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Processo n.º 315/2018 Data do acórdão: 2019-7-18
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– leges artis
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 315/2018
(Autos de recurso penal)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 221 a 226 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-17-0332-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou absolvido o arguido C, aí já melhor identificado, da acusada prática, em autoria material, de um crime consumado de emissão de cheque sem provisão em valor consideravelmente elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 214.o, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal.
Inconformada, veio a ofendida então chamada A, S.A., actualmente denominada B, S.A., entretanto já constituída assistente, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua motivação apresentada a fls. 234 a 247 dos presentes autos correspondentes, que a referida decisão absolutória penal padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, para rogar a condenação penal directa do arguido nos termos pelos quais já vinha acusado, com condenação deste no pagamento de imdemnização devida.
Ao recurso, respondeu a fls. 250 a 254 a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido, no sentido de manutenção do julgado.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 264 a 265, pugnando pela verificação do crime por que vinha acusado o arguido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 221 a 226, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
Segundo a factualidade dada por provada em primeira instância, sabe-se o seguinte:
A assistente abriu uma linha de crédito até ao montante de um milhão de dólares de Hong Kong, para o arguido jogar no casino da assistente.
O arguido entregou o cheque dos autos à assistente, como garantia dessa linha de crédito.
O cheque em causa, para além da assinatura do próprio arguido aí feita, tinha inicialmente conteúdo em branco no respeitante à data do cheque e ao montante do cheque.
A assistente ficou autorizada pelo próprio arguido, no “termo de responsabilidade” então assinado por este à assistente, a preencher o montante em dívida e a data do cheque para efeitos de devolução do dinheiro em dívida.
O arguido levantou, em 15 de Fevereiro de 2011, por conta do casino da asistente, um milhão de dólares de Hong Kong em fichas para jogar.
Conforme o resultado de apuramento de jogos feito unilateralmente pela assistente, o arguido estava a dever-lhe ainda um total de 973.195,00 dólares de Hong Kong, quantia essa equivalente à moeda malaia no valor de RM381.385,00.
O casino em causa contactou por diversas vezes o arguido para pagar a dívida referida, mas sempre em vão.
O arguido saiu de Macau em 16 de Maio de 2011, sem mais registos sobre a sua reentrada em Macau.
Em 11 de Julho de 2011, a assistente preencheu a data do cheque referido como sendo 11 de Julho de 2011 e preencheu também no cheque o montante de RM381.385,00 em moeda malaia, e apresentou o cheque a pagamento, o qual não foi pago com fundamento na liquidação total da conta já no dia 1 de Junho de 2011.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, sabe-se que o Tribunal recorrido entendeu não haver prova suficiente para dar por provado que o arguido tenha sabido do montante de dívida calculado pela assistente, nem para comprovar que o arguido tenha sabido da data de apresentação do cheque em causa a pagamento, e por isso acabou por decidir em absolver o arguido do acusado crime.
Entretanto, este resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido compromete patentemente as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, por seguintes razões:
De facto, sem qualquer garantia oferecida à assistente, é impensável, para qualquer homem médio colocado na situação concreta da relação contratual entre o arguido e a assistente, que esta esteja disposta a conceder a ele facilidades de crédito até ao avultado montante de um milhão de dólares de Hong Kong para ele jogar no casino dela. Assim, foi exactamente para garantir essa linha de crédito que o cheque dos autos foi assinado e entregue pelo arguido à assistente (cfr. os factos provados 1 e 2).
E embora para além da assinatura do próprio arguido feita nesse cheque, este cheque tenha tido inicialmente conteúdo em branco no respeitante à data de emissão e ao montante do cheque, a assistente já ficou autorizada pelo próprio arguido, no “termo de responsabilidade” então assinado pelo próprio arguido à assistente, a preencher o montante em dívida e a data do cheque para efeitos de devolução do dinheiro em dívida (cfr. os factos provados 2 e 3).
Além disso, é de atender a que o Tribunal recorrido considerou provado, por outra banda, que: o arguido levantou, em 15 de Fevereiro de 2011, por conta do casino da asistente, um milhão de dólares de Hong Kong em fichas para jogar (cfr. o facto provado 24); conforme o resultado de apuramento de jogos feito unilateralmente pela assistente, o arguido estava a dever-lhe ainda um total de 973.195,00 dólares de Hong Kong, quantia essa equivalente à moeda malaia no valor de RM381.385,00 (cfr. o facto provado 6); o casino em causa contactou por diversas vezes o arguido para pagar a dívida referida, mas sempre em vão (cfr. o facto provado 7); o arguido saiu de Macau em 16 de Maio de 2011, sem mais registos sobre a sua reentrada em Macau (cfr. o facto provado 8); em 11 de Julho de 2011, a assistente preencheu a data do cheque referido como sendo 11 de Julho de 2011 e preencheu também o montante de RM381.385,00 em moeda malaia, e apresentou o mesmo cheque a pagamento, o qual não foi pago com fundamento na liquidação total da conta já no dia 1 de Junho de 2011 (cfr. o facto provado 9).
Por isso, perante o quadro fáctico acima referido, analisado no seu conjunto, não é crível, para qualquer homem médio, que o arguido não tenha sabido da sua situação de devedor ainda para com a assistente, depois de ele ter assinado um “termo de responsabilidade” para com a assistente, com autorização conferida a esta para preencher a data e o montante do cheque em causa dado em garantia da linha de crédito a ele aberta para ele jogar no casino da assistente, e após ter ele levantado, por conta da assistente, um milhão de dólares de Hong Kong em fichas de jogo para jogar no casino da assistente.
Aliás, o facto de ele ter saído de Macau e o acto dele de liquidação total da conta do mesmo cheque já insinuam fortemente a sua intenção de frustrar a função de garantia desse cheque.
É, pois, de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, todo o objecto do processo para novo julgamento por um novo Tribunal Colectivo.
Com o assim concluído, já não é mister conhecer do outro vício assacado pela recorrente à decisão recorrida, qual seja, o de contradição insanável da fundamentação.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, reenviando o todo o objecto do processo para novo julgamento.
Sem custas no presente recurso.
Macau, 18 de Julho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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