Proc. nº 904/2018
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 04 de Julho de 2019
Descritores:
- Recurso interlocutório
- Julgamento de recursos que sobem conjuntamente
- Desvio de poder
- Prova em tribunal
- Art. 628º do CPC
SUMÁRIO:
I - Tendo sido interpostos pelo mesmo recorrente contencioso dois recursos jurisdicionais, um interlocutório, outro da sentença, não será de aplicar ao caso o disposto no art. 628º, nº2, do CPC.
II - Nessa situação, deverá começar-se o recurso interlocutório (nº1, do art. 628º), o qual, no entanto, só será provido se a infracção cometida tiver influência no exame e decisão da causa, ou quando independentemente da decisão, o provimento tiver interesse para o recorrente.
III - Encontra-se na previsão do ponto anterior o despacho judicial que não defere o requerimento para inquirição de testemunhas sobre a matéria alegada na petição inicial que se mostre relevante e decisiva à prova do vício de desvio de poder.
IV - O provimento desse recurso interlocutório, implica a inutilização do processado posterior, incluindo a sentença já produzida, cuja sindicância fica assim inviabilizada.
V - Quem alega o vício de desvio de poder em tribunal tem que o provar.
VI - O vício de desvio de poder só pode ser invocado e provado após a prática do acto, nunca antes, e só então é possível afirmar, e comprovar, que o órgão administrativo tomou a decisão com um fim principalmente determinante (fins privados ou outro fim público) que não coincide com o fim previsto na norma legal que àquele concedeu os respectivos poderes discricionários.
VII - Não pode ser suscitado no âmbito do procedimento ainda antes de ser praticado o acto administrativo
Proc. nº 904/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância do Porto
I – RELATÓRIO
A, do sexo feminino, casada, nacionalidade chinesa, portadora do BIRPM n.ºXXXXXX; ----
B; do sexo masculino, casado, nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.ºXXXXXX; e ----
C, do sexo masculino, solteiro, maior, nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.ºXXXXXX; ----
Todos residentes de Macau, na XXXXXX ----
Recorreram contenciosamente para o Tribunal Administrativo (Proc. nº 2032/17-ADM) ----
Do despacho do PRESIDENTE DO INSTITUTO DE HABITAÇÃO, de 16/02/2017, exarado na Proposta n.º0538/DHP/DHEA/2017, que determinou rescindir o contrato-promessa de compra e venda de uma fracção adquirida em regime de habitação económica.
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A fls. 57 dos autos, o juiz titular do processo indeferiu a produção de prova testemunhal e documental requerida na petição inicial do recurso.
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Contra esse despacho apresentaram os recorrentes recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam a seguinte e única conclusão:
“O despacho recorrido violou o art.º 65.º, n.º3 do Código do Processo Administrativo Contencioso, pelo que deve ser admitida a medida de prova.”
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Não houve resposta ao recurso.
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Foi oportunamente proferida sentença, que julgou improcedente o recurso contencioso.
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Contra a sentença, os recorrentes interpuseram recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“1. A sentença recorrida incorreu em vício de erro sobre os pressupostos de facto e aplicação da lei, por ter julgado não procedente a impugnação da falta de fundamentação.
2. O acto administrativo recorrido violou os princípios da imparcialidade e eficiência, bem como o art.º 34.º da Lei da Habitação Económica.
3. Mas a entidade recorrida, na execução, agindo de forma ociosa, tomou como critério a situação patrimonial de três anos e tal após a celebração do contrato-promessa, e mais determinou resolver o contrato nos termos do art.º 34.º, n.º4 da Lei da Habitação Económica, tendo em consideração a situação patrimonial dos recorrentes depois de Junho de 2016.
4. Nos termos do art.º 34.º da Lei da Habitação Económica, conjugado com o Código do Procedimento Administrativo, a resolução do contrato baseada em detenção da fracção autónoma com finalidade habitacional em Agosto de 2016 por parte dos recorrentes pertence à interpretação e aplicação errada da lei
5. Deve a entidade recorrida confirmar se os recorrentes reúnem ou não os requisitos previstos no art.º 34.º, n.º4 da Lei da Habitação Económica consoante o prazo em que se deve emitir o termo de autorização.
6. Face à violação da lei orgânica do Regulamento Administrativo n.º 17/2013 que tem natureza processual, também deve-se considerar como violação do processo administrativo, devendo o acto ser anulado.
7. Os recorrentes, tanto na motivação e na conclusão do recurso, como nas alegações jurídicas, indicaram que o acto recorrido incorreu em vício do desvio de poder. Contudo na sentença se o respectivo vício não foi apreciado, que pode constituir omissão na apreciação.
8. Os recorrentes apresentaram medida de prova para saber se existe o vício do desvio de poder, mas a qual não foi admitida pelo Tribunal, mas os recorrentes, por sua vez, insistem em interpor recurso contra isso, a fim de apurar a finalidade de atraso da entidade recorrida.
PEDIDO
Pede-se aos meritíssimos juízes que, nos termos da lei, julguem procedente a motivação dos recorrentes, anulando o despacho recorrido.”
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Não houve resposta ao recurso.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“Nos presentes autos, provenientes do Tribunal Administrativo e que dão corpo ao recurso contencioso de anulação em que é visado o acto administrativo de 16 de Fevereiro de 2017, da autoria do Presidente do Instituto da Habitação, vêm interpostos dois recursos: um do despacho de 4 de Setembro de 2017, exarado a fls. 57 e verso, através do qual foi indeferido requerimento de produção de prova; outro da sentença de 31 de Maio de 2018, inserta a fls. 76 e seguintes, que julgou improcedentes os fundamentos do recurso contencioso.
Dado que a eventual procedência do primeiro recurso obrigará a retrotrair o processo a uma fase anterior à da sentença, será conveniente apreciá-lo em primeiro lugar, aliás de acordo com a regra do artigo 628.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que, no caso, não resulta afastada pelas regras dos números 2 e 3 do mesmo artigo.
Vejamos.
Na sua petição de recurso contencioso, os recorrentes assacaram ao acto recorrido, entre outros, o vício de desvio do poder, que caracterizaram imputando à Administração o atraso deliberado na emissão do termo de autorização previsto na Lei 10/2011, para assim possibilitar mais situações de resolução de contratos-promessa por alteração superveniente dos requisitos, nos termos do artigo 34.º, n.º 4, daquela Lei 10/2011, e dessa forma alargar o leque de distribuição de habitações económicas pelos candidatos.
E para demonstração de factos atinentes a tal vício requereram a produção das provas indicadas no final da sua petição de recurso, que ofereceram aos artigos 14.º, 21.º e 30.º da petição de recurso, e cujo indeferimento está na base do primeiro recurso.
Pois bem, dos artigos a que foi indicada a prova, crê-se que só os dois primeiros contêm factos e que, destes, apenas a matéria do artigo 21.º carece de produção de prova, prova testemunhal, pois a do artigo 14.º evidencia-se através da consulta do processo instrutor.
Ora, a prova da matéria do referido artigo 21.º afigura-se indispensável à demonstração do alegado desvio do poder, nessa medida se apresentando relevante para a decisão da causa. E sendo assim, como cremos, os recorrentes foram privados da produção de prova necessária à demonstração daquele vício, com o que saiu violado o seu direito à prova.
Procedem, assim, os fundamentos do primeiro recurso, no tocante à matéria do referido artigo 21.º, pelo que, no seu provimento, deve revogar-se o despacho em crise e mandar-se proceder à inquirição das testemunhas arroladas, com a sequente inutilização dos actos posteriores, incluindo a sentença, cujo recurso fica, por isso, prejudicado.”
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Cumpre decidir.
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II – OS FACTOS
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“1 - No dia 9 de Agosto de 1982, os 1º e 2.º recorrentes contraíram matrimónio em Macau sem fixar o regime de bens do casamento.
2 - No dia 10 de Junho de 2005, a 1.ª recorrente apresentou ao Instituto de Habitação a inscrição para concurso n.º XXXXXX do contrato de desenvolvimento para a habitação, incluindo os membros do agregado familiar os 1.ª e 2.º recorrentes e seu filho ora 3.º recorrente, tendo posteriormente a inscrição sido admitida na lista de espera dos candidatos (vd. fs.7 a 8 e 8v dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
3 - No dia 17 de Dezembro de 2012, o Instituto de Habitação celebrou com os recorrentes o contrato-promessa de compra e venda da fracção da habitação económica sita na XXXXXX (vd. fls. 127 a 129 dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4 - No dia 2 de Agosto de 2016, o 2.º recorrente, através de partilha por sucessão, adquiriu a fracção autónoma com finalidade habitacional sita em Macau, na XXXXXX (registo predial n.ºXXXXX) (vd. fls. 78 a 79 dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
5 - No dia 17 de Janeiro de 2017, a entidade recorrida proferiu despacho, concordando com a realização de audiência com o agregado familiar dos recorrentes, nos termos do teor da proposta n.º 0188/DHP/DHEA/2017 e, no 23 de Janeiro do mesmo ano, notificou os recorrentes através do ofício n.º 1701130074/DHEA para apresentar justificação escrita no prazo de 10 dias contados a partir da data de recepção da notificação (vd. fls. 81 a 82 e 98 a 100 dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
6 - No dia 6 de Fevereiro de 2017, através do mandatário judicial, o 2.º recorrente apresentou ao Instituto de Habitação a alegação escrita (vd. fls. 105 a 108 dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
7 - No dia 16 de Fevereiro de 2017, a entidade recorrida proferiu despacho concordando com o teor da proposta n.º 0538/DHP/DHEA/2017, indicando que a 1.ª recorrente e o membro do agregado familiar ora 2.º recorrente são efectivamente proprietários da fracção autónoma da RAEM com finalidade habitacional, e nos termos do art.º 34.º, n.º4 da Lei n.º 10/2011 (Lei da Habitação Económica) alterada pela Lei n.º 11/2015, determinou rescindir o contrato-promessa de compra e venda da fracção da habitação económica em causa celebrado no dia 17 de Dezembro de 2012 entre o Instituto e os recorrentes (vd. fls. 101 a 104 dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
8 - No dia 21 de Fevereiro de 2017, a entidade recorrida mandou o ofício n.º 1702130040/DHEA notificando os recorrentes da supracitada decisão (vd. fls. 22 e 22v dos autos e fls. 119 dos autos administrativos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
9 - No dia 27 de Março de 2017, contra a supracitada decisão, o mandatário judicial dos recorrentes interpôs o presente recurso contencioso.”
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III – O DIREITO
Nota prévia
Foram interpostos dois recursos jurisdicionais, um interlocutório, contra o despacho de fls. 57 que negou a realização de diligências requeridas pelo recorrente, e outro final, de impugnação da sentença.
Ambos foram movidos pelos mesmos recorrentes. Significa isto que à situação não é de aplicar o disposto no art. 628º, nº2, do CPC.
Assim sendo, e uma vez que o caso pode cair sob a alçada de previsão do nº3, do mesmo preceito, importará previamente indagar até que ponto o provimento do recurso interlocutório pode influir no exame e decisão da causa ou ter interesse para o recorrente.
E, efectivamente, é relevante e pode ter interesse para o recorrente.
Na verdade, o recorrente indicou duas testemunhas com vista a provar os factos incluídos nos arts. 14º e 21º da petição inicial.
Ora, relativamente ao art. 14º a prova testemunhal não se justifica, visto que o que nele é referido obtém-se directamente da análise do processo administrativo apensado ao processo. Isto é, saber se o IH não praticou qualquer acto desde 21/06/2013 é algo que o tribunal pode facilmente constatar dos documentos constantes do procedimento.
Mas, em relação ao art. 21º, já o mesmo se não pode dizer.
É que o recorrente afirmou na petição (cfr. arts. 20º e 21º do articulado; conclusões G) e H)), e mais tarde confirmou na alegação facultativa (conclusão W), que a entidade recorrida tinha intenção de atrasar a emissão do “termo de autorização”, para, desse modo, dispor de pretexto para, mais tarde, rescindir o contrato consigo com fundamento em perda superveniente dos requisitos do art. 14º, nº3, necessários à aquisição, em virtude sucessão ou casamento. E isto foi novamente levado às conclusões desse articulado, com vista a densificar o vício de desvio de poder (loc. cit.).
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Coloca-se agora, porém, uma questão pertinente.
Poderá o recorrente fazer uso no recurso contencioso de uma prova de factos que podia ter invocado no procedimento administrativo? A pertinência desta questão está na circunstância de o TUI e o TSI terem já afirmado por mais do que uma vez que não pode o recorrente fazer prova de factos, salvo os que forem supervenientes, que pudesse alegar e provar no procedimento (em particular nos procedimentos disciplinares, ver Ac. do TUI, de 2/06/2004, Proc. nº 17/2003 e de 31/07/2013, Proc. nº 39/2013; e do TSI, de 25/10/2012, Proc. nº 23/2012).
Contudo, tais afirmações jurisprudenciais sempre foram feitas a propósito da demonstração do vício do erro sobre os pressupostos de facto. Isto é, aquela jurisprudência sempre teve como consideração relevante a proibição do tribunal ser utilizado como uma nova instância de prova sempre que o administrado tenha podido provar no procedimento factos diferentes daqueles que vieram a ser utilizados como pressupostos do acto concreto praticado. Se a Administração leva ao conhecimento do administrado no procedimento o projecto da sua decisão, a este cabe em audiência de interessados insurgir-se contra essa projectada decisão alegando factos que pretende ver provados e requerendo a sua comprovação através de documentos ou de testemunhas. Sendo-lhe negada essa prova, claro que o tribunal, com vista à demonstração do vício de erro sobre os pressupostos de facto, terá de inquirir as testemunhas que a Administração não quis ouvir. Isto é compreensível.
Mas, é diferente a situação quando o recorrente contencioso não pretende a produção de prova para a demonstração do vício do erro sobre os pressupostos de facto, mas sim para a demonstração do vício de desvio de poder.
Neste caso, tudo é diferente. Na verdade, e como também facilmente se percebe, o particular não irá no próprio procedimento servir-se dele para, antes do acto administrativo, dizer que a Administração incorre em desvio de poder e alegando os respectivos factos. Isso não faria sentido nenhum por duas razões:
Em primeiro lugar, não seria curial, sensato e ético, já que no decurso do procedimento administrativo se espera, e impõe, lisura e boa fé de ambas as partes.
Ao acusar a Administração no próprio procedimento de que ela não estaria a cumprir o interesse público que a lei lhe concedeu, imputando-lhe factos demonstrativos do desvio de poder, estaria a ser eventualmente intempestivo e até contraproducente para os seus interesses.
Em segundo lugar, o vício de desvio de poder e respectivos factos integradores só se pode invocar depois de praticado o acto, nunca antes. É um vício de resultado, no sentido de que só se pode invocar dizendo que o acto foi praticado para proteger interesses ou interesses privados ou interesses públicos diversos dos que estão subjacentes na norma.
Jamais faria sentido acusar a Administração de desvio de poder e fazer prova dos respectivos factos antes do acto ser praticado. Primeiro tem que se esperar pelo acto (que goza até do princípio da presunção de legalidade), como se sabe; só depois, conforme o seu teor, é que pode ser atacado de desvio de poder. E quem o alegar tem o ónus de o demonstrar ou, por outras palavras, cabe ao recorrente o ónus de alegar e provar os factos integradores do vício, designadamente da finalidade diversa que o autor do acto visou prosseguir (em direito comparado, ver Acs. do STA, de 27/01/1961, Proc. nº 005932; 2/05/1991, Proc. nº 016853; 27/02/1997, Proc. nº 031346).
Ou seja, o recorrente tem o ónus de revelar uma actuação da Administração motivada por interesses diferentes dos interesses públicos em atenção aos quais a lei concedeu ao órgão o respectivo poder discricionário. E mais: tem que conseguir provar que esses interesses foram determinantes, que pesaram definitivamente na decisão. Enfim, tem o particular que esperar pelo acto para só então poder dizer que o seu autor se motivou por fins determinantes com os fins diferentes dos de interesse público subjacentes na norma ao conceder ao órgão aqueles poderes discricionários.
Em suma, os factos concernentes ao desvio de poder só podem ser invocados e provados após o acto. Não é possível invocar factos e prova-los a propósito deste vício antes de a Administração tomar a correspondente decisão.
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Ora, face à invocação desta relevante matéria, cremos que se imporia reconhecer ao recorrente o direito de provar pela via testemunhal a alegação factual acerca do vício em apreço, sendo certo que, uma vez provada, o vício logrará êxito, com a consequente anulação do acto sindicado.
Significa, pois, que o eventual provimento deste recurso tem todo o interesse para o recorrente. Razão pela qual dele conheceremos já de seguida.
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1ª Recurso
Está em causa o despacho de fls. 57 dos autos (convertido para português a fls. 84 do apenso “traduções”) que indeferiu o requerimento formulado pelos recorrentes no sentido de o tribunal requisitar ao IH todos os dados necessários à confirmação o que por si foi indicado no art. 30º da p.i. (de que a entidade recorrida atrasou intencionalmente o processo), bem como de efectuar a prova testemunhal indicada na petição.
Despacho que tem o seguinte teor:
“Vêm os recorrentes requerer, junto deste Tribunal, as medidas de prova testemunhal e documental, a fim de apurar se o Instituto de Habitação atrasou a emissão do termo de autorização no decurso de tratamento da escritura pública de compra e venda da fracção económica em causa, de tal modo a causar deliberadamente que os recorrentes não reúnem os requisitos gerais para candidatura à aquisição de habitação económica,
O Código do Processo Contencioso Administrativo dispõe no seu art.º 65.º, n.º 3 que: “O juiz ou o relator devem limitar a produção de prova aos fatos que considerem relevantes para a decisão da causa e sejam susceptíveis de prova pelos meios requeridos.”
Analisados todos os dados constantes dos autos e do apenso, incluindo fls. 93 a 95 do apenso, fls.69, 69v e 70, pode-se provar que, depois de celebrado o contrato-promessa de compra e venda da fracção em causa no dia 17 de Dezembro de 2012, o Instituto de Habitação, no dia 22 de Julho de 2016 enviou ofício à recorrente A para acompanhar a celebração da escritura pública de compra e venda da dita fracção, bem como fez, no 23 de Novembro do mesmo ano, a proposta de instauração do processo de audiência sobre a resolução do contrato-promessa de compra e venda.
Quanto a que se o Instituto chegou a atrasar a emissão de termo de autorização, tendo em consideração a questão jurídica ora impugnada e essencial nos autos respeitante à interpretação do art.º 14.º, n.º4. al. 1) da Lei n.º10/2011 (Lei da Habitação Económica) alterada pela Lei n.º11/2015, mesmo que se deu como provado que o Instituto de Habitação estava com atraso no decurso do tratamento da escritura pública de compra e venda da fracção em causa, isso não é fundamento de facto do acto recorrido, bem como parece ser um ponto de vista subjectivo sobre a resolução do contrato o que os recorrentes consideram que o Instituto de Habitação deliberadamente causou-lhes que não reúnem os requisitos gerais para a candidatura à aquisição da fracção económica.
Com base nisso, nos termos do art.º 65.º, n.º3 do Código do Processo Administrativo Contencioso, este Tribunal determina indeferir as medidas de provas requeridas pelos recorrentes.
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Tendo em consideração que nos autos e no apenso já há dados suficientes para apreciar o mérito da causa, não é necessário realizar as demais recolhas de dados e diligências probatórias, pelo que mando que seja executado o disposto no art.º 68.º do Código do Processo Administrativo Contencioso para que as partes prestem alegações facultativas.”
Pensamos que o tribunal “a quo” tem apenas razão quanto à diligência requerida a ser efectuada junto do IH.
Antes de mais nada, convém recordar que o tribunal não tem vocação investigatória, realizando a prova que só às partes cumpre fazer, sem prejuízo de alguma diligência instrutória que julgue pertinente ao conhecimento da questão e do litígio.
Por outro lado, os recorrentes pretendiam obter elementos no presente recurso contencioso de modo a que ficasse exposto o atraso imputável ao IH na conclusão do procedimento e afastar a sua própria culpa nesse facto.
Ora, esse facto parece, por si só, ou isoladamente, inócuo à decisão administrativa que foi tomada. Quer dizer, em princípio não interessa perguntar ao IH se ele atrasou, se esse atraso foi diferente do habitual, e se foi devido ao atraso que o acto administrativo sindicado foi tomado com aquele sentido resolutório. Na verdade, nós sabemos que o IH demorou a emitir o “termo de autorização” pela directa observação e análise do p.a..
Por outro lado, somos os primeiros a sublinhar que os procedimentos administrativos devem correr e terminar com celeridade, mas também é verdade que nenhum eventual atraso, só por si, pode funcionar contra os efeitos da verdade material, i.é., da realidade dos factos.
É verdade que numa situação normal os candidatos podem reunir no início da candidatura os requisitos necessários para a aquisição de uma fracção económica, e virem a perdê-los supervenientemente a partir do momento em que adquiram, pelos seus próprios meios, uma fracção no mercado imobiliário privado ou a recebam em herança em propriedade total.
Repetimos: numa situação normal, não importaria à economia e eficácia do julgamento do recurso jurisdicional saber se o procedimento administrativo em causa só teve aquele desfecho porque o IH se atrasou. O que poderíamos, em vez disso, dizer é que teve aquele desfecho porque o 2º recorrente a isso deu azo, colocando-se supervenientemente na posição de proprietário, mostrando já não carecer da aquisição da habitação económica.
Mas, esta não é uma situação normal, segundo a perspectiva do recorrente. Para si, este atraso foi intencional, para que o termo do procedimento demorasse mais tempo, de maneira a que algum dos interessados deste agregado viesse a obter pela via sucessória uma casa de habitação, ou, por necessidade de contrair matrimónio, viesse a adquirir pela via contratual uma fracção habitacional.
Ou seja, uma invocação deste tipo foi trazida aos autos na mira de demonstrar uma atitude volitiva, intencional e malévola de não ser atribuída a casa aos recorrentes, desviando-se o IH do interesse público subjacente ao poder derivado da lei de conceder casas de habitação económica às pessoas carenciadas delas.
Ora, porque esta matéria preenche o vício de desvio de poder, os recorrentes só têm hipótese de o demonstrarem, desde que tenham a possibilidade de fazerem ouvir em tribunal a voz da testemunha indicada à matéria de facto contida no art. 21º da p.i.
Ao não ter permitido realizar essa prova o despacho em crise ofendeu, salvo o devido respeito, o direito à prova de um facto que se nos afigura relevante1 ao desfecho do recurso contencioso, atentando contra o que determinam os arts. 63º e 65º, nº3, do CPAC, bem como o art. 335º, nº1, do CC,
Procede, pois, o recurso.
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2ª Recurso
Procedente o primeiro recurso interlocutório, fica inviabilizado o conhecimento do segundo, em virtude de ter que ser inutilizado todo o processado posterior, incluindo a própria sentença.
Na verdade, os autos devem voltar ao TA a fim de que seja permitida aos recorrentes a prova testemunhal ao art. 21º da petição inicial e, a final, ser lavrada uma nova sentença que tenha também por objecto o vício de desvio de poder radicado na matéria que vier a ser demonstrada.
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IV – DECIDINDO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interlocutório, em consequência do que:
1. Se revoga o despacho de fls. 57 dos autos e se inutiliza todo o processado posterior, incluindo a sentença;
2. Se determina a produção de prova testemunhal à matéria do art. 21º da petição inicial, a fim de que, na oportunidade, se conheça novamente de todo o objecto do recurso.
Custas a final.
T.S.I., 04 de Julho de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Mai Man Ieng
1 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, volume V, reimpressão de 1981, p. 463; tb. Ac. da Relação do Porto, de 7 de Março de 1985, in Colectânea de Jurisprudência, 1989, 5.º, pág. 266.
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