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Processo n.º 530/2018 Data do acórdão: 2019-7-11 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– falsificação dos registos do ponto do trabalho
– burla de salário
– reenvio do processo para novo julgamento
S U M Á R I O
1. No presente caso, da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, se vê que o tribunal a quo já julgou por provada a conduta dolosa do arguido de falsificação dos registos do ponto do trabalho dele numa direcção de serviços do Governo, com intenção de obter para si vantagem ilegítima.
2. Assim, perante esse acervo de factos provados, é de considerar, sob pena de ofensa patente às regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, que o facto provado de o arguido ter falsificado os diversos registos do ponto do seu trabalho já representou o emprego, por ele, de astúcia sobre essa direcção de serviços como sua entidade patronal: é que se ele não tivesse falsificado esses registos do ponto, essa entidade patronal teria descoberto logo a realidade de ele não ter estado no serviço e como tal teria determinado o desconto remuneratório correspondente aos dias de falta injustificada dele ao serviço, em procedimento próprio e momento oportuno.
3. Por isso, é de julgar, a nível de factos, que o erro do pessoal da contabilização e tesouraria dessa direcção de serviços no processamento do pagamento da remuneração do arguido foi causado por actuação deste, consistente na falsificação dos registos do ponto do trabalho dele.
4. Incorreu, assim, o tribunal a quo no erro notório na apreciação da prova, o que implica o reenvio do processo para novo julgamento na parte que tenha a ver com o então acusado crime de burla em valor elevado.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 530/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): B (B)







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 565 a 588 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR3-16-0485-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base na parte em que se decidiu absolver o arguido B, aí já melhor identificado, da imputada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de burla em valor elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 3, do Código Penal (CP), veio o Digno Delegado do Procurador junto desse Tribunal recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando que essa decisão absolutória penal incorreu em erro notório na apreciação da prova, por esse Tribunal ter considerado, aí, não verificado o dolo do arguido na prática desse crime, pelo que o arguido deveria passar a ser condenado também nesse crime (cfr. em detalhes, o teor da motivação apresentada a fls. 594 a 600v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o arguido (a fls. 618 a 627) no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta (a fls. 637 a 638v), a título principal, pela manutenção da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 565 a 588, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Nesse acórdão, o arguido ficou condenado como autor material de um crime consumado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP, em um ano de prisão, suspensa na execução por três anos, enquanto foi absolvido da acusada prática, em autoria material, de um crime consumado de burla em valor elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 3, do CP.
3. Da leitura da fundamentação fáctica desse aresto, vê-se que o Tribunal recorrido julgou materialmente não provados (cfr. o teor da página 41 do texto desse aresto, a fl. 585):
– o facto descrito sob o art.o 104.o da acusação pública de fls. 479 a 486 (no qual o arguido ficou acusado de que: com intenção de obter para si vantagem ilegítima, procedeu à conduta em causa para fazer com que o pessoal de contabilização e tesouraria da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) tenha ficado com erro acerca da situação do ponto do trabalho do próprio arguido, e por isso pago a ele quantias remuneratórias que ele não deveria receber, tendo a mesma Direcção de Serviços ficado com danos patrimoniais em montantes correspondentes, isto apesar de estar ele próprio ciente de que a sua conduta consistia em falta injustificada ao trabalho com perda da correspondente remuneração, e também estar ciente de que o referido pessoal da DSSOPT iria proceder ao cálculo da sua remuneração necessariamente de acordo com os referidos registos, entretanto não correspondentes à verdade, do ponto do trabalho dele;
– bem como o facto descrito no art.o 103.o da mesma acusação, na parte concreta em que o arguido ficou acusado de que a sua conduta fez com que o pessoal responsável pela contabilização e tesouraria da DSSOPT tenha ficado em erro acerca da situação do ponto do trabalho dele, tendo, por isso, essa Direcção de Serviços pago a ele cerca de MOP39.759,81 de quantias remuneratórias que ele não deveria receber (cfr. o mapa de contabilização elaborado a fls. 389 a 391 pelo Comissariado contra a Corrupção).
4. Na fundamentação probatória do mesmo acórdão, o Tribunal recorrido afirmou que no caso não conseguiu dar por provado o dolo do arguido no crime de burla de quantias salariais (cfr. o teor da linha 18 da página 44 do texto desse aresto, a fl. 586v).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
O Digno Delegado do Procurador insurgiu-se contra a decisão absolutória do crime consumado de burla em valor elevado, do art.o 211.o, n.o 3, do CP, então acusado ao arguido, alegando que esta decisão absolutória padeceu do erro notório na apreciação da prova, como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP).
Pois bem, sempre se diz que o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No presente caso, da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, se vê que o Tribunal a quo já julgou por provada a conduta dolosa do arguido de falsificação dos registos do ponto do trabalho dele na DSSOPT, com intenção de obter para si vantagem ilegítima (cfr. o teor dos factos provados 1 a 105).
Assim, perante esse acervo de factos provados, é de considerar, sob pena de ofensa patente às regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, que o facto provado de o arguido ter falsificado os diversos registos do ponto do seu trabalho na DSSOPT já representou o emprego, por ele, de astúcia sobre essa Direcção de Serviços como sua entidade patronal: é que se ele não tivesse falsificado esses registos do ponto, essa entidade patronal teria descoberto logo a realidade de ele não ter estado no serviço e como tal teria determinado o desconto remuneratório correspondente aos dias de falta injustificada dele ao serviço, em procedimento próprio e momento oportuno. Por isso, é de julgar, a nível de factos, que o erro do pessoal da contabilização e tesouraria no processamento do pagamento da remuneração do arguido foi causado por actuação deste, consistente na falsificação dos registos do ponto do trabalho dele.
Incorreu, assim, o Tribunal a quo no erro notório na apreciação da prova, o que implica, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento por um novo Tribunal Colectivo no Tribunal Judicial de Base, mas apenas na parte do objecto do subjacente processo penal que tenha a ver com o então acusado crime de burla em valor elevado.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando o processo para novo julgamento, na parte respeitante ao acusado crime de burla em valor elevado.
Custas do recurso pelo arguido, com duas UC de taxa de justiça e mil e oitocentas patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Comunique a presente decisão (com cópia do acórdão recorrido) ao Comissariado contra a Corrupção, e à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públias e Transportes.
Macau, 11 de Julho de 2019.
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Chan Kuong Seng
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta) (concordo com a decisão sobre o reenvio para novo julgamento sobre o crime de burla, no entanto, entendo que por ser o crime de falsificação de documento crime instrumental de crime de burla os dois crimes são de relação do concurso aparente.)




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