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Proc. nº 311/2019
Recurso jurisdicional em matéria cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Julho de 2019
Descritores:
- Prova pericial
- Falsidade de assinatura

SUMÁRIO:

A análise sobre a veracidade da letra e assinatura de um documento é tarefa que deve ser efectuada por peritos especializados, e não pelo juiz, que não dispõe de competência técnica para o efeito.



Proc. nº 311/2019

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - Relatório
A, solteiro, maior, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade da República Popular da China n.º …, emitido em 19/09/2011, residente na 中國…, e ----
B, divorciado, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade da República Popular da China n.º …, emitido em 05/07/2005, residente na中國…, ----
Instauraram no TJB (Proc. nº CV3-17-0004-CAO), uma acção declarativa ordinária com processo comum contra: ----
C, casado, sob o regime da comunhão geral de bens, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau, n.º …, residente em Macau, 澳門…----
Pedindo a condenação deste no pagamento de uma quantia que dizem ter-lhe mutuado, bem como juros e indemnização resultante de cláusula penal convencionada entre as partes.
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Na contestação, o réu impugnou a genuinidade da assinatura aposta nos documentos apresentados pelos AA, além de excepcionar a incompetência do tribunal.
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Por despacho saneador de 10 de Setembro de 2018, foi declarada a incompetência dos tribunais de Macau, com a consequente absolvição do réu da instância.
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É contra esse despacho que ora vem interposto pelos AA o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“a) Entendem os AA. que o referido termo de consentimento deve ser considerado um acordo válido que efectivamente modifica a competência da relação material controvertida.
b) A elaboração por escrito e a consequente anexação ao contrato de uma declaração de modificação da competência satisfaz os requisitos legalmente exigidos.
c) As partes aceitaram que qualquer litígio poderia ser dirimido em qualquer jurisdição.
d) Pelo que, tendo decidido mal, deve a sentença recorrida ser revogada por manifesta violação de lei.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso apresentado pelos AA. ser recebido e deferido, por provado, e em consequência deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que declare o douto Tribunal competente para julgar a presente acção, assim se fazendo a costumeira JUSTIÇA!”.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 - Em 5/01/2017A, A e B, ambos com os demais sinais identificativos dos autos, instauraram acção no TJB pretendendo obter a condenação do réu, C, no pagamento de uma quantia que dizem ter-lhe emprestado.
2 - No dia 16/11/2017 os mesmos autores requereram no TJB procedimento cautelar de arresto (Proc. nº CV3-17-0004-CAO-A), que, sem previa audição do requerido, aqui réu, foi decretado por decisão de 15/12/2017.
3 - Em 14/01/2018 a mulher do aqui réu requereu a separação judicial de bens (Proc. nº CV3-17-0004-CAO-B).
4 - Em 10/09/2018, no âmbito da acção referida em 1 supra, no despacho saneador, o titular do processo lavrou a seguinte decisão (fls. 111-114 dos autos e tradução a fls. 10-23, do apenso “traduções”):
“Competência dos tribunais
Na contestação, para além de impugnar a genuinidade do contrato de empréstimo no doc. 1, do recibo no doc. 2 e do doc. 9 da petição inicial, o réu também pretendeu que, caso seja verdadeiro o contrato de empréstimo no doc. 1 da petição inicial, consta expressamente da sua cláusula sexta (II) que se não for possível dirimir o litígio no contrato, será intentada acção no Tribunal do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai, sendo excluída, por tal acordo, a competência dos tribunais de Macau; além disso, mesmo que seja verdadeiro o termo de consentimento no doc. 9 da petição inicial, não consta do mesmo que a alteração do acordo sobre a competência é dirigida contra o aludido contrato de empréstimo, e indica-se apenas que permite ao 1º autor intentar acção em tribunal de qualquer lugar. Ao mesmo tempo, o texto do termo de consentimento é composto, obviamente, por dois tipos de letra diferentes, entre os quais não há uma conexão do significado, pelo que causa suspeita de que é documento falsificado. Desta forma, entende o réu que, ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 413.º, al. a), 30.º e 33.º do CPC, deve ser indeferida a acção por incompetência deste Tribunal.
Na sua réplica, para além de contradizer a supracitada impugnação da genuinidade de documento e requerer a perícia caligráfica da assinatura, o autor ainda indicou que o réu assinou o acordo no doc. 9 da petição inicial, que aceitou expressamente dirimir qualquer litígio ocorrido no empréstimo em tribunal de qualquer lugar, entendendo que não pode o direito tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal de Macau, que o réu é residente e empresa de Macau e que existe principalmente elemento ponderoso de conexão pessoal (art.º 15.º, al. c) do CPC). Subsidiariamente, o autor ainda entendeu que a presente acção é destinada a exigir o cumprimento de obrigações, e o réu tem domicílio em Macau, pelo que devem ser competentes os tribunais de Macau (art.º 16.º, al. a) do CPC).
Analisemos.
A competência extraterritorial dos tribunais de Macau e o acordo sobre a competência são reguladas nos art.ºs 15.º a 17.º e 29.º do CPC.
Nos termos do art.º 15.º do CPC, “Os tribunais de Macau são competentes quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias: a) Ter sido praticado em Macau o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram; b) Ser réu um não residente e autor um residente, desde que, se idêntica acção fosse proposta pelo réu no tribunais do local da sua residência, o autor pudesse ser aí demandado; c) Não poder o direito tornar-se efectivo se não por meio de acção proposta em tribunal de Macau, desde que entre a acção a propor e Macau exista qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.”
Nos termos do art.º 16.º do CPC, “Sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo anterior, os tribunais de Macau são competentes para apreciar: a) As acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso, ou a resolução do contrato por falta de cumprimento, quando a obrigação devesse ser cumprida em Macau ou o réu aqui tenha domicílio; b) As acções relativas a direitos pessoais de gozo, de despejo, de preferência e de execução específica de contrato-promessa, quando tenham por objecto imóveis situados em Macau; c) As acções de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas quando, respeitando a navios e aeronaves, o registo destes tenha sido feito em Macau ou quando, respeitando a bem diverso, este se situe em Macau; d) As acções destinadas a ser julgado livre de privilégios o navio adquirido por título gratuito ou oneroso quando, no momento da aquisição, o navio se achasse surto em porto de Macau; e) As acções destinadas a regular avaria marítima comum sofrida por navio que entregue ou devesse entregar a respectiva carga em porto de Macau; f) As acções de indemnização fundadas na abalroação de navios, quando o acidente tenha ocorrido em águas sob administração do Território, o dono do navio abalroador esteja domiciliado em Macau, o navio abalroador esteja registado em Macau ou for encontrado em porto de Macau, ou for de Macau o primeiro porto em que entrou o navio abalroado; g) As acções destinadas a exigir os salários devidos por salvação ou assistências de navios, quando a salvação ou assistência tenha ocorrido em águas sob administração do Território, o dono dos objectos salvos tenham domicílio em Macau, o navio socorrido esteja registado em Macau, ou seja encontrado em porto de Macau o navio socorrido; h) As acções de divisão de coisa comum, quando tenha por objecto bens situados em Macau; i) As acções de divórcio, quando o autor resida em Macau ou aqui tenha domicílio; j) As acções de inventário destinado à pôr termo à comunhão hereditária, quando a sucessão tenha sido aberta em Macau ou quando, aberta a sucessão fora de Macau, o falecido tenha deixado imóveis em Macau ou, na falta de imóveis, aqui se encontre a maior parte dos móveis por ele deixados; l) As acções de habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, quando se verifique algum dos requisitos mencionados na alínea anterior, ou quando o habilitando tenha domicílio em Macau; m) As acções destinadas a declarar a falência, quando o domicílio, a sede ou a administração principal do empresário comercial se situe em Macau, ou quando, não se situando nenhum destes em Macau, aquelas acções derivem de obrigações contraídas ou que devessem ser cumpridas em Macau e o empresário comercial aqui tenha sucursal, agência, filial, delegação ou representação, sendo porém restrita a liquidação aos bens existentes em Macau.”
Nos termos do art.º 17.º do CPC, “Sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo 15.º, os tribunais de Macau são competentes para apreciar as acções não previstas no artigo anterior ou em disposições especiais, quando: a) O réu tenha domicílio ou residência em Macau; b) Não tendo o réu residência habitual ou sendo incerto ou ausente, o autor tenha domicílio ou residência em Macau; c) Sendo o réu uma pessoal colectiva, se situe em Macau a respectiva sede ou administração principal, ou uma sucursal, agência, filial, delegação ou representação.”
Nos termos do art.º 29.º do CPC, “1. As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação material controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica. 2. A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais de Macau, presumindo-se que seja alternativa em caso de dúvida. 3. A designação só é válida verificados cumulativamente os seguintes requisitos: a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis; b) Ser aceite pela lei do tribunal designado; c) Corresponder a um interesse sério das partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra; d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau; e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente. 4. Para os efeitos da alínea e) do número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham directamente o acordo, quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.”
No caso sub judice, dos documentos apresentados pelo autor resulta que a relação jurídica material controvertida reside no pacto atributivo de jurisdição.
Segundo o contrato de empréstimo constante das fls. 10 e 11 dos autos (ou seja o contrato de mútuo que está na base do pedido dos dois autores), é convencionado expressamente na cláusula sexta (II) desse contrato que se não for possível dirimir o litígio por acordo entre as três partes A, B e C, será intentada acção no Tribunal do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai.
Conforme os elementos constantes dos autos, afigura-se-nos que o aludido pacto atributivo de jurisdição preenche os requisitos previstos no art.º 29.º, n.º 3 e n.º 4 do CPC, pelo que é válido. Assim, o referido pacto que atribui a competência ao tribunal popular da Cidade de Zhuhai excluirá a competência dos tribunais de Macau (primeira parte do n.º 2 do art.º 29.º, n.º 2 do art.º 31.º, segunda parte do n.º 2 do art.º 33, e art.º 414.º do CPC).
Porém, o termo de consentimento constante das fls. 24 dos autos pode ser considerado acordo que altera a competência convencionada?
Por razões diversas, a resposta não pode deixar de ser negativa.
De facto, o supracitado termo de consentimento foi elaborado de forma anormalmente descuidada e negligente.
Primeiro, após comparação, verifica-se que a alegada assinatura “C” do réu é diferente das assinaturas do réu constantes dos outros documentos nos autos, nomeadamente a assinatura do réu nas fls. 88 dos autos autenticada por escritura do Interior da China, a assinatura no contrato de empréstimo nas fls. 10 e 11 dos autos, e a assinatura nas fls. 68 dos autos. Nos termos do art.º 368.º do Código Civil, “1. A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras. 2. Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.” E nos termos do art.º 369.º (sic.), n.º 1 do Código Civil, “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.” O autor requereu diligências de perícia da assinatura do réu (fls. 104 dos autos), mas o réu alega que é proibido, pelo tribunal popular da Cidade de Zhuhai, de sair do Interior da China, pelo que não é possível para a PJ recolher a assinatura do réu e proceder à perícia. Porém, a escritura do Interior da China constante das fls. 87 a 90 dos autos já contém a perícia da assinatura do réu feita pelo notário do Interior da China, e após comparação, a respectiva assinatura é manifestamente diferente da assinatura no termo de consentimento constante das fls. 24 dos autos. Assim, por o autor não ter provado a veracidade da assinatura no termo de consentimento acima referido, não se pode reconhecer a força probatória plena da declaração neste termo de consentimento.
Segundo, supõe-se que a supracitada assinatura é verdadeira, mas da letra do referido termo de consentimento (não incluindo as duas assinaturas no canto inferior esquerdo) resulta que este é dividido em duas partes.
A primeira parte é do seguinte teor:
“Termo de consentimento
Eu concordo que em caso de qualquer litígio surgido no empréstimo que peço a A em Zhuhai, poderá A intentar acção em tribunal de qualquer lugar.”
E a segunda parte é do seguinte teor:
“Venho na próxima quarta e quinta-feiras para tratar desse assunto.
C (assinatura)
8.9.2015”
Como indicou o réu na contestação, são obviamente diferentes os estilos das duas partes acima referidas, e do contexto das mesmas não se pode retirar uma conexão quer da língua quer da lógica, pelo que não se vê que a assinatura na segunda parte visa manifestar o concordo com o termo de consentimento na primeira parte. O réu alegou na contestação que era documento falsificado, mas o autor não deu resposta a tal impugnação na sua réplica, nem deu qualquer explicação ou justificação dessa anomalia na réplica ou na petição inicial. Por isso, supõe-se que é reconhecida a veracidade da assinatura no termo de consentimento acima referido, só fica provada a declaração de vontade do réu no sentido de “venho na próxima quarta e quinta-feiras para tratar desse assunto”, e não a declaração de concordar com a alteração da competência.
Mesmo que se considerasse que a declaração de vontade do réu incluiu a aludida alteração da competência, o termo de consentimento acima referido também não preenche os requisitos do acordo que altera a competência convencionada.
De facto, segundo os factos alegados e documentos apresentados pelo autor, existem entre o 1º autor (ou junto com o 2º autor) e o réu mais de uma relação (contratual) de mútuo, entre as quais a relação (contratual) de mútuo constante das fls. 10 e 11 dos autos que constitui a relação jurídica material controvertida no caso vertente, bem como a relação (contratual) de mútuo constante das fls. 12 a 21 dos autos. Além disso, consta do verso do termo de consentimento a fls. 24 dos autos um termo de aceitação do empréstimo, e da frente a assinatura acima referida, e no canto inferior esquerdo há duas assinaturas cujos signatários não são identificados. Simplesmente com base no respectivo documento, não se pode saber quem apuseram essas duas assinaturas, e só após comparação com o documento a fls. 10 e 11 dos autos, pode-se ver que tais assinaturas são semelhantes às assinaturas dos 1º e 2º autores, no entanto, tal documento não atribui às referidas assinaturas qualquer sentido, pelo que não se pode saber se as assinaturas foram apostas para concordar com o supracitado acordo ou presenciar o termo de consentimento. Por outro lado, se o referido termo de consentimento se trate de acordo que altera a competência convencionada, existem ainda as seguintes questões: 1) o termo de consentimento descreve o litígio de empréstimo entre “eu” e A, sem identificação de “eu”, não indica se é o réu (ou seja C) ou os signatários no canto inferior esquerdo, e não há qualquer elemento para a identificação; 2) supõe-se que o “eu” refere-se ao réu, o litígio de empréstimo descrito no termo de consentimento é relação entre o réu e A, não incluindo a relação entre o 2º autor e eles, e em virtude das diversas relações de mútuo reveladas pelos elementos supracitados, o objecto do termo de consentimento deve ser simplesmente a relação de mútuo entre o 1º autor e o réu, não incluindo a relação (contratual) de mútuo constante das fls. 10 e 11 dos autos, senão, deveria ter sido expressamente indicada a relação de mútuo entre “C” e “A” e “B”; 3) ao mesmo tempo, o termo de consentimento em causa não indica concretamente ao qual empréstimo é que se aplica, e face aos diversos empréstimos existentes, não basta para reconhecer que tal termo de consentimento altera o acordo sobre a competência prevista pela cláusula sexta (II) do documento a fls. 10 e 11 dos autos; 4) mesmo que se entendesse que o termo de consentimento é dirigido contra a relação de mútuo em causa, indica apenas que é permitido intentar acção em tribunal de qualquer lugar, em vez de atribuir aos tribunais de uma ou várias ordens jurídicas a competência, e do termo de consentimento em causa, conjugado com os factos alegados (o réu alega que é proibido, pelo tribunal popular da Cidade de Zhuhai, de sair do Interior da China e não é possível a sua intervenção em Macau), não se pode concluir que o termo de consentimento corresponde a um interesse sério das partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra, pelo que não estão preenchidos, nomeadamente, os requisitos de validade previstos nas alíneas c) e e) do n.º 3 do art.º 29.º.
Por isso, não se pode reconhecer que o termo de consentimento a fls. 24 dos autos é acordo que altera a cláusula atributiva de competência constante das fls. 10 e 11 dos autos, e por não preencher os requisitos previstos no n.º 3 do art.º 29.º do CPC, o termo de consentimento não é pacto privativo ou atributivo de jurisdição válido.
Porém, supõe-se que o supracitado termo de consentimento é reconhecido como acordo válido que altera a competência para apreciar a relação jurídica material controvertida, a existência de tal acordo não resultará na competência dos tribunais de Macau.
Na verdade, conforme o teor do respectivo termo de consentimento, não é atribuída directamente a competência aos tribunais de Macau, e em contrário, o termo pode ser considerado, no máximo, como acordo revogatório da cláusula atributiva de competência constante das fls. 10 e 11 dos autos. Assim, quanto à determinação da competência extraterritorial, considerando que se trata de acção de cumprimento de obrigações, são aplicáveis os art.ºs 16.º, al. a) e 15.º (não incluindo a al. b), por não se aplicar ao presente caso) do CPC.
In casu, segundo os factos alegados e documentos apresentados pelo autor, o contrato de empréstimo envolvido (constante das fls. 10 e 11 dos autos) é celebrado na Cidade de Zhuhai, são apostas as assinaturas e impressões digitais conforme a prática habitual no Interior da China, o empréstimo é feito em RMB, os bens que servem como garantia das dívidas são principalmente empresas no Interior da China, o lugar para dirimir litígios é a Cidade de Zhuhai, os credores (os dois autores) são residentes do Interior da China, e o único elemento relacionado com Macau é que o devedor (réu) é titular do BIRM e do salvo-conduto concedido aos residentes de Hong Kong e Macau para entrada e saída do Interior da China.
Nos termos do art.º 40.º do Código Civil, “1. As obrigações provenientes de negócio jurídico, assim como a própria substância dele, são reguladas pela lei que os respectivos sujeitos tiverem designado ou houverem tido em vista. 2. A designação ou referência das partes só pode, todavia, recair sobre lei cuja aplicabilidade corresponde a um interesse sério dos declarantes ou esteja em conexão com algum dos elementos do negócio jurídico atendíveis no domínio do direito de conflitos.”
Nos termos do art.º 41.º do Código Civil, “Na falta de determinação da lei competente, aplica-se a lei do lugar com o qual o negócio jurídico se ache mais estreitamente conexo.”
Obviamente, as partes neste caso não designaram a lei competente aplicável à supracitada relação de mútuo, pelo que aplica-se a lei do lugar que se ache mais estreitamente conexo. De acordo com os diversos elementos externos acima expostos, o lugar mais estreitamente conexo com a referida relação de mútuo é o Interior da China (Cidade de Zhuhai), pelo que a lei competente deve ser a lei do Interior da China.
Nos termos do art.º 62.º da Lei do Contrato da República Popular da China, “Ao conteúdo do contrato não claramente convencionado pelas partes, e não determináveis conforme o art.º 61.º da presente lei, são aplicáveis as seguintes regras: … (3) quando o lugar de cumprimento esteja claro, o contrato da prestação de moeda será cumprido no lugar onde se encontra o beneficiário; o contrato da entrega de imóvel será cumprido no lugar onde se situa o imóvel; os contratos de outros objectos serão cumpridos no lugar onde se encontra o devedor…”
Daí que, na falta de designação expressa do lugar de cumprimento, no caso sub judice, o lugar de cumprimento da relação de mútuo em causa é o lugar onde se encontram os dois autores, ou seja a Cidade de Zhuhai do Interior da China, em vez de Macau.
Por outro lado, quer os documentos apresentados pelo autor (nomeadamente as fls. 13, 14 e 23 dos autos), quer os outros documentos constantes dos autos (nomeadamente as fls. 33, 36, 48, 53, 68 e 69 dos autos), revelam que o domicílio do réu situa-se no Interior da China (Cidade de Zhuhai) em vez de Macau.
Assim, segundo tanto o art.º 16.º, al. a) como o art.º 15.º, al. a) do CPC, os tribunais de Macau não são competentes. Mesmo que se entendesse que é aplicável o art.º 17.º do CPC, os tribunais de Macau também não são competentes.
Além disso, quanto à aplicabilidade do art.º 15.º, al. c) do CPC, tendo em conta que a acção proposta pelo autor é declarativa (acção de condenação), a sua propositura não depende de o réu possuir ou não bens no lugar do tribunal. Por isso, embora o autor indique que o réu não tem bens no Interior da China, isso não impede o autor de intentar, segundo as disposições legais do Interior da China, acção de cumprimento nos tribunais populares do Interior da China (Cidade de Zhuhai) (como a acção semelhante intentada pelo 1º autor no tribunal popular do Interior da China (Cidade de Zhuhai) através do documento a fls. 12 a 21 dos autos), e depois proceder, em Macau, ao processo de execução dos bens do réu através de confirmação de sentenças do exterior. Assim, este Tribunal não pode concluir que a presente acção proposta em Macau pelo autor é indispensável para se tornar efectivo o seu direito, pelo que não se verifica o requisito previsto pela al. c) do art.º 15.º do CPC.
Desta forma, os tribunais de Macau não são competentes, e deve ser indeferida a acção do autor.
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Pelo exposto, nos termos dos art.ºs 15.º, al.s a) e c), 16.º, al. a), 29.º, 31.º, n.º 2, 33.º, n.º 2, 230.º, n.º 1, al. a), 413.º, al. a) e 414.º do CPC, este Tribunal julga procedente a excepção de incompetência do réu, e em consequência, declara que não são competentes os tribunais de Macau, e absolve o réu da instância.
Custas pelo autor.
Notifique, registe e tome medidas necessárias.”
5 - O empréstimo teve lugar em 1/12/2014, na cidade de Zhuhai, na República Popular da China.
***
III – O Direito
1. O que se intenta obter no presente recurso é uma resposta à essencial questão que preocupa os recorrentes: têm, ou não, os tribunais de Macau competência para julgar a acção por eles instaurada contra o réu, C?
A sentença entendeu que não, como se pode ver pela transcrição acima efectuada. Os recorrentes acham que sim.
Vejamos.
*
2. Existe um documento que revela um empréstimo em 1/12/2014, pelos AA ao réu no montante de RM 3.800.000,00, sob uma determinada taxa de juro e uma cláusula penal compensatória de agravamento da taxa de juro (cfr. fls. 10-11 dos autos e 25 a 28 do apenso “traduções”). Os autores afirmam que o réu jamais lhes devolveu o dinheiro do mútuo, incumprindo assim o contrato. Daí a necessidade de instauração da acção de condenação.
No documento que titula o mútuo, é referido ainda que, em caso de litígio entre as partes, na falta de solução amigável, será o Tribunal do Distrito de Xiangzhou da cidade de Zhuhai o competente para o resolver (cláusula 6, II). Significa isto que no documento as partes convencionaram um pacto privativo de jurisdição. Em vista desta cláusula, os tribunais de Macau estariam excluídos da competência para o julgamento da causa.
Mas existe nos autos um outro documento, a que foi dada a designação de consentimento (fls. 24 dos autos e 29 do apenso “traduções), segundo o qual o réu, posteriormente (concretamente, em 8/09/2015), aceitou que a resolução de qualquer litígio surgido na sequência do empréstimo pedido ao autor pudesse ser resolvida em acção a instaurar em tribunal de qualquer lugar.
Esta declaração escrita corresponde a uma revogação da referida cláusula anterior inscrita no contrato de mútuo e à sua modificação por uma outra com um conteúdo tal que deixava ao credor A a escolha do tribunal onde instaurar a acção.
Acontece, porém, que o réu na sua contestação impugnou a autenticidade da assinatura aposta em ambos os documentos, imputando-a de falsa e dizendo: não é sua; nunca os assinou!
*
3. O despacho saneador, porém, com base no documento titulador do empréstimo, concluiu que os tribunais de Macau não eram competentes para o julgamento. Quer dizer, conferiu relevância ao primeiro documento (de empréstimo), desconsiderando o segundo (pretensamente alusivo a uma alteração da competência para dirimir o litígio).
E tal decisão ficou a dever-se, entre outras razões, à circunstância de o juiz do processo ter pessoalmente considerado que as assinaturas imputadas ao réu não coincidiam, que seriam diferentes, nos diversos documentos (10-11, 24, 68 e 88).
Mas, se é assim, é caso para perguntar: se, em sua opinião, as assinaturas eram diferentes, qual delas é a verdadeira? E não serão ambas verdadeiras? Ou serão, antes, todas falsas e não são da autoria do réu? Podia o juiz valorizar mais uma do que outra?
Ora bem. Estamos no âmbito de uma actividade técnica para a qual o tribunal não tem a necessária habilitação. Só a entidade pericial competente poderá fazer o correcto juízo acerca da autenticidade ou genuinidade da assinatura dos documentos em causa. O magistrado não tem competência para comparar estilos de grafia para desse seu pessoal exame extrair a sua conclusão. Deve deixar aos peritos o que só eles sabem fazer.
Aliás, o despacho, ao conceder mais, e melhor, valia ao documento de fls. 10-11 (no que respeita à assinatura do réu), está eventualmente, pode dizer-se, a ir contra o pensamento e a posição expressa do réu, pois ele mesmo a afasta na sua contestação. Ou seja, para o réu não existe dívida nenhuma de empréstimo, pois nunca assinou qualquer documento nesse sentido. Se assim for, por que motivo se considera que a acção para efectivação de responsabilidade contratual deve ser instaurada em Zhuhai com fundamento numa cláusula documental que o réu afirmou desconhecer e nunca ter subscrito?!
Portanto, o que faz falta, antes de tudo, é averiguar a veracidade/autenticidade da letra e assinatura aposta nos documentos (principalmente nos dois principais: fls. 10-11 e 24). Só depois, consoante o resultado pericial, é que se poderá concluir se a acção deve/pode ser instaurada aqui ou noutro lado qualquer e, inclusive, se poderá proceder. Se se concluir que letra e assinatura pertencem ao réu em ambos os documentos, cremos que a acção pode ser instaurada em Macau, face à nova convenção de 8/09/2015. Se, diferentemente, se chegar à conclusão que só a primeira assinatura (do documento de empréstimo) é genuína, então sim, a acção deverá ser instaurada em Zhuhai. Mas, por ora, não nos precipitemos. Entreguemos à perícia o que é da perícia.
*
4. Por outro lado, para afastar a necessidade desta prévia tarefa investigatória, não nos parece suficiente a alegação de que o réu não pode sair da China, tal como o aceitou o despacho em crise. Nem o facto de o documento de fls. 87-90 ter a assinatura do reu reconhecida pelo notário serve para afastar a necessidade da perícia pela P.J. São coisas distintas.
*
5. Também não serve os desígnios próprios da definição da competência no caso concreto, a afirmação efectuada no despacho de que a competência seria do tribunal da RPC, face aos arts. 40º e 41º do Código Civil.
Esta invocação não colhe, em virtude de tais preceitos não darem resposta à questão sobre a jurisdição elegível e sobre a competência judicial a atribuir, mas sim, e apenas, sobre a lei (substantiva) aplicável às obrigações, sobre a lei (substantiva) que as deva regular. Não é isso o que está em causa aqui.
*
6. Finalmente, também não pensamos que os arts. 15º, al. a) e 16º, al. a), do CPC, e de que o despacho sindicado fez uso, sirvam por si só como referência decisiva para a resolução do tema em análise, porque antes disso teremos que indagar se as partes quiseram e assinaram uma convenção privativa de jurisdição e se, posteriormente, quiseram e assinaram a sua modificação. Tudo isso terá que ser oportunamente apreciado.
Por ora, e em síntese, importa fazer prosseguir os autos, nos quais na oportunidade se deverá fazer tramitar o incidente da falsidade (art. 469º e 490º e sgs., nomeadamente, do art. 505º, se necessário, todos do CPC).
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, a menos que alguma outra causa a tal obste.
Custas pela parte vencida a final.
T.S.I., 11 de Julho de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong



311/2019 18