:
b) Violação do princípio do contraditório
9. Dispõe o art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” (negrito e sublinha nossa)
10. Embora o Mm.º Juiz não entende que o facto de que os dois recorrentes eram portadores das acções ao portador pode provar a propriedade deles das acções, dispõe o art.º 386.º do Código Civil: “A prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada.”
11. Como se referem em cima, a transmissão da propriedade das acções ao portador pode ser efectivada por simples entrega. Por isso, embora os dois recorrentes não apresentaram com a petição inicial prova documental para verificar que eles têm a propriedade das acções, a este facto é admissível a prova por testemunhas.
12. No entanto, o tribunal a quo, sem ter ouvido o depoimento da testemunha eventual, concluiu que os dois recorrentes não conseguiam provar a propriedade deles das acções e, por isso, julgou no despacho saneador improcedentes os pedidos apresentados pelos dois recorrentes.
13. Dispõe o art.º 147.º, n.º 1 do CPC: “A prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
14. De facto, o tribunal a quo, sem ter concedido aos dois recorrentes a oportunidade de requerer diligências de prova (designadamente para provar que eles tinham a propriedade das acções), fez a decisão em cima, o que parece viola o princípio importante no processo civil – princípio do contraditório e, por consequência, afecta a decisão da causa. Por isso, a sentença padece do vício da nulidade.
Pelo exposto, pede o Mm.º Juiz conceder provimento ao recurso e:
1) Anular, com base no erro notório na apreciação das provas, a sentença proferida pelo tribunal a quo em 2018.4.30; ou
2) Declarar, com base na violação dos art.º 3.º, n.º 3 e art.º 147.º, n.º 1 do CPC, nula a sentença proferida pelo tribunal a quo em 2018.4.30.
Pede justiça!”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
O saneador/sentença deu por provada a seguinte factualidade:
“1. Os 1º e 2ª autores compraram em 1991 no Hotel G (G酒店) na Cidade Zhuhai da China 500,000 acções da Sociedade de D有限公司, com RMB 2.00 por acção.
2. Posteriormente, os 1º e 2ª autores compraram 40,000 acções da Sociedade de E有限公司 com RMB 2.00 por acção, bem como 31,000 acções da F, com RMB 2.00 por acção.
3. Os 1º e 2ª autores entregaram em 1993.5.12 à ré para depósito as acções referidas nos artigos 1 e 2 e permitiram a ré a receber os dividendos para vida, bem como indicaram que a ré tinha que restituir as acções quando tinha melhoramento da capacidade económica no futuro.
4. Posteriormente, a capacidade económica da ré foi melhorada. Por isso, os 1º e 2ª autores começou no ano 2000 a interpelar a ré para restituir as acções depositadas.
5. Até agora, a ré não restituiu aos dois autores as acções referidas nos artigos 1 e 2 dos factos provados.”
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III – O Direito
1. Introdução
As conclusões do recurso acima transcritas pecam por não reflectirem convenientemente as questões do recurso interposto. Ainda assim, tomaremos conhecimento delas em articulação com o teor da respectiva alegação.
Na alegação, o que os AA criticam é (a) o “erro notório na apreciação das provas” e (b) a “violação do princípio do contraditório”. Contudo, também esta classificação não parece corresponder ao verdadeiro sentido da impugnação. Razão pela qual, tomaremos conhecimento das questões equacionadas segundo o objectivo real a que o recurso tende.
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2. Do objecto do recurso
Sem embargo de nos parecer que o presente processo esconde uma verdade que nenhuma das partes quis revelar, não deixaremos de conhecer o recurso tal como ele foi interposto.
Se, como vimos, eram três os pedidos formulados pelos AA, apenas foi decidido o 1º-b), visto que, quanto aos restantes, a decisão foi de absolvição da ré da instância.
A decisão sobre o pedido 1-b) foi de improcedência do pedido, por o tribunal “a quo” ter considerado que os AA não demonstraram o trato sucessivo sobre estas acções que lhes permitisse a sua reivindicação à ré. Ou seja, para o saneador-sentença a acção de reivindicação a que correspondia o pedido 1-b) não reunia os indispensáveis elementos previstos no art. 1235º do Código Civil. Deveriam os autores ter esclarecido, pelo menos, a quem tinham adquirido as acções, a fim de se comprovar a sua titularidade e propriedade para que depois pudessem exigir a sua entrega pela via da presenta acção.
Vejamos.
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2.1 - Do alegado erro notório na apreciação das provas
Quanto a esta questão, o que os recorrentes acham é que, sendo as acções todas de empresas do interior da RPC, deveria, nos termos do art. 41º do CCM, ser aplicado o direito continental, nomeadamente o art. 140º da Lei das Sociedades Comerciais da RPC, segundo o qual “A transmissão das acções ao portador produz efeito logo que o sócio entregue estas ao transmissário”.
Quer dizer, para os recorrentes, por serem acções ao portador, a sua propriedade resulta da mera transmissão e entrega delas (coisa). Por isso, o simples facto de serem delas portadores e as terem entregado para depósito à ré/recorrida já revela que eram seus proprietários, ao contrário do que ajuizou a 1ª instância.
Ora bem. Antes de mais nada, esta alegação não parece caracterizar erro na apreciação das provas. O tribunal apreciou mal a prova obtida? Em sentido? Não cremos.
O que pode admitir-se é que o tribunal “a quo” tenha aplicado mal o art. 1235º do CC, caso em que do que se poderá falar, nessa hipótese, é de “erro de julgamento de direito”. É isso o que já veremos na perspectiva que nos parece a adequada.
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2.1.1 - A acção societária (no caso ao portador) representa uma participação em sociedade através de um título próprio. Diz-se até que as acções são valores mobiliários, emitidos por sociedades anónimas, representativos da participação social ou “socialidade” do accionista (Maria João Mimoso e Ricardo Alexandre Cardoso Rodrigues, em Reconfiguração do consensualismo contratual: as acções tituladas nominativas e os limites à transmissão, pág. 49 1). Apesar de resultar da acção um direito em benefício do seu titular, certo é que a acção/título não deixa de ser uma “res”. Cabe, por isso, no âmbito da “coisa”, cuja entrega judicial é requerida ao tribunal, nos termos do art. 1235º do Código Civil.
Pode, por isso, a seu propósito instaurar-se uma acção real, como é a acção de reivindicação.
No entanto, e como é jurisprudência assente, a reivindicação implica que da coisa (reivindicada) seja o reivindicante o legítimo proprietário.
E como se sabe, a propriedade pode estar na sua titularidade de alguém por meio de aquisição originária (usucapião) ou derivada ou sucessiva (translação). Ora, para efeito do art. 1235º deve o autor provar as sucessivas aquisições anteriores à sua até ao momento em que se exiba a aquisição originária (a usucapião: arts. 1218 e sgs. para os imóveis; 1223º a 1225º, para os móveis), salvo se a seu favor existir alguma presunção legal de propriedade, como a resultante da posse ou a do registo (entre tantos, no direito comparado, o Ac. do STJ, de 16/06/1983, in BMJ nº 328, pág.546).
Pois bem. Lendo e relendo o despacho saneador/sentença, fica-se com a sensação de que nele se exigia ao autor a invocação da aquisição originária da propriedade das acções. Não foi bem isto o que o despacho saneador afirmou, mas o que disse, e como o disse, reconduz-se genericamente a esta fundamentação. Segundo a decisão recorrida, os AA deveriam ter dito a quem adquiriram as acções, para se apurar se eles tinham a propriedade delas.
Ora, nós estamos a tratar de acções ao portador. E a principal característica das acções ao portador é a ausência de identificação no respectivo título da pessoa beneficiária ou titular; elas nascem e circulam sem o nome do titular (Guilherme Antunes e Juliana Torres, em Da Acção de Anulação e Substituição de Títulos ao Portador - Comentários aos arts. 907 a 913 do Código de Processo Civil 2).
Então, seria exigível ao autor indicar o nome de quem lhas vendeu?
Como se sabe, a entrega, i.é., a tradição da acção ao portador, é pressuposto formal, e também material, da transmissão ao adquirente, e não apenas do exercício dos direitos nela titulados (no direito comparado, Ac. da RP, de 16/06/2005, Proc. nº 0532116). Só no momento da entrega das acções ao portador é que o adquirente passa a ser o seu proprietário (no direito comparado, Ac. da RP, de 18/01/2011, Proc. nº 2703/08).O mero acordo entre transmitente e transmissário produz efeitos entre as partes – mas não produz, por si só, a transmissão das acções”, porque não é um contrato real quod effectum; é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente (no direito comparado, Ac. do STJ, de 15/05/2008, Proc. nº 08B153).
Assim é, também, no caso de transmissão de títulos ao portador, que exige a entrega deles como condição para a aquisição da propriedade, salvo se eles já eram detidos pelo adquirente, caso em que a entrega é dispensada (arts. 424º, nº3 e 1093º, nº1 e 2, do Código Comercial de Macau). Portanto, a transmissão da propriedade das acções faz-se através da transmissão dos respectivos títulos (Ac. do TSI, de 22/05/2014, Proc. nº 677/2013).
É certo que desde 2015 (desde a publicação da Lei nº 4/2015) não há acções ao portador em Macau. Mas, e tal como resulta do art. 2º desta Lei, tanto a emissão de títulos ao portador (nº 1), como a transmissão deles (nº2), apenas se aplica às acções de empresas de Macau.
A verdade é que, mesmo quando existiam, a sua transmissão implicava apenas a entrega, e os direitos a ele inerentes derivavam apenas da sua posse (art. 424º, nº3, do Código Comercial)3.
No caso presente ainda acresce que se trata de empresas chinesas, e que as acções em causa foram adquiridas pelos AA em 1991 na cidade de Zhuhai. Ora, segundo o art. 140º da Lei das Sociedades Comerciais da RPC de 29/12/1993, de acordo com o texto da última revisão (4ª revisão) datada de 26/10/2018, “A transmissão das acções ao portador produz efeito logo que o sócio as entregue ao adquirente”. O que significa que, tendo em atenção o preceituado no art. 40º e 41º do Código Civil, se aplicaria o regime dessas acções vigente no local onde o negócio jurídico se ache mais estreitamente conexo (todas as partes são chinesas, as acções são de empresas da RPC e a aquisição delas pelos AA ocorreu em Zhuhai).
Dito isto, tudo inculcaria que não seria pelo facto de os AA não terem indicado a identidade dos anteriores alienantes - dada a especial natureza das acções ao portador e à peculiaridade da sua transmissão e aquisição de propriedade - que a acção iria improceder. Quer dizer, o art. 1235º, perante títulos ao portador, não exige a prova da propriedade originária.
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2.1.2 - Mas, será que então a acção deve prosseguir com a causa de pedir reivindicativa tal como os AA a formularam na réplica?
Não esqueçamos que na réplica os recorrentes alteraram a causa de pedir do pedido 1-b), de forma a que a restituição das acções radicasse numa acção de reivindicação.
À pergunta formulada, a resposta é não. A decisão da 1ª instância deve manter-se, não especialmente pelo fundamento invocado, mas por outros.
Em primeiro lugar, a usucapião deve ser expressamente invocada através da alegação dos respectivos factos (causa de pedir) que levem à aquisição originária da propriedade, que são os factos integradores dos caracteres da posse (cfr. art. 1213º, do CC). Contudo, os AA na réplica apenas se limitaram a invocar o art. 1235º do CC, mas não aproveitaram o despacho de fls. 159 (que os convidou a apresentar aperfeiçoamento da petição de forma a serem apresentados factos tendentes à demonstração da propriedade das acções) para o fazerem (cfr. fls. 166-167 e fls. 5 e 6 do apenso traduções).
Por outro lado, e mesmo dando de barato que este caso particular de acções ao portador, pela sua peculiar natureza, como acima referido, dificilmente permite o encadeamento de factos tendentes à demonstração da usucapião, ao menos podiam os autores invocar a usucapião com assento na presunção derivada do registo (caso o houvesse) 4 ou da posse, nos termos do art. 1193º, do CC. Mas, nem uma coisa, nem outra invocaram. E estes eram elementos necessários à demonstração da aquisição do direito da propriedade para efeito do uso da acção de reivindicação.
Portanto, não bastava aos AA dizer que compraram as acções em Zuhai em 1991.
Desta maneira, a acção de reivindicação estava votada ao fracasso, tal como foi, aliás, decidido no despacho saneador impugnado.
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2.2 - Vale a pena assinalar ainda um outro aspecto.
A conclusão anterior só foi possível alcançar porque os AA alteraram a causa de pedir, que na petição dava corpo a um incumprimento do contrato de depósito. Na verdade, tal como eles desenharam a causa de pedir inicial, a acção estaria em condições de prosseguir e, em caso de triunfo, a restituição das acções ao portador não deixaria de ser determinada, a não ser que alguma excepção, nomeadamente a prescrição concretamente invocada, a tal impedisse (cfr. arts. 297º, nº1, do CPC). Há mesmo quem defenda que se o autor pede a entrega de uma coisa, não por ser proprietário, mas por efeito de um negócio que obriga o possuidor ou detentor a entregá-la, como é o caso do depósito, não há lugar a acção de reivindicação, onde o domínio se não vai discutir, mas a acção de incumprimento de obrigação, de forma a se obter a entrega da coisa do detentor (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., pág. 113).
Quiçá a modificação da causa de pedir se devesse a essa invocação exceptiva e à possibilidade que os AA avistaram na imprescritibilidade da acção de reivindicação, tal como está previsto no art. 1237º, do CC. Mas ao seguirem essa via, deveriam ter o cuidado de invocar todos os elementos conducentes à demonstração da aquisição originária, ou à invocação da aquisição em resultado da presunção derivada do registo ou da posse nos moldes acima enunciados.
Não o tendo feito, a acção, por falta de elementos, teria que improceder, tal como foi decidido.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos autores.
T.S.I., 30 de Maio de 2019
José Candido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=5&ved=2ahUKEwiZjLaW8ZzhAhXG62EKHQZDCx4QFjAEegQIBBAC&url=http%3A%2F%2Fwww.cmvm.pt%2Fpt%2FEstatisticasEstudosEPublicacoes%2FCadernosDoMercadoDeValoresMobiliarios%2FDocuments%2FCaderno48Artigo2c.pdf&usg=AOvVaw20QyEKqMXYHYTmQRAVb2sy
2 https://www.paginasdedireito.com.br/index.php/artigos/71-artigos-nov-2007/6108-da-acao-de-anulacao-e-substituicao-de-titulos-ao-portador-comentarios-aos-arts-907-a-913-do-codigo-de-processo-civil
3 O nº3 foi revogado pela Lei nº 4/2015 referida no texto.
4 Quando há registo, presume-se (presunção ilidível) que o direito invocado existe na esfera do titular inscrito (art. 7º do CRP).
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