Processo n.º 225/2017
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 04/Julho/2019
ASSUNTOS:
- Empréstimos entre jogadores sem juros
- Tutela jurídica civil
SUMÁRIO:
I - No caso dos autos, o Recorrente/Autor não é um concedente autorizado de empréstimos para jogo, por não ter a respectiva licença, mas “emprestou” fichas ao Recorrido para jogo sem cobrar juros! Como o Recorrente não obteve vantagens patrimoniais (ou pelo menos, não há factos comprovativos disso), a sua conduta não é passível de se enquadrar no artigo 13º da Lei nº 8/96/M, de 22 de Julho.
II – Como inexiste nenhuma norma (mormente no âmbito da citada Lei nº 5/2004) que proíbe expressamente os empréstimos entre os jogadores sem juros! Estes empréstimos também não violam nenhuma norma de carácter imperativo do Código Civil, os acordos celebrados nestes termos devem ser enquadrados no contrato de mútuo de carácter civil, previsto no artigo 1070º do CCM.
III - Repare-se, entre o Recorrente e o Recorrido não se realiza qualquer jogo ou aposta, por isso será erróneo defender que entre eles existe a chamada obrigação natural. Verdadeiramente entre eles foi desencadeada uma relação de “empréstimo”, e como tal o mutuário/Recorrido deve restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Assim é que se realiza a justiça material.
IV - Pelo que, como ficou demonstrado o incumprimento culposo do acordo pelo Recorrido, por força do princípio pacta sunt servanda, previsto no artigo 400º do CCM, o Recorrido devia cumprir rigorosamente o acordado, não o tendo feito, tem de assumir todas as consequências jurídicas, sendo ele condenado a restituir ao Recorrente as quantias mutuadas.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 225/20171
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 04 de Julho de 2019
Recorrente : A (Autor)
Recorrido : B (Réu)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A (Autor), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 31/10/2016, que julgou improcedente a acção, veio, em 09/01/2017, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 79 a 109, tendo formulado as seguintes conclusões :
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo douto Tribunal a quo no âmbito dos autos à margem referenciados e através da qual foi decidido julgar-se a acção improcedente e em consequência absolver-se o Réu dos pedidos.
II. O presente recurso incide somente na solução de direito plasmada na sentença assim proferida pelo douto Tribunal a quo, com a qual, salvo devido respeito, não se concorda estando-se em crer que a decisão incorre no erro na aplicação do direito.
III. Entendeu a sentença ora recorrida que entre o ora Recorrente e o Recorrido foram celebrados dois (i) contratos de empréstimo para jogo e que, tais contratos (ii) não são fontes de obrigações civis, tratando-se de mera obrigação natural à semelhança do que se estabelece no nº1 do artº 1171º do C. Civ.
IV. As obrigações reclamadas em sede nos presentes autos pelo ora Recorrente não emergem de contratos de jogo ou da aposta, estes sim gerados de obrigações naturais nos termos do artigo 1171.º do CC, mas sim de um acordo anterior que se traduziu na autorização do Recorrente ao Recorrido para este proceder ao levantamento de fichas das contas de é titular em salas VIP, para posterior utilização das mesmas por parte do Recorrido no jogo ou aposta nas mesas de jogo dessas mesmas salas VIP com a consequente obrigação de o Recorrido devolver directamente às Salas VIP ou ao ora Recorrente o valor correspondente às fichas levantadas - vide factos provados nas alíneas b), c) e d).
V. Ou seja, entre o Recorrente e o Recorrido não foi celebrado qualquer contrato de jogo ou aposta, tendo o contrato de jogo e aposta sido antes celebrado entre o Recorrido e o Casino onde jogou as fichas que levantou nessas mesmas Salas VIP.
VI. A doutrina da especialidade já alertou para possíveis confusões entre as duas figuras, ou seja, contrato de jogo e aposta e contrato de concessão de crédito para jogo enquanto gerados de obrigações meramente naturais, porém, os efeitos jurídicos do crédito para jogo devem ser cuidadosamente distinguidos dos efeitos jurídicos dos contratos de jogo ou aposta subjacentes, gerando aqueles obrigações civis e estes, salvo estipulação em contrário, obrigações naturais.
VII. E nem se diga que do facto de o art. 4.º da Lei 5/2004 estipular que da concessão de crédito exercida ao abrigo dessa mesma lei resultam obrigações civis resulta, a contrário, que da concessão de crédito que não seja exercida ao abrigo de tal lei resultam obrigações meramente naturais, pois que, tal disposição legal apenas foi incluída nesses termos na lei com intuito clarificador e facilitador de cobrança dos créditos decorrentes dos contratos aí regulados, já que estamos perante um contrato de concessão de crédito - gerador de obrigações civis - e não de contratos de jogo e aposta.
VIII. Assim, claro que está que entre o ora Recorrente e o Recorrido não foi celebrado qualquer contrato de jogo ou aposta, afigura-se-nos errónea, salvo devido respeito, a aplicação por parte do douto Tribunal a quo do preceituado no artigo 1171.º do Código Civil de Macau, o que faz a decisão sob recurso incorrer em erro na aplicação do direito.
IX. Antes de mais, e porque a sentença recorrida aventa essa possibilidade, é de afastar no caso dos presentes autos a responsabilidade criminal que ao caso pudesse caber nos termos do artº 13º da Lei nº 8/96/M, isto porque, a entender-se que entre o Recorrente e o Recorrido foram celebrados dois contratos de empréstimo para jogo, apurou-se também que o Recorrente ao autorizar o Recorrido a levantar fichas das suas contas nas salas VIP não o fez com qualquer intuito de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro, um vez que o Recorrido tinha apenas que devolver o valor correspondente das fichas por si levantadas (directamente às Salas VIP ou ao Recorrente), não tendo sido estipulada a obrigação do pagamento de qualquer outra quantia para além de tal valor seja a que título fosse, nomeadamente, juros remuneratórios.
X. Não existe no caso dos presentes autos qualquer usura para jogo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 8/96/M.
XI. Também se não nos afigura que a autorização dada pelo Recorrente ao Recorrido para levantar fichas de jogo das contas de que é titular nas salas VIP devidamente identificadas, com a contrapartida de devolver directamente à Sala VIP ou ao Recorrente o valor correspondente ao valor facial das fichas levantadas, possa ser qualificada como de um contrato de concessão de crédito.
XII. O crédito para jogo foi concedido directamente pelas Salas VIP em questão ao Recorrido, conforme aliás resulta dos documentos de fls. 19 a 22 dos autos de arresto apensos ("markers"), os quais constituem títulos de dívida assinados pelo Recorrido a favor das Salas VIP em questão, e dos quais consta expressamente que apesar do titular das contas ser o ora Recorrente as fichas levantadas/créditos concedidos foram entregues ao Recorrido, constando de tal título de crédito a identificação do Recorrido (nome e documento de identificação) bem assim como a sua assinatura.
XIII. Dos factos provados resulta ainda que o Recorrido se obrigou a devolver o valor das fichas levantadas directamente às Salas VIP ou ao Recorrente, tudo no prazo de devolução para o efeito concedido pelas salas VIP, sendo certo que, naturalmente, se o valor fosse devolvido ao Recorrente, este posteriormente faria a entrega do mesmo às Salas VIP que concederam o crédito ao Recorrido, o que aliás sucedeu mesmo o Recorrido não tendo cumprido com as obrigações por si assumidas.
XIV. Assim, não foi o ora Recorrente a conceder ao Recorrido qualquer empréstimo para jogo, mas sim as Salas VIP melhor identificadas nos autos, pelo que mal andou o douto Tribunal a quo ao qualificar como de contratos de empréstimo para jogo as relações jurídicas estabelecidas entre o ora Recorrente e o Recorrido, incorrendo assim em errou na aplicação ao caso do disposto no artigo 1171.º do Código Civil e no artigo 2.º da Lei 5/2004.
XV. O crédito que se reclama no âmbito dos presentes autos advém do facto de o Recorrente ter pago, por conta do Recorrido, às Salas VIP melhor identificadas nos autos o valor correspondente às fichas levantadas e jogadas pelo próprio Recorrido, sendo a reclamação de tal crédito feita pelo Recorrente ao abrigo do direito de regresso.
XVI. Conforme resulta dos documentos de crédito de fls. 19 a 22 dos autos, o empréstimo que os mesmos titulam foram concedidos pelas Salas VIP directamente ao Recorrido, que foi quem assinou tais títulos, recebeu as fichas de jogo, as jogou e perdeu -vide factos provados nas alíneas e), f), h), e
XVII. Mais ficou provado que o Recorrido se havia comprometido a devolver o montante correspondente às fichas levantadas directamente às Salas VIP ou ao Recorrente, e que, decorrido o prazo para o efeito concedido, não o fez - vide factos provados nas alíneas d), g) e i),
XVIII. Mais se tendo provado que o Recorrente, enquanto titular das referidas contas, foi quem procedeu à devolução de tais montantes às Salas VIP - vide factos provados nas alíneas b), j) e k).
XIX. De tais factos resulta, salvo devido respeito por melhor opinião, que o ora Recorrente e o Recorrido eram solidariamente responsáveis pela dívida resultante dos créditos concedidos pelas Salas VIP e titulados pelos documentos de fls. 19 a 22 dos presentes autos, sendo o ora Recorrente responsável por tal dívida na medida em que é o titular das contas ao abrigo das quais tais créditos foram concedidos, e o Recorrido na medida em que foi o beneficiário directo de tais créditos, tendo-se assim assumido, quer perante o Recorrente, quer perante as próprias Salas VIP ao assinar os respectivos "markers".
XX. Na posse de tais "markers" a concedente dos créditos poderia exigir a restituição dos créditos concedidos quer ao ora Recorrente - na qualidade de titular da conta -, quer ao Recorrido - na qualidade de devedor e subscritor do título de dívida -, e a satisfação de tal crédito por parte de qualquer um deles liberaria o outro.
XXI. Assim, tendo-se provado que o ora Recorrente Na falta de qualquer pagamento por parte do ora Réu, (...) foi obrigado a devolver às referidas salas VIP os valores levantados pelo ora Réu, (vide factos provados nas alíneas j) e k)), forçoso seria reconhecer-se legítimo o direito reclamado pelo ora Recorrente em sede dos presentes autos ao abrigo do invocado direito de regresso e forçoso seria julgar-se a presente acção procedente por provada aplicando-se ao caso o disposto nos artigos 505.º, n.º1 e 517.º, n.º 2 do Código Civil.
XXII. Porém, ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concede, sempre se diga que o ora Recorrente estaria legitimado a reclamar e ver judicialmente reconhecido o seu crédito perante o Recorrido ao abrigo do instituto da sub-rogação previsto no artigo 584.º do Código Civil.
XXIII. Na verdade, os empréstimos para jogo de que o Recorrido beneficiou foram-lhe concedidos pelas Salas VIP directamente e não pelo ora Recorrente, conforme, salvo devido respeito, foi erradamente entendido pelo douto Tribunal a quo – vide a propósito os factos provados das alíneas e), f) e h). E,
XXIV. Resulta dos factos provados nas alíneas d), i), j) e k), o Recorrido assumiu a obrigação de devolver o montante das fichas levantadas directamente à Sala VIP ou ao ora Recorrente, tendo, no entanto, falhado com tal compromisso, donde resultou que foi o ora Recorrente quem teve que devolver às Salas VIP os montantes correspondentes às fichas levantadas e utilizadas pelo Recorrido.
XXV. Ora, ao assumir o compromisso de devolver o valor das fichas levantadas perante as Salas VIP ou perante o ora Recorrente, o Recorrido, expressamente, sub-rogou este último nos direitos do seu credor, ou seja, as Salas VIP. Pelo que,
XXVI. Caso não se entenda que a dívida decorrente do crédito de jogo obtido pelo Recorrido perante as Salas VIP em causa nos presentes autos não se trata de uma obrigação solidária de ambos - Recorrente e Recorrido - sempre estaria o Recorrente, porque cumpriu a obrigação do Recorrido, sub-rogado nos direitos do credor por força do supra citado artigo 584.º do Código Civil.
XXVII. Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se diga que ainda que se entendesse que entre Recorrente e o Recorrido foram celebrados dois contratos de empréstimo para jogo nunca seria de aplicar o disposto no artigo 1171.º do Código Civil, pelas mesmas razões que já foram supra aduzidas e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, pois que a aludida disposição legal se encontra reservada para as obrigações decorrentes de contratos de jogo e aposta e não de contratos de concessão de crédito para jogo - sejam eles lícitos ou ilícitos.
XXVIII. E afastada que está também a aplicabilidade ao presente casa da figura da usura para jogo prevista no artigo 13.º da Lei 8/96/M, temos que, caso se sufrague que entre o Recorrente e o Recorrido foram celebrados dois contratos de empréstimo para jogo, não tendo o Recorrente autorização para tal, tais contratos seriam nulos por violarem o disposto no artigo 3.º da Lei 5/2004 de 14 de Junho.
XXIX. Sendo nulos tais contratos de empréstimo para jogo celebrados entre o Recorrente e o Recorrido, a consequência seria a estipulada no artigo 282.º, n.º 1 do Código Civil, ou seja, deve ser restituído pelas partes tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
XXX. Caso se sufrague o entendimento do douto Tribunal a quo de que o crédito concedido pelo ora Recorrente ao Recorrido o foi sob a forma da transmissão de titularidade de fichas de jogo, e tendo em conta que, tal como resultou provado, o Recorrido apostou e perdeu as referidas fichas, não é possível ao Recorrido restituir ao Recorrente aquilo que, ao abrigo daquele contrato nulo, lhe foi prestado, ou seja, as fichas de jogo. Pelo que,
XXXI. Sempre terá ao Recorrido que restituir ao Recorrente o valor correspondente a tais fichas de jogo o qual corresponde ao valor que a título de capital foi peticionado no âmbito dos presentes autos, ou seja, HKD$700,000.00 (setecentos mil dólares de Hong Kong), a que correspondem MOP$721,000.00 (setecentas e vinte e uma mil patacas).
XXXII. Assim, a entender-se que entre o Recorrente e o Recorrido foram celebrados dois contratos de empréstimo para jogo, sempre deveria o douto Tribunal a quo ter entendido que tais contratos são nulos por força do disposto no artigo 273.º, n.º 1 do C. Civil e condenado o Recorrido, nos termos do preceituado no artigo 282.º do C.C., a devolver ao ora Recorrente o valor correspondente às fichas de jogo mutuadas, ou seja, HKD$700,000.00 (setecentos mil dólares de Hong Kong), a que correspondem MOP$721,000.00 (setecentas e vinte e uma mil patacas).
XXXIII. Face a tudo quanto ficou dito, resulta que a decisão sob recurso padece de errónea aplicação seguintes disposições legais: artigo 1171.º do Código Civil e artigo 2.º da Lei 5/2004, sendo que, ao invés de haver enquadrado a factualidade apurada em tais preceitos, deveria antes, ter reconhecido os direitos reclamados pelo ora Recorrente por força da aplicação do disposto nos artigos 505.º, n.º 1 e 517.º, n.º2, ambos do C.C., ou, caso assim não se entenda, por força da aplicação do disposto no artigo 584.º do C.C, ou, caso assim não se entenda, por força do disposto nos artigos 273.º e 282.º também do C.Civil.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) O ora Autor e o ora Réu são amigos e entre eles existia uma relação de confiança;
b) O ora Autor é titular da conta nº DBXXX na sala VIP C博彩中介有限公司(D貴賓會) e na sala VIP E有限公司(D貴賓會);
c) No dia 10 de Março de 2015, o Autor autorizou o Réu a levantar fichas de jogo das contas com o número DBXXX de que é titular nas referidas salas VIP;
d) Sob condição de o Réu, dentro do prazo estipulado pelas referidas salas VIP, devolver, ou à sala VIP ou ao ora Autor, o valor correspondente às fichas levantas;
e) Na sequência de tal autorização, e estando as referidas salas VIP devidamente notificadas da existência da mesma, o ora Réu, no dia 10 de Março de 2015, pelas 15:40H, levantou HKD500,000.00 em fichas de jogo da conta de que o ora Autor é titular na sala VIP C博彩中介有限公司(D貴賓會) e,
f) Pelas 23:19H, do mesmo dia, o ora Réu levantou HKD200,000.00 em fichas de jogo da conta de que o ora Autor é titular na sala VIP E有限公司(D貴賓會);
g) O prazo para devolução dos valores levantados era de 25 dias, sendo que, caso a devolução não ocorresse nesse prazo, ao valor levantado acresceriam juros de mora calculados à taxa anual de 48%;
h) Após levantar as referidas fichas de jogo, o Réu jogou-as nas correspondentes salas VIP, tendo perdido;
i) O Réu não devolveu o montante das fichas levantadas no prazo estipulado nem às referidas salas VIP nem ao Autor, conforme fora acordado, apesar de instado pelo Autor para o efeito;
j) Na falta de qualquer pagamento por parte do Réu, o Autor foi obrigado a devolver às referidas salas VIP os valores levantados pelo Réu, isto é, dentro dos 25 dias concedidos para o efeito, o ora Autor devolveu HKD500,000.00 (quinhentos mil dólares de Hong Kong), a que correspondem MOP515,000.00 (quinhentas e quinze mil patacas) à sala VIP C博彩中介有限公司(D貴賓會) e,
k) Também no mesmo prazo, o Autor devolveu HKD200,000.00 (duzentos mil dólares de Hong Kong), a que correspondem MOP206,000.00 (duzentas e seis mil patacas) à sala VIP E有限公司(D貴賓會).
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
A, titular do passaporte da RPC nº XXXX, residente em XXXXXX,
vem instaurar a presente acção declarativa sob a forma ordinária contra,
B, portador do Documento de Autorização de Entrada e Saída da RAEHK e da RAEM nº XXXX ou do Passaporte da República Popular da China nº XXXX, com morada em XXXXXX.
Alega o Autor que em 10.03.2015 autorizou o Réu a levantar fichas de jogo das contas que o Autor é titular em salas de jogo, o que aquele fez no valor global de HKD700.000,00, sendo que tais valores tinham de ser pagos em 25 dias o que o Réu não fez tendo o Autor que proceder ao pagamento daquelas quantias às salas de jogo sob pena de ter de pagar juros.
Concluindo pede que:
a) Seja o Réu condenado a pagar ao Autor a quantia de HKD715,893.84 (setecentos e quinze mil oitocentos e noventa e três dólares de Hong Kong e oitenta e quatro cêntimos), a que correspondem MOP737,370.65 (setecentas e trinta e sete mil trezentas e setenta patacas e sessenta e cinco avos), correspondente ao capital em dívida acrescido dos juros moratórios vencidos desde 5 de Abril até 29 de Junho de 2015 e
b) Seja o Réu condenado no pagamento dos juros vincendos que, à taxa legal, se vierem a contabilizar desde 30 de Junho de 2015 até integral e efectivo pagamento.
Citado o Réu editalmente para contestar, este silenciou, tendo sido citado o Ministério Público o qual igualmente silenciou.
Foi proferido despacho saneador e procedeu-se a julgamento mantendo-se a validade da instância.
Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
(…)
Da factualidade apurada resulta que entre o Autor e Réu foram celebrados dois contratos de empréstimo para jogo, uma vez que o Autor autorizou o Réu a levantar fichas para jogar das suas contas numa sala VIP a qual se supõe ser promotora de jogo e estar autorizada nos termos da Lei nº 5/2004 a conceder empréstimos para jogo.
Contudo a concessão de crédito para jogo, definida no artº 2º da Lei nº 5/2004 está regulada nesta Lei apenas estando autorizados a conceder crédito para jogo as pessoas ali indicadas, não constando dos autos que o Autor esteja autorizado para o efeito.
No caso em apreço o que ocorre é que foi o Autor quem transmitiu ao Réu a titularidade de fichas de jogo de fortuna ou azar sem receber de imediato o pagamento dessa transmissão o que, como já se referiu, constitui empréstimo para jogo nos termos do artº 2º da Lei 5/2004.
Nos termos do artº 4º da Lei nº 5/2004 só a concessão de crédito para jogo por quem esteja legalmente habilitado para o efeito constitui fonte de obrigações civis.
Não estando o Autor autorizado a conceder empréstimos para jogo, sem prejuízo da responsabilidade criminal que ao caso pudesse caber nos termos do artº 13º da Lei nº 8/96/M não é esta obrigação fonte de obrigações civis, tratando-se de mera obrigação natural à semelhança do que se estabelece no nº 1 do artº 1171º do C.Civ.
Sendo a obrigação natural nos termos do artº 396º do C.Civ. não é a mesma judicialmente exigível, pelo que, se impõe julgar a acção improcedente.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julga-se a acção improcedente e em consequência absolve-se o Réu dos pedidos.
Custas a cargo do Autor.
Registe e notifique.
Quid Juris?
A questão essencial neste recurso consiste na qualificação jurídica dos 2 acordos firmados entre as Partes.
Para o Recorrente/Autor, tais acordos são subsumíveis na figura de contrato de mútuo, disciplinado pelo artigo 1067º do CCM, enquanto o Recorrido/Réu advoga que tal é regulado pelo artigo 4º da Lei nº 5/2004, de 14 de Junho, que é concessão de fichas para jogo.
No entender do Recorrente/Autor, o Tribunal a quo incorreu no erro na aplicação de Direito. Defende no essencial o seguinte:
- O Recorrente/Autor, ao autorizar o Recorrido a levantar fichas das nas contas nas salas VIP não o fez com qualquer intuito de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro;
- Os artigos 505º e 507º do CCM aplicam-se ao caso em apreciação;
- Aplica-se igualmente o artigo 584º do CCM.
Ora, tal como referimos na parte inicial, a questão essencial é a de saber qual o regime aplicável, o do CCM? Ou o da Lei nº 5/2004, de 14 de Junho?
Não resta o mínimo de dúvida que a Lei nº 5/2004 é um diploma especial, que visa regular exclusivamente os empréstimos de dinheiro conexos com o jogo e para tal carece de regulação, assim se justifica que só a pessoa ou sociedade comercial devidamente licenciadas é que podem conceder este tipo de empréstimos.
Não é sem razão quando o legislador da citada Lei vem “ampliar” o conceito de “dinheiro”(artigo 2º) para efeitos do diploma legal, nele incorporando-se várias figuras: numerários, cheques de viagem, cheques visados, ordens de caixa; vales postais … etc.
E, o artigo 2º/1 (Concessão de crédito) declara expressamente:
1. Apenas existe concessão de crédito quando um concedente de crédito transmita a um terceiro a titularidade de fichas de jogos de fortuna ou azar em casino sem que haja lugar ao pagamento imediato, em dinheiro, dessa transmissão. (…)
Agora, no caso dos autos, o Recorrente/Autor não é um concedente autorizado de empréstimos para jogo, por não ter a respectiva licença, mas “emprestou” fichas ao Recorrido para jogo sem cobrar juros!
É certo que, com isso, o Recorrente não obteve vantagens patrimoniais (ou pelo menos, não há factos comprovativos disso), por isso a sua conduta não é passível de se enquadrar no artigo 13º da Lei nº 8/96/M, de 22 de Julho.
Então pergunta-se, não será de todo em todo reconhecido em termos jurídicos todos os acordos celebrados entre amigos que têm objecto as fichas dos casinos?
Se optarmos por uma posição permissiva, então estaremos criar uma porta para fugir à malha legal que o legislador pretende estabelecer através da Lei nº 5/2004.
Mas, é pertinente perguntar-se:
- Existe alguma norma (mormente no âmbito da citada Lei nº 5/2004) que proíbe expressamente o empréstimo entre os jogadores? Sem que haja juros!
- Este tipo de empréstimos entre jogadores sem juros viola alguma norma do Código Civil que regula os contratos civis?
- É justo, e, em termos de justiça material, que este tipo de mútuo não seja reconhecido juridicamente?
As respostas a dar-se às perguntas indicadas são todas negativas!
Então temos de recorrer às normas do CCM para regular a situação em análise.
O artigo 1070º (Noção) do CCM dispõe:
Mútuo é o contrato pelo qual uma partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
É que, repare-se, entre o Recorrente e o Recorrido não se realiza qualquer jogo ou aposta, por isso será erróneo defender que entre elas existe a chamada obrigação natural. Verdadeiramente entre eles foi desencadeada uma relação de “empréstimo”, e como tal o mutuário/Recorrido deve restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Assim é que se realiza a justiça material.
Por outro lado, por força do princípio pacta sunt servanda, previsto no artigo 400º do CCM, o Recorrido devia cumprir rigorosamente o acordado, porque em matéria cível o princípio de boa fé assim manda.
Pelo que, como ficou demonstrado o incumprimento culposo do acordo pelo Recorrido, este tem de assumir agora todas as consequências jurídicas:
l) O prazo para devolução dos valores levantados era de 25 dias, sendo que, caso a devolução não ocorresse nesse prazo, ao valor levantado acresceriam juros de mora calculados à taxa anual de 48%;
m) Após levantar as referidas fichas de jogo, o Réu jogou-as nas correspondentes salas VIP, tendo perdido;
n) O Réu não devolveu o montante das fichas levantadas no prazo estipulado nem às referidas salas VIP nem ao Autor, conforme fora acordado, apesar de instado pelo Autor para o efeito;
o) Na falta de qualquer pagamento por parte do Réu, o Autor foi obrigado a devolver às referidas salas VIP os valores levantados pelo Réu, isto é, dentro dos 25 dias concedidos para o efeito, o ora Autor devolveu HKD500,000.00 (quinhentos mil dólares de Hong Kong), a que correspondem MOP515,000.00 (quinhentas e quinze mil patacas) à sala VIP C博彩中介有限公司(D貴賓會) e,
p) Também no mesmo prazo, o Autor devolveu HKD200,000.00 (duzentos mil dólares de Hong Kong), a que correspondem MOP206,000.00 (duzentas e seis mil patacas) à sala VIP E有限公司(D貴賓會).
Preenchidos todos os requisitos do incumprimento contratual imputado ao Recorrido, há de atender os pedidos formulados pelo Recorrente nos seguintes termos:
Concluindo, o Autor pede que:
c) Seja o Réu condenado a pagar ao Autor a quantia de HKD715,893.84 (setecentos e quinze mil oitocentos e noventa e três dólares de Hong Kong e oitenta e quatro cêntimos), a que correspondem MOP737,370.65 (setecentas e trinta e sete mil trezentas e setenta patacas e sessenta e cinco avos), correspondente ao capital em dívida acrescido dos juros moratórios vencidos desde 5 de Abril até 29 de Junho de 2015 e
d) Seja o Réu condenado no pagamento dos juros vincendos que, à taxa legal, se vierem a contabilizar desde 30 de Junho de 2015 até integral e efectivo pagamento.
Em face da argumentação por nós produzida, há-de proceder à revogação da sentença recorrida, julgando-se procedentes os pedidos do Recorrente e condenando-se o Réu/Recorrido nos precisos termos solicitados.
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Síntese conclusiva:
I - No caso dos autos, o Recorrente/Autor não é um concedente autorizado de empréstimos para jogo, por não ter a respectiva licença, mas “emprestou” fichas ao Recorrido para jogo sem cobrar juros! Como o Recorrente não obteve vantagens patrimoniais (ou pelo menos, não há factos comprovativos disso), a sua conduta não é passível de se enquadrar no artigo 13º da Lei nº 8/96/M, de 22 de Julho.
II – Como inexiste nenhuma norma (mormente no âmbito da citada Lei nº 5/2004) que proíbe expressamente os empréstimos entre os jogadores sem juros! Estes empréstimos também não violam nenhuma norma de carácter imperativo do Código Civil, os acordos celebrados nestes termos devem ser enquadrados no contrato de mútuo de carácter civil, previsto no artigo 1070º do CCM.
III - Repare-se, entre o Recorrente e o Recorrido não se realiza qualquer jogo ou aposta, por isso será erróneo defender que entre eles existe a chamada obrigação natural. Verdadeiramente entre eles foi desencadeada uma relação de “empréstimo”, e como tal o mutuário/Recorrido deve restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Assim é que se realiza a justiça material.
IV - Pelo que, como ficou demonstrado o incumprimento culposo do acordo pelo Recorrido, por força do princípio pacta sunt servanda, previsto no artigo 400º do CCM, o Recorrido devia cumprir rigorosamente o acordado, não o tendo feito, tem de assumir todas as consequências jurídicas, sendo ele condenado a restituir ao Recorrente as quantias mutuadas.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em coneder provimento ao presente recurso, revogando a sentença recorrida e passando a sentenciar da seguinte forma:
1) – Condenar o Réu a pagar ao Autor a quantia de HKD715,893.84 (setecentos e quinze mil oitocentos e noventa e três dólares de Hong Kong e oitenta e quatro cêntimos), a que correspondem MOP737,370.65 (setecentas e trinta e sete mil trezentas e setenta patacas e sessenta e cinco avos), correspondente ao capital em dívida acrescido dos juros moratórios vencidos desde 5 de Abril até 29 de Junho de 2015.
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2) – Condenar o mesmo no pagamento dos juros vincendos que, à taxa legal, se vierem a contabilizar desde 30 de Junho de 2015 até integral e efectivo pagamento.
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Custas pelo Recorrido /Réu em ambas as instâncias.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 04 de Julho de 2019.
Fong Man Chong
José Maria Dias Azedo
Ho Wai Neng (com declaração de voto vencido)
卷宗編號:225/2017
落敗聲明
在尊重不同意見下,本人認為案中的債項應為自然債而非法律債,理由如下:
根據第5/2004號法律第3條第6款的規定,博彩或投注信貸關係僅可發生於:
一、 作為信貸實體的某一承批公司或獲轉批給人與作為借貸人的某一博彩者或投注者之間;
二、 作為信貸實體的某一博彩中介人與作為借貸人的某一博彩者或投注者之間;或
三、 作為信貸實體的某一承批公司或獲轉批給人與作為借貸人的某一博彩中介人之間。
值得注意的是立法者使用了“僅”這一個字,其立法意圖明顯是不容許其他的博彩或投注信貸關係。
此外,立法者將由非法律容許的信貸實體作出博彩或投注借貸而獲得財產利益的活動定性為刑事犯罪(見第8/96/M號法律第13條)。
對於那些沒有獲得財產利益但並非由法律容許的信貸實體作出的博彩或投注信貸活動,立法者雖然沒有明確將之定性為違法活動,但這並不代表其是合法借貸活動。若是合法活動,為何還要求博彩監察協調局作出監管?
第5/2004號法律第4條規定獲法律容許的信貸實體提供的博彩或投注借貸產生法定債務。申言之,對該法規作反義解釋可得出由非法律容許的信貸實體提供的博彩或投注信貸不產生法定債務。
若然這些信貸活動也產生法定債務,那立法者製定第5/2004號法律便變得毫無意義了。
基於此,本人認為應判處上訴不成立,維持原審判決。
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法官
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何偉寧
2019年07月04日
1 Processo redistribuído em 11/04/2019, conforme a deliberação do CMJ, de 04/04/2019.
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