Processo n.º 560/2019 Data do acórdão: 2019-6-27
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 560/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (demandante civil):
B (B)
Recorridos (demandados civis):
C (C)
Companhia de Seguros da XXX (Macau), S.A.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão final proferido pelo Tribunal Colectivo do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base no Processo n.o CR3-18-0123-PCC, absolutório do arguido C (C) da acusada prática, em autoria material, de um crime consumado de ofensa à integridade física por negligência grosseira, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 1, do Código Penal, conjugado com o art.o 93.o, n.os 2 e 3, alínea 5), da Lei do Trânsito Rodoviário, e absolutório do pedido cível enxertado aí contra o mesmo arguido e a Companhia de Seguros da XXX (Macau), S.A., veio o ofendido demandante B (B) recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir, na sua motivação apresentada a fls. 260 a 265 dos presentes autos correspondentes, que se declarasse que ele não teria culpa pela produção do acidente de viação em causa e que, por conseguinte, se passasse a atribuir-lhe diversas quantias indemnizatórias civis de danos patrimoniais e morais indicadas com montantes concretos pretendidos nessa motivação (aceitando, entretanto, que a compensação pecuniária de danos morais fosse fixada de modo equitativo nos termos do art.o 487.o do Código Civil), ou, pelo menos, que se determinasse o reenvio do processo para novo julgamento, com fundamento na alegada existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, aludidos respectivamente nas alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), porquanto, no entender dele, através do equipamento de gravação montado no veículo conduzido pelo arguido, se conseguiria saber que o arguido poderia ver com clareza que o próprio ofendido já esteve dentro do horizonte da visão do próprio arguido, sem qualquer obstáculo nem “ponto cego” sobre o comparecimento do ofendido, por um lado, e, por outro, o Tribunal recorrido não chegou a dar por provados os danos morais alegados na petição cível.
Ao recurso responderam o arguido demandado e a seguradora demandada ora recorridos respectivamente a fls. 270 a 274 e a fls. 276 a 289 dos presentes autos, no sentido igual de improcedência do recurso.
Subidos os autos, afirmou a fl. 299 o Digno Procurador-Adjunto, em sede de vista, que se absteve de se pronunciar sobre as questões relativas ao pedido de indemnização civil, por o recurso se cingir à parte civil do acórdão recorrido.
Concluído o exame preliminar e corridos os vistos legais, foi apresentado pelo M.mo Juiz Relator o douto Projecto de Acórdão à discussão do presente Tribunal Colectivo de recurso. Como o M.mo Juiz Relator acabou por sair vencido da votação feita sobre a solução do recurso, é de decidir do recurso nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do CPP.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos elementos dos autos, sabe-se que o seguinte:
– o acórdão recorrido encontra-se proferido a fls. 238 a 245 dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui inteiramente reproduzida para todos os efeitos legais;
– a petição cível de indemnização então enxertada pelo ofendido demandante consta de fls. 95 a 99v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui também totalmente reproduzido para todos os efeitos legais.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que este TSI, como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente postas pela parte recorrente na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas respectivas conclusões, e já não decidir, da justeza, ou não, de todos os argumentos invocados pela parte recorrente para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
O ofendido demandante civil aponta, na sua motivação, os vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Desde já se julga, à luz dos art.os 390.o, n.o 2, e 391.o, n.o 1, alínea c), do CPP, que o ofendido demandante tem toda a legitimidade e interesse processuais para interpor o presente recurso para pedir a alteração do julgado relativamente ao seu pedido cível de indemnização, já que na sua petição cível então apresentada a fls. 95 a 99v dos autos, chegou ele a articular, inclusivamente, circunstâncias fácticas causadoras do acidente de viação (cfr. sobretudo os primeiros dois factos acusados civilmente e como tal descritos nos últimos dois parágrafos da página 1 e no primeiro parágrafo da página 2, do texto dessa petição inicial, a fl. 95 a 95v), circunstâncias fácticas alegadas essas que, por decisão do Tribunal recorrido, não foram, inclusivamente, dadas por provadas na fundamentação fáctica da decisão civil absolutória ora recorrida (cfr. o teor das 6.a a 13.a linhas da página 8 do texto do aresto ora recorrido, a fl. 241v).
Pois bem, quanto ao assacado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada relativamente aos factos de danos morais: da leitura da fundamentação fáctica da decisão recorrida, resulta nítido que o Tribunal recorrido já respondeu concretamente a todos os factos alegados na petição cível a respeito de danos morais, tendo especificado quais os factos em causa que foram dados por provados, e quais os não provados, pelo que improcede esta parte do recurso.
E agora do também suscitado erro notório na apreciação da prova, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da análise dos elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, vislumbra-se que o Tribunal recorrido violou patentemente as leges artis no julgamento das circunstâncias fácticas articuladas na petição cível de indemnização como sendo causa do acidente de viação dos autos.
De facto, depois de visionado o videograma de gravação (“2017.06.16MW**-**”) do veículo automóvel então conduzido pelo condutor demandado, vê-se, com clareza, através do conteúdo desse videograma (concretamente no canto superior esquerdo do écran desse visionamento) que o motociclo então conduzido pelo ofendido demandante já apareceu na via pública recta em causa, dentro do horizonte da visão do condutor demandado, e que, este (não obstante o sinal de paragem obrigatória pintado no pavimento e vinculativo para o veículo com chapa de matrícula n.o MW-**-** que estava a conduzir na altura) não cedeu prioridade à passagem do dito motociclo, e fez virar o veículo n.o MW-**-** pela directa.
Procede, pois, o recurso no arguido vício de erro notório na apreciação da prova, havendo que determinar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância, por um outro Tribunal Colectivo, cabendo a esse novo Tribunal julgar apenas todos os factos probandos do pleito cível que tenham a ver com a causa do acidente de viação e o nexo de causalidade entre a conduta do condutor do veículo MW-**-** e os danos sofridos pelo ofendido demandante, a fim de, conforme o resultado dessa nova investigação fáctica, e segundo também toda a matéria de facto já dada por provada no acórdão recorrido acerca dos danos sofridos pelo ofendido, decidir juridicamente do mérito do pedido cível em causa.
Com o que fica prejudicado o pedido do ora recorrente de condenação directa civil, já que a questão da culpa do condutor demandado pela produção do acidente de viação será naturalmente objecto de decisão, inclusivamente, pelo novo Tribunal em Primeira Instância.
Finalmente, as custas do presente recurso ficam a meias pela parte demandante e pela parte demandada, com devida fixação de correspondentes taxas de justiça, posto que como este TSI não chega a conhecer directamente, na presente lide recursória, do mérito do pedido cível, não se pode calcular as taxas de justiça do recurso com base no valor económico do pedido cível.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar provido o recurso, reenviando o objecto cível do processo para novo julgamento, nos termos acima especificados.
Pagará o demandante metade das custas do seu recurso (com duas UC de taxa de justiça) e pagarão o condutor demandado e a seguradora demandada, conjuntamente, a outra metade das custas do recurso do demandante (com uma UC de taxa de justiça individual para o demandado e para a demandada).
Fixam em três mil patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa do demandado, montante este a entrar na regra de custas.
Macau, 27 de Junho de 2019.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
_______________________ (Segue declaração de voto).
José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
Processo nº 560/2019
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Vencido.
Como primitivo relator, e em sede de exame preliminar, suscitei a questão da eventual “falta de legitimidade do ofendido”, (ora recorrente), para o recurso que para este T.S.I. interpôs.
E, reponderando a questão, cremos que assim se deve entender, (dando aqui como reproduzido o entendimento que expus na minha declaração de voto anexa ao Ac. deste T.S.I. de 26.07.2018, Proc. n.° 332/2018).
Com efeito, da motivação e conclusões do presente recurso, constata-se que, com o mesmo, pretende o ofendido/demandante, e ora recorrente, inverter a decisão da matéria de facto quanto à “culpa do arguido na produção do acidente dos autos”, ou seja, pretende alterar a decisão do Colectivo a quo que deu como “não provada” a matéria com base na qual se imputava ao arguido um “juízo de culpabilidade” (crime e civil) pelo dito acidente, com tal almejando que, a final, se decida pela responsabilidade (civil) do referido arguido.
Porém, (e como em situação idêntica já tivemos oportunidade de ponderar), não tendo o ofendido, (demandante civil), a qualidade de “assistente”, importa considerar que – como se apresenta ser o caso – está fora da sua legitimidade a impugnação de factos dados como “não provados” que conduziram à absolvição do arguido, e que, a darem-se como “provados”, darão lugar a uma “contradição” com o já decidido e transitado em julgado, em violação do caso julgado formal; (sobre a “questão”, cfr., v.g., o Ac. do Vdo T.U.I. de 20.05.2005, Proc. n.° 25/2004, onde se trata da questão da “legitimidade do lesado em recorrer da decisão penal”, e o Ac. da Rel. de Évora de 12.07.2018, Proc. n.° 371/13.9, onde, no sumário, se consignou que: “A demandante cível tem legitimidade para recorrer de facto na estrita medida em que esses sejam essenciais à eventual procedência do pedido cível, isto é, aos que digam respeito aos pressupostos de responsabilidade civil, mas que não colidam com a possibilidade de alterar a factualidade central penal, ao menos no que diz respeito à integração no tipo de ilícito e à culpa penal.
Por isso se pode afirmar que falta legitimidade à demandante para impugnar os factos com reflexo na tipicidade, ilicitude e culpa penal se mantiver a simples qualidade de demandante civil e se, simultaneamente, não se constituir assistente.
A não constituição como assistente tem, nestes casos, um claro peso negativo, mas aceite pelo legislador como uma consequência natural das opções do lesado. Trata-se de matéria de índole penal e com consequências penais. Se a recorrente optou por se não habilitar, via constituição como assistente, à discussão paritária da matéria penal, isso tem como consequência ser intocável, o objecto penal do processo”).
Daí, (motivos não me parecendo haver para alterar o entendimento que assumi), a presente declaração.
Macau, aos 27 de Junho de 2019
José Maria Dias Azedo
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