Processo nº 694/2019 Data: 11.07.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.
SUMÁRIO
1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.
2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.
3. A liberdade condicional não é de conceder quando o percurso até ao momento experienciado pelo condenado não oferece ainda suficiente segurança para sustentar um “juízo positivo” acerca do seu comportamento futuro quando em meio livre, aconselhável sendo um acrescido período de reclusão, por forma a ser possibilitada uma melhor interiorização do desvalor da conduta.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 694/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os restantes sinais dos autos e ora presa no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 210 a 224 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).
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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 230 a 238).
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação (cfr. fls.211 a 224 dos autos), a recorrente solicitou a revogação do douto despacho recorrido e a sua substituição pela decisão de deferir o pedido da liberdade condicional, assacando a violação do art.56º do Código Penal de Macau (CPM).
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações do ilustre Colega na douta Resposta (vide. fls.230 a 238 dos autos).
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No dia de hoje, constitui jurisprudência firme que a concessão da liberdade condicional depende do preenchimento cumulativo de todos os pressupostos, quer formais quer substanciais, consignados no art.56º do CPM, bastando a não verificação de qualquer um para se negar o pedido da liberdade condicional (a título exemplificativo, Acórdão do TSI no Processo n.º195/2003).
Importa recordar que a liberdade condicional não é uma medida de clemência ou de recompensa por mera boa conduta prisional, e serve na política do C.P.M. um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o recluso possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º50/2002)
Daí decorre que se, não obstante um comportamento prisional adequado, pelo passado do recluso e perspectivas de reintegração se não se formula um juízo de prognose favorável a uma regeneração e se teme pelas razões de prevenção geral (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º225/2010). Ainda se inculca que cada situação deve ser observada em concreto e caso a caso, num circunstancialismo de modo, tempo e lugar próprios, analisando de forma crítica a personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo se vai reinserir na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo ainda constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social. (cfr. Acórdãos do TSI nos Processos n.º225/2010 e n.º404/2011)
Envolvendo conceitos indeterminados de prognose, as alíneas a) e b) do n.º1 do art.56º dotam aos julgadores certa margem de livre apreciação na interpretação e na valorização, pelo que a convicção de não verificação dos pressupostos subjectivos só poderia ser neutralizado se houvesse uma exemplar e excelente evolução activa da personalidade do recluso durante a execução da prisão, e não um mero comportamento passivo cumpridor das regras básicas de conduta prisional. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º9/2002)
No caso sub judice, afigura-se-nos prudente a conclusão da MMª Juiz a quo quanto à prevenção especial, no sentido de “從囚犯上述對所犯罪行仍前後不一的反覆取態,本法庭對於囚犯在歷經首次假釋申請被駁回且服刑至今已逾四年九個月之時仍認為自己身陷冤獄的主觀想法,以及囚犯至今日仍企圖以上述令人難以信服的理由來為自己撇清罪過的舉措感到遺憾,且必需指出的是囚犯至今還未確切領會到其在案中判罪之箇中理由,守法意識仍有待加強,即使其在信函中如何表示承認錯誤及感到悔疚,甚至是一再重申女兒在其入獄後患上精神疾病此一令人同情的境況,但在上述種種有欠基本合理的辯解面前,有關悔罪的表示都顯得僅是囚犯為了獲得假釋而作出的片面且公式化的言詞。憑此情況,實未能使法庭相信囚犯在主觀意識上已從被判處的徒刑刑罰中汲取教訓且已真誠悔悟,此外,對於其人格是否已朝正面方向作確切糾治,本法庭仍抱持重大疑問,且就囚犯現階段倘獲假釋後會否再次涉足犯罪方面,本法庭亦沒有足夠信心,故結論是尚需時間對其作進一步觀察。”
Em relação à prevenção geral, entendemos ser deliberado o juízo da MMª Juiz a quo que apontou que “考慮到澳門社會的現實情況,提早放囚犯將引起相當程度的社會負面效果,妨礙公眾對被觸犯法律條文之效力所持有期望,故基於有需要對有關犯罪作一般預防的考慮,本法庭認為,提前釋放囚犯將有礙法律秩序的權威及社會的安寧,因此,不符合澳門《刑法典》第56條第1款b項所規定的給予假釋此一必備實質要件。”
Assim, não obstante se militarem, nos autos, umas circunstâncias favoráveis aa recorrente, mas, na esteia das persuasivas jurisprudências supra citadas, e à luz da regra de experiência de ser difícil abandonar o vício de consumo de droga, aderimos, sem reserva, à cristal preocupação da MMª Juiz a quo, no sentido de aquele ainda não preencher, por ora, os pressupostos consagrados no n.º1 do art.56º do CPM.
Com efeito, como bem observou a MMª Juiz a quo, existe ainda a séria dúvida de que a recorrente tenha já adquirido a estável capacidade de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem ir cometer crime; e prevê-se razoavelmente que a colocação dele em liberdade nesta altura não é compatível com a paz social.
De qualquer modo, importa ter presente que é generalizadamente consabido que em termos comparativos, as sanções penais da ordem jurídica da RAEM são mais benevolentes. Daí que Macau deve tentar todo o esforço para evitar a desastre de ser destino ou “paraíso” de delinquentes.
Nesta linha de perspectiva, não podemos deixar de entender que não tem cabimento o pedido da recorrente, e não merece censura alguma o douto despacho em escrutínio.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 246 a 247-v).
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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):
– por Acórdão do T.J.B. de 18.09.2015, foi, A, ora recorrente, condenada pela prática como autora e em concurso real de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, 1 de “consumo ilícito de estupefacientes” e 1 outro de “detenção indevida de utensilagem”, na pena única de 5 anos e 8 meses de prisão;
– a mesma recorrente, deu entrada no E.P.C. em 14.08.2014, e em 22.05.2018, cumpriu dois terços da referida pena, vindo a expiar totalmente a mesma pena em 12.04.2020;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, irá viver com a sua família, em Macau, tendo proposta de emprego como empregada de escritório numa firma pertencente ao ex-companheiro.
Do direito
3. Insurge-se a ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.
Vejamos.
— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:
“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).
Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).
“In casu”, atenta a pena única que à recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente presa desde 14.08.2014, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.
Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.
Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).
Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.04.2019, Proc. n.° 339/2019, de 09.05.2019, Proc. n.° 404/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 542/2019, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 540/16).
Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.
Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?
Tendo presente o que se deixou consignado, e ponderando nos contornos da situação em questão, cremos que de sentido negativo deve ser a resposta.
De facto, a ora recorrente quando ouvida pela Mma Juiz autora do despacho recorrido, “negou a prática do crime pelo qual foi condenada”, não obstante em julgamento “provado” ter ficado que foi “surpreendida com 39 embalagens (doses) de estupefaciente e outros 29 comprimidos …”; (cfr., fls. 175 a 176 e fls. 4 a 11 do Apenso).
E, perante isto, atenta a natureza do crime de “tráfico de estupefacientes” e dos seus prejuízos para a saúde pública, afigura-se-nos que não terá “interiorizado o mal da sua conduta”, o que não deixa de comprometer o necessário “juízo de prognose favorável” quanto ao seu futuro comportamento em liberdade, sendo, assim, de se confirmar a decisão recorrida, pois que verificado não estando o pressuposto do art. 56°, n.° 1, al. a) do C.P.M., inviável é a procedência do presente recurso.
Como temos considerado, a liberdade condicional não é de conceder quando o percurso até ao momento experienciado pelo condenado não oferece ainda suficiente segurança para sustentar um “juízo positivo” acerca do seu comportamento futuro quando em meio livre, aconselhável sendo um acrescido período de reclusão, por forma a ser possibilitada uma melhor interiorização do desvalor da conduta.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 11 de Julho de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 694/2019 Pág. 12
Proc. 694/2019 Pág. 15