Processo n.º 235/2018
(Autos de recurso cível)
Data: 18/Julho/2019
Descritores: Execução específica
Exercício do direito de preferência
Litisconsórcio necessário
SUMÁRIO
A decisão produz o seu efeito útil normal quando regule definitivamente a situação concreta sujeita a apreciação judicial. Sempre que, por não intervirem certas pessoas, seja abalada essa estabilidade que se procura e se deseja, deixando a porta aberta à possibilidade de outros interessados na mesma relação jurídica suscitarem nova demanda, em que poderão obter decisão diferente, o litisconsórcio impõe-se como obrigatório.
O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes.
Para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal, no sentido de obter regulamentação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido de execução específica da metade indivisa do imóvel requerido pelo promitente-comprador, há-de citar o comproprietário da outra metade indivisa do prédio, para, querendo, intervir na acção com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo n.º 235/2018
(Autos de recurso cível)
Data: 18/Julho/2019
Recorrente:
- A (Interessada)
Recorrido:
- B (Autor)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, foi julgada parcialmente procedente a acção intentada pelo Autor B (doravante designado por “recorrido”) contra a Ré C, declarando a execução específica do contrato-promessa referente a metade indivisa do direito de propriedade do imóvel n.º XXXX.
Vem depois a interessada A (doravante designada por “recorrente”) alegar ser comproprietária da outra metade indivisa do imóvel, e interpor recurso jurisdicional para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Vem o recurso interposto da sentença que decidiu julgar parcialmente a acção de execução específica e, substituindo-se à Ré C, emitiu a declaração negocial do faltosa-ré no sentido de vender ao Autor B metade indivisa do prédio urbano sito em Macau na Rua dos XXXX, n.º 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número XXXX (fls. 5 v do Livro B24).
II. Da certidão de registo predial de fls. 503 a 508 vê-se que a aqui Recorrente é dona e legítima proprietária, com registo de aquisição a seu favor devidamente inscrito (cfr. inscrição n.º XXXXXXG), de metade do sobredito prédio sito na Rua dos XXXX n.º 21 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º XXXX, sendo por isso preferente legal.
III. A prolação da sentença de execução específica nos presentes autos esvazia completamente não só o conteúdo essencial do direito de preferência legal da recorrente, como, pior, desmembra (fáctica e juridicamente) o direito de compropriedade que precede aquele (o direito de preferência legal).
IV. A noção de terceiros juridicamente interessados pela prolação de uma sentença constitutiva de execução específica foi delineada com a perspectiva de delimitar os casos que justificassem uma intervenção acessória de terceiro (através da consagração do direito ao recurso, como o previsto no art.º 585º, n.º 2, do Código de Processo Civil) perante um perigo real ou mera ameaça de um efeito jurídico desvantajoso que não fosse derivado do caso julgado, mas de um efeito constitutivo emergente da prolação de uma sentença constitutiva de execução específica.
V. A este respeito refere-se que a noção de terceiro juridicamente interessado e afectado pela sentença constitutiva de execução específica reporta-se àquelas situações, como a dos presentes autos, em que a sentença não vincula um terceiro (neste caso, a recorrente e preferente legal) como regulamentação formal-autoritária de uma relação jurídica, mas apenas como efeitos-consequência (in Folge der Wirkungen) para uma das partes, ou como efeitos reflexos, que se fazem valer na pessoa de um terceiro, de um facto que gera obrigações ou destrói direitos ou restringe o gozo dos mesmos.
VI. No caso concreto, a prolação da sentença constitutiva de execução específica esvazia, inutiliza e desmembra, na prática, quer o direito de compropriedade, quer o direito de preferência legal da recorrente.
VII. Porquanto, não é o caso julgado que se repercute desvantajosamente sobre a esfera de terceiro (a recorrente e preferente legal), mas sim o “facto-sentença constitutiva de execução específica”, na medida em que do conteúdo material dessa sentença emerge, directa e reflexamente, um efeito juridicamente desvantajoso ou materialmente injusto que esvazia, subtrai, e inutiliza o conteúdo essencial do direito de compropriedade (art.º 6º, da Lei Básica, art.º 1299º, n.º 1 do Código Civil) e, inerentemente, do direito de preferência legal da recorrente.
VIII. Quer dizer: a sentença que julgue procedente uma acção de execução específica, ainda prioritariamente registada, produz um efeito substantivo em relação a um terceiro juridicamente interessado (como a recorrente e preferente legal), titular de uma relação real incompatível e independente em face da relação obrigacional sobre a qual recai a sentença que julgue procedente a acção, na medida em que os efeitos substantivos que a sentença constitutiva de execução específica produz são juridicamente eficazes em relação à recorrente e preferente legal, implicando, na prática, um condicionamento, limitação e um esvaziamento do direito legal de preferência.
IX. Por essa razão, a sentença constitutiva de execução específica, sendo juridicamente lesiva da esfera jurídica da recorrente, na medida em que a compropriedade e a correspectiva preferência legal configuram, em si mesmo tomadas, uma relação real incompatível e independente em face da relação sobre a qual recai a sentença que julgue procedente a acção de execução específica, nunca deveria ter sido proferida nos presentes autos.
X. Ao invés, deveria a recorrente e preferente legal ter sido demandada, em litisconsórcio necessário passivo (art.º 61º, n.º 2 do Código de Processo Civil), para exercer, nos presentes autos, o seu direito de preferência legal e consignar em depósito, nos 8 dias seguintes ao despacho que ordene a citação, o preço devido, acrescido das despesas, quando e na medida em que o beneficiem, com emolumentos notariais e de registo e com impostos devidos pela aquisição (art.º 1309º, n.º 1 do Código Civil).
XI. A prolação da douta sentença constitutiva de execução específica ao esvaziar completamente o estatuto real inerente à compropriedade (art.º 1299º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), implicou, natural e necessariamente, a perda de chance processual de exercer a preferência legal inerente à sua quota ideal de compropriedade (art.º 1308º, n.º 1 do Código Civil).
XII. O raciocínio jurídico acima expendido significa que se deve, na esteira do que vem defendendo a doutrina, convolar a própria chance processual num direito. Por conseguinte, todo o fundamento da perda de chance processual passa a radicar no próprio Direito reconhece como dano não apenas a perda de chance, mas a simples criação de um risco.
XIII. No caso concreto, a chance processual radicaria no próprio direito substantivo de propriedade da quota ideal referente à metade indivisa em causa nos presentes autos: é desse direito substantivo de compropriedade (da quota ideal da metade indivisa do prédio urbano em discussão) que resulta, ao nível processual, o direito à chance processual da recorrente de exercer o direito de preferência legal nos presentes autos, que foi subtraído pela douta sentença recorrida (art.º 36º, n.º 1, da Lei Básica de Macau, art.º 1º, n.º e 2, do Código de Processo Civil; art.º 1309º, n.º 1 do Código Civil).
XIV. Na medida em que a protecção das chances é importante para a protecção dos direitos finalisticamente colocados em perigo (o de exercício do direito de preferência legal), pois em casos em que só resta uma chance, não há mais nada a perder senão a própria chance processual de exercer esse direito legal de preferência.
XV. Este é a razão pela qual a doutrina encara como muito importante que o Direito proteja estas chances processuais. O Direito das Obrigações e os Direitos Reais da Região Administrativa Especial de Macau não podem ficar aquém dessa protecção. Se ao ordenamento jurídico da Região Administrativa Especial de Macau não proteger adequadamente os comproprietários contra a perda de chances processuais de exercer efectivamente os seus direitos legais de preferência fica aquém das exigências constitucionais.
XVI. Por conseguinte, sobre o tribunal recorrido impendia, nos termos acima frisados, um dever de protecção do direito fundamental da recorrente de acesso ao direito e aos tribunais (art.º 36º, n.º 1, da Lei Básica de Macau) que funda, a montante, o direito à chance processual de exercer, nos presentes autos, o seu direito legal de preferência (art.º 1º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil; art.º 1308º, n.º 1 do Código Civil).
XVII. Salvo o devido respeito, que é muito, a douta sentença recorrida olvidou o essencial: o contrato-promessa celebrado entre o Autor e a Ré continha um termo essencial absoluto, que se consubstanciou na aposição de um prazo de 90 dias a contados a partir da data em que a Ré adquiriu o direito de propriedade do prédio urbano n.º XXXX; data a partir da qual (17 de Fevereiro de 2016) se venceu automaticamente a obrigação da Ré de celebrar o contrato prometido (a realização da escritura pública referente ao prédio n.º XXXX). A partir dessa data, a mora da Ré converteu-se automaticamente em incumprimento definitivo, através da resolução automática do contrato-promessa, dispensado, inclusivamente, a interpelação admonitória.
XVIII. Compreende-se porquê: a distinção doutrinal entre uma (termo essencial relativo), e outra (termo essencial absoluto), não é despicienda: à luz do primeiro, a fixação de um prazo não conduz automaticamente à resolução do contrato, apenas conferindo ao credor a faculdade de resolver o contrato, perfectibilizando, por essa via, o incumprimento definitivo; à luz do segundo, a fixação do prazo pelo credor ao devedor para a realização de uma prestação de dare (é o caso), quando acompanhada da violação do mesmo prazo peremptório pelo devedor conduz (fatal e necessariamente) ao incumprimento definitivo, e, por aí, à resolução do contrato.
XIX. Basta revisitarmos a matéria de facto assente para, de forma clara e inequívoca, aferirmos que o Autor e a Ré celebraram, efectivamente, um contrato-promessa de compra e venda do prédio urbano n.º XXXX sujeito a um termo essencial absoluto, que converte automaticamente a mora da Ré em incumprimento definitivo e dispensa a interpelação admonitória: “conforme a matéria assente, ficou estipulado que a escritura pública de compra e venda prometida seria celebrada até 90 dias depois de a Ré ter adquirido o direito de propriedade do prédio n.º XXXX” (p. 12), “tendo-se vencido essa obrigação de celebração do contrato definitivo no dia 17 de Fevereiro de 2016” (p. 15).
XX. Assim, só no primeiro caso (termo essencial relativo) e nunca no segundo (termo essencial absoluto), é necessária a interpelação admonitória do credor ao devedor, para converter-se a mora em incumprimento definitivo (Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/01/2011, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt).
XXI. Na verdade, como ensina o Professor Vaz Serra – Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 110, págs. 326 e 327: “A estipulação de um prazo para execução de um contrato não tem sempre o mesmo significado. Pode querer dizer que, decorrido o prazo, a finalidade da obrigação não pode já ser obtida com a prestação ulterior, caducando por isso o contrato; mas pode também ser apenas uma determinação do termo que não obste à possibilidade de uma prestação ulterior, que satisfará ainda a finalidade da obrigação, caso em que o termo do prazo não importa a caducidade do contrato, mas tão somente a atribuição ao credor do direito de resolvê-lo”.
XXII. Conforme refere Brandão Proença: é natural e normal que os promitentes incluam, no contrato, uma cláusula de termo, estipulada, em regra e implicitamente, a favor de ambos, o que significa fazer recair sobre os contraentes, não só o dever de cooperação para a marcação do dia, hora e local da celebração do contrato definitivo, na ausência da sua indicação, mas também uma presunção de culpa nesse incumprimento”.
XXIII. Ainda que assim não se entendesse (relativamente à clareza do termo essencial absoluto aposto contrato promessa celebrado entre o Autor e Ré, no que respeita à conversão automática da mora da Ré um incumprimento definitivo), sempre a mora da Ré se teria convertido em incumprimento definitivo, porquanto, resulta da própria sentença recorrida, que “mais está provado que a Ré foi interpelada pelo Autor, por várias vezes, para concluir as formalidades para a aquisição do prédio n.º 23 da Rua dos XXXX a fim de as partes puderem outorgar a escritura definitiva de compra e venda” (pp. 12-13).
XXIV. Também a esta luz é evidente que a mora da Ré se converteu em incumprimento definitivo, também por via da interpelação admonitória (art.º 797º, n.º 1, alínea b), do Código Civil); compreende-se porquê: a interpelação admonitória é uma declaração receptícia contém três elementos, inteiramente presentes na matéria assente a que aludem os presentes autos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se não ocorrer o adimplemento dentro desse prazo”.
XXV. Do raciocínio jurídico acima expendido decorre uma consequência lógica que a douta sentença recorrida poderia (e deveria) ter levado em conta: havendo incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte da Ré, o tribunal deveria ter condenado a Ré na restituição do sinal em dobro e não na execução específica, porque a isso se “opunha a natureza da obrigação assumida” pela Ré (art.º 820º, n.º 1, parte final do Código Civil), que consistia em adquirir a metade indivisa do prédio n.º XXXX, cuja compropriedade da quota ideal pertence à recorrente e preferente legal e que, por isso, não pode ficar juridicamente fraccionada e esvaziada no seu conteúdo essencial, em virtude da prolação da douta sentença de execução específica.
XXVI. Ainda que assim não se entendesse, existe abalizada doutrina e jurisprudência que entende, inclusivamente, que a restituição do sinal em dobro também é possível nos casos de mora.
XXVII. Decorre, igualmente, uma outra consequência lógica do raciocínio jurídico acima expendido, e que se encontra umbilicalmente interligado com a conversão da mora da Ré em incumprimento definitivo: a douta decisão recorrida não só deveria ter condenado a Ré na restituição do sinal em dobro, na medida em o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – princípio iura novit curia – art.º 567º, do Código de Processo Civil, como, e sobretudo, deveria ter procedido à citação da recorrente no sentido de esta exercer, nos presentes autos, o seu direito de preferência legal e consignar em depósito, nos 8 dias seguintes ao despacho que ordene a citação, o preço devido, acrescido das despesas, quando e na medida em que o beneficiem, com emolumentos notariais e de registo e com impostos devidos pela aquisição (art.º 1309º, n.º 1 do Código Civil).
XXVIII. Não tendo tal citação ocorrido nos presentes autos, deve a sentença de execução específica ser declarada ineficaz em relação à recorrente, devendo a mesma (sentença de execução específica) ser substituída por uma outra sentença que condene a Ré a restituir o sinal em dobro ao Autor, e, ao mesmo tempo, ordene a citação da recorrente para, nos presentes autos, e nos moldes acima referidos, para exercer o seu competente direito legal de preferência.
XXIX. Vislumbra-se, nesta sede processual, uma flexibilização do pedido em processo civil, que, segundo a doutrina mais recente, constitui um indisfarçável afloramento de um processo civil moderno, adaptável às particularidades do caso concreto, e que, funcionalmente orientado pelo princípio da economia processual, pelo princípio da garantia de acesso ao direito e aos tribunais (art.º 36º, n.º 1, da Lei Básica de Macau, art.º 1º, n.º 2, do Código de Processo Civil), pelo princípio da adequação formal (art.º 7º do Código de Processo Civil), e pelo princípio da materialidade subjacente, destina-se a tutelar e a resolver as questões de mérito dos destinatários últimos da administração da justiça civil: os residentes da Região Administração Especial de Macau.
XXX. Sendo certo que esta (administração da justiça civil) se pretende materialmente justa e célere e, sobretudo, respeitadora dos direitos fundamentais sociais dos residentes da Região Administrativa Especial de Macau, como o direito de propriedade, art.º 6º e 103º da Lei Básica de Macau, art.º 6º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
XXXI. Nem se diga, contra a solução jurídica acima ensaiada, a saber: i) a conversão da mora da Ré em incumprimento definitivo; ii) condenação da Ré na restituição do sinal em dobro ao Autor; iii) citação da recorrente, nos presentes autos, para à luz do princípio da celeridade e da economia processual (art.º 6º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil), exercer o seu direito legal de preferência (art.º 1309º, n.º 1 do Código Civil), não pode ser realizada neste processo, e que, como tal, a recorrente deveria intentar uma acção posterior de preferência (art.º 1309º, n.º 2 do Código Civil).
XXXII. Dizer isso significa olvidar, novamente, o essencial: o direito de preferência consiste na faculdade de adquirir certo bem, por parte de um sujeito, em detrimento de outro que manifeste idêntica pretensão. No caso da preferência legal, o direito de preferência não radica num clausulado contratual mas assenta, apenas, em prescrições normativas de um regime jurídico determinado. Deste modo, um sujeito é obrigado a dar preferência a outrem, não porque a isso se tenha vinculado, por meio de clausulado contratual mas porque um determinado regime jurídico o impõe: é o caso paradigmático da compropriedade (art.º 1299º, n.º 1 e 2, do Código Civil).
XXXIII. Compreende-se porquê: o direito de preferência legal visa tutelar, material e processualmente, o direito de propriedade dos titulares activos daqueles (os direitos preferência legal) afectados por vicissitudes exteriores e potencialmente lesivas do seu estatuto real: existe, claramente, um interesse público subjacente ao direito de preferência legal dos comproprietários, e que se traduz na tutela (também ela material e efectiva) que o ordenamento jurídico da Região Administrativa Especial de Macau confere ao direito de propriedade (art.º 1308º, n.º 1 do Código Civil, art.º 6º e 103º e ss da Lei Básica de Macau).
XXXIV. Por conseguinte: obrigar a recorrente e preferente legal, que já viu violada ou desrespeitada a sua posição jurídica através da mera celebração do contrato promessa de compra e venda entre o Autor e o Réu, a esperar pela efectiva alienação da metade indivisa do prédio urbano n.º XXXX (que foi posta em marcha com a sentença de execução específica proferida nos presentes autos), para poder reagir e lançar mão da acção de preferência (art.º 1309º, n.º 2 do Código Civil) é formalismo que não se vislumbra como justificar; devendo ser, por isso, a mera realização de um contrato-promessa ser facto constitutivo do exercício, nos presentes autos, do direito de preferência legal da recorrente.
XXXV. Por essa razão, o direito fundamental de propriedade da recorrente e preferente legal representa um entreposto de protecção do adquirido no passado contra a acção futura do legislador ou do julgador, na medida em que subordina a ideia da expropriação à ideia do domínio emitente do proprietário sobre todos os seus bens.
XXXVI. Com base na apontada conexão entre propriedade e liberdade, a garantia da propriedade (art.º 6 e 103º e ss da Lei Básica de Macau) há-de estruturar-se, pois, entre o respectivo fundamento na ideia de liberdade patrimonial e respectivas determinações ou características estruturais directamente resultantes da Lei Básica, por um lado, e a sua conformação pelo legislador, através das concretas posições jurídicas, por outro.
XXXVII. Assim, pode falar-se, neste âmbito, de uma consideração da propriedade como emanação da liberdade individual da recorrente e preferente legal, que justifica a respectiva tutela (art.º 6º e 103º e ss da Lei Básica de Macau), sempre que a intervenção modeladora do legislador ou, neste caso, do julgador (através da prolação de uma sentença constitutiva de execução específica), configure a derrogação do conteúdo essencial dos seus direitos sociais fundamentais, consistente num “direito à não eliminação de posições jurídicas).
XXXVIII. Esse “direito à não eliminação de posições jurídicas” da recorrente e preferente legal (o conteúdo essencial da sua quota ideal de compropriedade, respeitante à metade indivisa do prédio urbano número XXXX), traduzido quer no direito à intocabilidade jurídica da quota ideal do direito de compropriedade, quer, inerentemente, no exercício processualmente atempado do seu direito de preferência legal, foi violado, quer através da realização do contrato-promessa entre o Autor e a Ré, quer através da prolação da douta sentença constitutiva de execução específica.
XXXIX. Por conseguinte, em ambos os casos, e com articular intensidade jurídica nesta última, assiste-se a um total esvaziamento do conteúdo essencial da quota ideal de compropriedade da recorrente (art.º 1301º, n.º 1 e 2, do Código Civil) e, por isso, do seu direito social fundamental de propriedade (art.º 6º, art.º 103º e ss da Lei Básica de Macau), configurando, assim, uma vera expropriação de facto, é dizer, uma expropriação ilícita.
XL. Pelo exposto, a dimensão normativa do art.º 820º, n.º 1, e do art.º 1299º, n.º 1 do Código Civil, contidas na douta sentença recorrida, são materialmente violadores da Lei Básica quando interpretadas no sentido de que é juridicamente possível decretar uma sentença constitutiva de execução específica quando esteja processualmente em causa a metade indivisa de um prédio urbano, sujeita ao regime jurídico da compropriedade, sem que haja lugar à citação ou à provocação da intervenção processual da comproprietária e preferente legal no processo, tendo como objectivo o exercício efectivo do direito legal de preferência por parte daquela, por violação do art.º 6º e 103º da Lei Básica de Macau.
XLI. Deste modo, a douta decisão recorrida violou o art.º 6º, 36º, n.º 1, 103º, todos da Lei Básica de Macau, art.º 410º, 411º, 412º, 1299º, n.º 1 e 2, art.º 1301º, n.º 1 e 2, 1308º, n.º 1 e 2, art.º 1309º, n.º 1 e 2, todos do Código Civil, art.º 1º, n.º 1 e 2, art.º 6º, n.º 1 e 3, art.º 7º, 567º, todos do Código de Processo Civil de Macau, que devem ser interpretados no sentido de que a douta decisão recorrida violou, por ilegitimidade processual passiva – preterição do litisconsórcio necessário legal passivo – o direito legal de preferência da recorrente e colidiu com a Lei Básica por violação do direito de propriedade devendo, por isso, ser decretada ineficaz em relação à mesma (recorrente) e ser totalmente anulada.
XLII. Não tendo a recorrente sido citada e não tendo sido, igualmente, provocada a sua intervenção processual nos presentes autos, deve a sentença constitutiva de execução específica ser anulada por ilegitimidade processual passiva, na modalidade de preterição de litisconsórcio necessário legal passivo.
XLIII. Subsidiariamente, não sendo assim entendido, não tendo a recorrente sido citada e não tendo sido, igualmente, provocada a sua intervenção processual nos presentes autos, deve a sentença constitutiva de execução específica ser anulada por perda de chance processual de a recorrente exercer, nos presentes autos, o seu direito legal de preferência.
XLIV. Cumulativamente, deve a sentença constitutiva de execução específica ser declarada ineficaz em relação à recorrente, devendo a mesma (sentença constitutiva de execução específica) ser substituída por uma outra sentença que, em homenagem ao princípio iura novit curia; i) decrete a conversão automática da mora da Ré em incumprimento definitivo, por inobservância do termo essencial absoluto aposto no contrato-promessa celebrado entre o Autor e a Ré; ii) condene a Ré a restituir o sinal em dobro ao Autor; e, iii) em homenagem aos princípios da economia processual, adequação formal, celeridade processual e flexibilidade processual do pedido, ordene a citação da recorrente para, nos presentes autos, e nos moldes acima referidos, para exercer o seu competente direito legal de preferência.
XLV. Subsidiariamente, não sendo assim entendido, deve dimensão normativa do art.º 820º, n.º 1, e art.º 1308º, n.º 1 do Código Civil, contida na sentença constitutiva de execução específica, ser declarada violadora do conteúdo essencial do direito de propriedade da recorrente.
Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”
*
Ao recurso respondeu o Autor formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“i. Em termos resumidos, a recorrente começa por defender que a transmissão do imóvel resultante da sentença em crise, do qual é comproprietária, é incompatível com o direito legal de preferência do qual a recorrente é titular, porquanto se vê esvaziado com o efeito útil desse direito.
ii. Noutro passo, sustenta ainda a recorrente que ao ter preterido o litisconsórcio necessário passivo, a prolação da sentença resultou numa suposta “perda de chance” da recorrente, por esta se ver “impedida” de exercer o seu direito de preferência sobre a aquisição do imóvel.
iii. São três os tipos de fundamento para o litisconsórcio necessário: a lei, o negócio e a própria natureza da relação jurídica – art.º 61º do CPC.
iv. Conforme resulta da matéria factual vertida nos autos, a recorrente não é parte no negócio jurídico que lhe dá causa, visto que este se trata de um contrato-promessa de compra e venda, celebrado entre o autor – enquanto promitente-comprador – e a ré – enquanto promitente vendedora, relativo ao direito de propriedade do prédio nº XXXX, do qual esta é titular.
v. Também não se vislumbra nenhum normativo legal que imponha a demanda da recorrente, nem esta se integra no conceito de parte para efeitos de determinação de legitimidade processual – art. 58º do CPC – porquanto não integra a relação material controvertida, tal como foi configurada pelo autor.
vi. A recorrente entende que deveria intervir na acção por forma a permitir exercer o seu direito de preferência sobre o imóvel objecto da execução específica, o que significa, portanto, que supostamente não lhe restaria outra forma de o ver salvaguardado.
vii. Importa, porém, salientar que a execução específica peticionada não incide sobre o direito de propriedade da recorrente, mas sim e tão só do da ré, pelo que não está em causa qualquer acto que afecte a titularidade da recorrente sobre imóvel.
viii. É certo que a procedência da execução específica peticionada, que decorre de uma obrigação contratual entre o autor e a ré – da prestação do facto que tem por objecto a celebração do contrato de compra e venda (art. 404º, nº 1 CC) – resulta na violação do direito de preferência que a lei atribui à recorrente.
ix. Porém, o direito de preferência somente nasce na esfera jurídica do preferente no momento da prolação da sentença que se substitui à promitente-vendedora na declaração de transmissão da propriedade para o promitente-comprador, e não pela mera celebração do contrato-promessa de compra e venda.
x. Pelo que, em sede de efeitos do contrato-promessa per se, não podem extrair-se consequências relevantes para o exercício do direito de preferência da recorrente.
xi. É um facto que, conforme resulta dos autos, não foi efectuada a comunicação à titular do direito de preferência – aqui a recorrente – para exercer o seu direito potestativo, no âmbito da fase da “relação jurídica complexa, integrada por direitos de crédito e direitos potestativos, que visam proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição, por via negocial, do direito (…)”, conforme refere o Prof. Henrique Mesquita (“Obrigações Reais e Ónus Reais”, pag. 225 e ss).
xii. É, porém, indiferente para os efeitos dos presentes autos saber se foi ou se deveria ter sido efectuada a comunicação do projecto de venda, concedendo a oportunidade ao preferente de exercer o seu direito – art. 410º, n.º 1 do CC.
xiii. Essa relação jurídica entre o preferente o obrigado, inicia-se no momento em que esse decide realizar o negócio de alienação e desenvolve-se até à respectiva efectivação, fase durante a qual o preferente goza, sucessivamente, do direito (creditório) à notificação do negócio projectado, do direito (potestativo) de declarar preferir e do direito (creditório) de exigir que consigo seja realizado o contrato projectado.
xiv. Do que acima fica dito resulta que, enquanto o obrigado não efectuar a notificação para o preferente preferir ou enquanto o negócio de venda projectado se não efectivar, o preferente legal não pode invocar ou exercitar qualquer direito.
xv. Efectivamente, até que ocorra um desses factos ou situações, através dos quais adquire o respectivo direito subjectivo, o preferente legal mantém-se tão só como detentor da expectativa que a norma legal lhe atribui – a de virem a verificar-se essas condições, que fazem surgir o direito a favor do preferente (no caso de alienação, o direito potestativo de substituição através da acção de preferência) – vd. H. Mesquita, cit., 211, nota 132, RLJ, 126º-62 e 132º-191 e ss.
xvi. Portanto, o direito de preferência da recorrente nasceu no momento da prolação da sentença e não com a propositura da acção, ou em qualquer momento intermédio, como parece a recorrente fazer crer.
xvii. A sentença recorrida, pela qual se operou a modificação jurídica substantiva do direito patrimonial sobre o imóvel estende-se à recorrente, tal como a qualquer terceiro, no plano da eficácia erga omnes que confere.
xviii. Já quanto à recorrente em particular, a sentença recorrida confere, no plano obrigacional, a legitimidade para exercer o seu direito de preferência, o qual não poderá deixar de ocorrer no âmbito da acção própria prevista na lei.
xix. Ou seja, o efeito útil da acção não só é alcançado em toda a sua plenitude, como ainda constitui para a recorrente a efectiva constituição do direito de preferência, que terá necessariamente de ser obtido por intermédio da acção de preferência prevista no art. 1309º, do CC.
xx. Assim, contrariamente à tese proclamada pela recorrente, a prolação da sentença recorrida não resulta em qualquer preterição de litisconsórcio necessário ou em “esvaziamento” do direito de preferência da recorrente e muito menos na perda da oportunidade para o exercício dessa preferência.
xxi. Isto porque a recorrente tem ao seu dispor um mecanismo legal para o efeito de exercício do direito de preferência, após a transmissão do direito de propriedade de quota sobre imóvel do qual é comproprietária.
xxii. Tal mecanismo constitui uma segunda fase da relação jurídica entre o obrigado e o preferente, em que, por via da omissão da primeira fase – onde obrigado incumpriu a obrigação de comunicação do projecto de venda -, o preferente “passa a ter o direito potestativo de, através da acção de preferência, se substituir ou sub-rogar ao adquirente, no contrato celebrado com o obrigado à prelação”, direito que não incide directamente sobre a coisa transmitida, mas sobre o contrato (cfr. ob. cit., 227).
xxiii. Efectivamente, é pacífico que o titular do direito de preferência só pode usar da acção prevista no art. 1309º, do CC se a coisa tiver já sido alienada a terceiro, com violação da obrigação de dar preferência, também o sendo que é sempre elemento da causa de pedir dessa acção a transmissão da propriedade da coisa (cfr. C. Lacerda Barata, “Da Obrigação de Preferência”, 154; ac. STJ, 5/3/96, BMJ-455º-389; RP, 11/3/96, CJ, XXI-II-190).
xxiv. Aliás, acrescenta o acórdão do STJ citado que o titular do direito só poderá lançar mão da acção de preferência “se a coisa objecto do contrato tiver sido alienada a terceiro (…) não colhendo a pretensão de equiparar o contrato-promessa de compra e venda ao contrato de compra e venda”, uma vez que aquele não tem a virtualidade de transferir a propriedade, já que se trata de contrato de prestação de facto, que pode não ser cumprido.
xxv. Não é, pois, desde logo, legalmente passível, quer do ponto de vista substantivo, quer do ponto de vista da lei processual que a recorrente pretenda promover o seu direito de preferência por intermédio destes autos, o que sempre constituiria um expediente ilegal para alcançar tal pretensão.
xxvi. Por tudo aquilo que vem acima exposto, resulta evidente que a recorrente não tem qualquer interesse processual nestes autos e que utiliza um meio impróprio para obter, não colhendo, por isso, a tese da recorrente.
xxvii. A recorrente assenta ainda o seu recurso em erro na qualificação jurídica do clausulado contratual, concluindo pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado entre o autor e a ré – presumindo-se que por parte desta, embora a recorrente não o tenha expressamente referido -, o que conduz à “resolução automática do contrato” e consequente obrigação de devolução do sinal em dobro.
xxviii. Com efeito, entende a recorrente que o prazo previsto no contrato, de 90 dias para realizar o contrato de compra e venda prometido, após a aquisição do direito de propriedade, se trata de um “termo essencial absoluto”, “e que a partir dessa data, a mora converteu-se automaticamente em incumprimento definitivo, através da resolução automática do contrato-promessa, dispensando inclusivamente, a interpelação admonitória”.
xxix. O presente recurso tem por objecto a decisão recorrida, na medida em que supostamente afecta os interesses jurídicos da recorrente, in casu, o seu direito de preferência na transmissão do imóvel – art. 585º, n.º 2 do CPC.
xxx. Não se antevê que interesse possa a recorrente ter na execução do contrato-promessa discutido nos autos, ou na sua interpretação e qualificação jurídica, porquanto nem sequer assume qualquer posição de contraente, nem consta que esteja sub-rogada nos direitos da ré – embora seja manifesto seu interesse paralelo de protelar os efeitos da sentença recorrida.
xxxi. Ou seja, qualquer eventual erro na interpretação ou qualificação jurídica da vontade das partes postada no contrato aqui em apreço, tendo efeitos meramente entre as partes contratantes, somente por estas – ou a quem tenham sub-rogado o direito – pode ser invocado.
xxxii. Não tendo a recorrente demonstrado (ou sequer invocado) interesse na vigência ou execução do contrato, falta-lhe interesse e legitimidade processual para arguir qualquer erro de matéria de facto da sentença recorrida, e como tal, para recorrer sobre esta matéria.
xxxiii. Sendo a aquisição do prédio aludido um acontecimento futuro e incerto – não havia certeza de quando e se a aquisição do prédio viesse a ocorrer, embora fosse da vontade das partes – constitui uma condição, pelo que jamais poderia aquela cláusula contratual constituir num termo – art. 263º e art. 271º, ambos do CC.
xxxiv. Resulta evidente que as partes pretenderam que o prazo para a realização do negócio prometido somente começasse a contar a partir do momento em que aquela condição também não poderia ser qualificada como resolutiva, mas sim, suspensiva.
xxxv. Acresce que, como é sabido, são fundamentalmente três as formas de cessação de um contrato: a caducidade, a denúncia e a resolução.
xxxvi. No que respeita à resolução, que é aquela invocada pela recorrente, a mesma só pode operar mediante comunicação da parte não faltosa à parte incumpridora – art. 430º, n.º 1, do CC. -, salvo casos em que a lei imponha que seja declarada por tribunal.
xxxvii. Não existe, portanto, no ordenamento jurídico de Macau, a figura de “resolução automática”, aludida pela recorrente.
xxxviii. Ainda que se estivesse perante uma condição resolutiva tácita – o que não é o caso -, prevista nos artigos 799º e 780º do CC, caberia ao credor invocar a impossibilidade da realização da prestação imputável ao devedor, e sempre comunicando a resolução contratual à parte contrária.
xxxix. E acrescente-se ainda que, havendo prazo fixado para a realização da prestação, o seu incumprimento não gera por si só o incumprimento definitivo do contrato, mas tão-somente a mora simples ou inadimplemento do cumprimento, pelo que nem se compreende em que moldes se sustenta a recorrente para afirmar que “a partir dessa data, a mora converteu-se automaticamente em incumprimento definitivo, através da resolução automática do contrato-promessa”, quando, seguindo o seu raciocínio, a ré nem sequer esteve em mora.
xl. Por outro lado, nem poderia, como é óbvio, ser a própria devedora – neste caso, a ré – a invocar a resolução do contrato com fundamento no seu próprio incumprimento, o que constituiria uma aberração jurídica e incorreria numa situação de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium…
xli. Ora, nem a ré – que não podia – nem o autor – na qualidade de credor – comunicaram ou invocaram a resolução do contrato-promessa, conforme resulta da matéria factual vertida nos autos, pelo que nem pode nesta sede de recurso ser a mesma invocada!
xlii. Aliás, o próprio pedido de execução específica nestes autos só demonstra que o autor não considerou resolvido por definitivamente incumprido o contrato-promessa, quanto à quota do direito de propriedade da ré no imóvel em causa, e pretende, pelo contrário, o seu cumprimento.
xliii. Finalmente, considera a recorrente que a improcedência da tese formulada nas suas alegações de recurso constitui uma violação do direito de propriedade consagrada, antes de mais, na própria Lei Básica.
xliv. O princípio da economia processual proclamado pela recorrente, para defender a sua citação nos autos, por forma a exercer (eventualmente) o seu direito de preferência, não tem a virtude de permitir quer ao tribunal quer às partes desviarem ou “esticarem” o formalismo processual de forma a acomodar esse exercício de direito de preferência, sob pena de violação do princípio do dispositivo e do princípio do contraditório.
xlv. Conforme já aqui se explanou, a recorrente não poderia – e não pode – vir invocar um direito que não detém, i.e. o seu direito de preferência não se materializa em direito potestativo antes da comunicação do obrigado para o exercício do direito de preferência, ou da própria transmissão da titularidade do imóvel.
xlvi. Ou seja, ainda que fosse admissível pela lei adjectiva acomodar a pretensão da recorrente em ser citada para exercer um direito de preferência, tal não seria sequer possível atendendo a que esse direito de exercer potestativamente a preferência nem sequer existia, por falta de comunicação para esse exercício de preferência.
xlvii. Invocar, como a recorrente faz, que caberia ao tribunal efectuar tal comunicação ao preferente seria uma absoluta violação dos mais elementares princípios do processo civil como também um desvio de todo o instituto jurídico em causa.
xlviii. Efectivamente, nem mesmo a doutrina e jurisprudências referidas pela recorrente sustentam que “a mera realização de um contrato-promessa ser facto constitutivo do exercício (…) do direito de preferência”, transcrevendo-se a título de exemplo parte do teor do acórdão do STJ de 02/03/2004, segundo o qual, “a promessa de venda de prédio rústico a um terceiro não confinante não integra o pressuposto do exercício do direito legal de preferência, mesmo havendo procuração irrevogável a favor do promitente-comprador, pois o representado mantém a titularidade da posição jurídica”.
xlix. Pelo exposto, não tem qualquer sustentação jurídica e legal a tese da recorrente, que, aliás, resulta contraditória entre si.
l. Ao pretender ver anulada a sentença recorrida e substituída por outra que condene a ré à devolução do sinal em dobro ao autor, e ao mesmo tempo ordene a citação da recorrente para exercer o seu direito legal de preferência verifica-se uma incompatibilidade do direito invocado.
li. Isto porque, caso fosse declarado a resolução do contrato-promessa de compra e venda, não se formaria na esfera jurídica da recorrente o direito potestativo de exercer a preferência, pelo que não estaria ao seu alcance exigir o seu exercício de preferência.
lii. Por outro lado, como já se disse, caso não fosse transmitida a titularidade do direito de propriedade da metade do prédio, também não se formaria na esfera jurídica da recorrente também o direito potestativo de exercer a preferência, pelo que aí também não estaria ao seu alcance exigir o seu exercício de preferência, visto que antes dessa fase, esta somente possui um direito de crédito que deve ser exercido nos moldes e nas instâncias próprias.
liii. A exercitabilidade do direito de prelação através da acção de preferência pressupõe, como do preceito resulta, a violação da obrigação de preferência, com a consumação da alienação sem satisfação do dever de comunicação do projecto da venda e cláusulas do contrato ou mediante irregular cumprimento desse dever (art. 410º, n.º 1 do CC).
liv. Surge, então, o direito de o preferente, através da acção, obter a substituição coerciva da posição de comprador no contrato celebrado com o terceiro adquirente, em violação dos pressupostos legais condicionantes do nascimento do direito – os do quadro legal que, em abstracto, prevê o direito de preferência associado à titularidade do direito real e a obrigação de comunicação.
lv. Em suma, a oportunidade de exercício do direito de preferência da recorrente não se encontra esgotado pela prolação da sentença recorrida, ocorrendo precisamente o contrário, isto é, passou a titular de um direito potestativo na preferência e a estar legitimada a exercê-lo por via da acção própria de preferência.
Termos em que, e com o douto suprimento de V. Exas, deverá o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença proferida pelo Tribunal de Judicial de Base nos termos decididos.”
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
No dia 2 de Maio de 2007, o autor, como segundo outorgante, celebrou sob a forma escrita, com a ré, como primeira outorgante, um acordo através do qual a última prometeu vender ao primeiro, pelo preço de HK$4.850.000,00, dois prédios urbanos, um sito em Macau na Rua dos XXXX, nº 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX a fls. 5v do livro B24 (alínea A) dos factos assentes).
É o seguinte o teor parcial do referido acordo (alínea B) dos factos assentes):
A 1ª outorgante compromete-se a vender os imóveis urbanos situados na ilha da Taipa, na Rua dos XXXX No. 21 (descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº XXXX) e na Rua dos XXXX No. 23, na Região Administrativa Especial de Macau, ao 2º outorgante que as aceitam. O 2º outorgante compromete-se a comprar. Ambos os outorgantes assumem e estipulam as seguintes cláusulas:
1. O preço estipulado dos ditos imóveis urbanos é de quatro milhões e oitocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (HK$4.850.000,00).
2. Forma de pagamento:
a. Na data de celebração do presente contracto, o 2º outorgante paga o sinal de quatrocentos mil dólares de Hong Kong (HK$400.000,00) à 1ª outorgante;
b. O montante remanescente de quatro milhões e quatrocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (HK$4.450.000,00), será pago por livrança de um banco de Macau, dentro de 90 dias, após a 1ª outorgante resolver os problemas de direito de propriedade do imóvel No. 23 da Rua dos XXXX e os respectivos problemas de arrendamento e desocupação.
3. Quando o 2º outorgante realizar o pagamento referido na alínea b) da cláusula 2, a 1ª outorgante terá de assegurar:
a. O pagamento total de todas as dívidas dos referidos imóveis urbanos (incluindo foro, contribuição predial, despesas de condomínio, despesas de água, despesas de electricidade … … etc.);
b. Cancelamento de todos os encargos e contrato de arrendamento que incidem nos imóveis em causa;
c. Celebração da escritura de compra e venda para registar os imóveis vendidos em nome do 2º outorgante; e
d. Entrega devoluta dos respectivos imóveis urbanos ao 2º outorgante.
4. Após celebração … .
5. Todas as respectivas despesas … .
6. Como a 1ª outorgante a fim de obter a qualidade de titular do direito de propriedade da Rua dos XXXX No. 23, tem uma acção de usucapião sobre o dito imóvel, a 1ª outorgante e o 2º outorgante concordaram que caso a acção por improcedência não conseguir obter a qualidade de titular do direito de propriedade, o 2º outorgante pode optar por cancelar o presente contrato e receber incondicionalmente o sinal na íntegra. A 1ª outorgante e o 2º outorgante desistem mutuamente do direito de pedir indemnização.
7. A morada … .
8. Às situações não previstas … .
9. O presente contrato foi estipulado voluntariamente e com plena concordância da 1ª outorgante e do 2º outorgante e feito em triplicado; … .
Macau, 02 de Maio de 2007.
(em manuscrito): O preço de venda dos imóveis situados na Rua dos XXXX No. 21 é de dois milhões e oitocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong, Rua dos XXXX No. 23 é de dois milhões de dólares de Hong Kong.
Na sequência da celebração do referido acordo, o autor pagou à ré, a título de sinal e pagamento parcial do preço, a quantia de HK$400.000,00 (alínea C) dos factos assentes).
A escritura de compra e venda ainda não foi outorgada (alínea D) dos factos assentes).
A ré tem inscrita a seu favor metade indivisa do prédio urbano situado no número 21 da Rua dos XXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (alínea E) dos factos assentes).
A Ré tem também inscrita a seu favor metade indivisa do prédio urbano situado no número 26 da Rua dos XXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (alínea F) dos factos assentes).
Autor e Ré acordaram que a escritura pública de compra e venda dos referidos prédios nºs 21 e 23 da Rua dos XXXX, descritos na CRP sob os n.ºs XXXX e XXXX, seria celebrada até 90 dias depois de a Ré ter adquirido o direito de propriedade do imóvel com o n.º 23 da Rua dos XXXX e depois da resolução do problema de arrendamento deste prédio (resposta aos quesitos 2º e 9º da base instrutória).
A Ré foi interpelada pelo Autor, por várias vezes, para concluir as formalidades para a aquisição do prédio n.º 23 da Rua dos XXXX a fim de as partes puderem outorgar a escritura definitiva de compra e venda (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
Em momento algum o Autor pretendeu comprar o prédio urbano com o n.º 26 da Rua dos XXXX descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
Mas antes pretendeu comprar os prédios sitos em Macau na Rua dos XXXX n.º 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 5v do livro B24 e o prédio contíguo sito na Rua dos XXXX com o n.º 23, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX, o qual anteriormente correspondia ao n.º 22 (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
Apesar de a Ré constar no registo predial como proprietária de 1/2 indivisa do prédio com o n.º 26 da Rua dos XXXX, descrito na CRP sob o nº XXXX, este imóvel não lhe pertence (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
Foi intenção do Autor prometer comprar, e intenção da Ré prometer vender, os dois prédios contíguos que correspondem aos nºs 21 e 23 da Rua dos XXXX, descritos na CRP, o primeiro sob o nº XXXX e o segundo sob o nº XXXX (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
O imóvel com o n.º 26 da Rua dos XXXX descrito na CRP sob o n.º XXXX, estava erradamente inscrito a favor da Ré e do D (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
*
Comecemos pela questão da ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário.
Coloca-se a questão de saber se a recorrente, sendo comproprietária da metade indivisa do imóvel, deveria ser citada para a acção por forma a exercer o seu direito de preferência legal, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Dispõe o artigo 61.º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1. Se a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários sujeitos da relação material controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2. É igualmente necessária a intervenção de todos os sujeitos quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal; a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes sujeitos, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.”
Segundo esse artigo, há situações em que é obrigada a intervenção de todos os sujeitos interessados na relação material controvertida, sob pena de ilegitimidade de parte.
Como observam Cândida Pires e Viriato Lima1, “Esta classificação tripartida pode suscitar a seguinte observação: a necessidade de obtenção de uma decisão una em face de todos os interessados – que está na base da exigência da intervenção de todos eles no processo -, quando esta exigência é decretada pela lei, resulta explicitamente dos seus comandos; enquanto que, nos casos previstos no n.º 2 do artigo, aquela mesma necessidade retira-se implicitamente das normas jurídicas substantivas que definem a natureza e o regime da relação material litigada. O que permite afirmar que, afinal e em rigor, litisconsórcio necessário legal e litisconsórcio necessário natural se integram numa mesma categoria. Outra categoria será a do litisconsórcio necessário convencional, expressão da vontade das partes.”
No caso vertente, trata-se de uma acção de execução específica intentada pelo promitente-comprador ora Autor contra a promitente-vendedora C (Ré nos autos), sendo esta titular de metade indivisa do imóvel n.º XXXX melhor identificada nos autos.
Enquanto titular de outra metade indivisa do mesmo imóvel, a recorrente não teve qualquer intervenção no contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o Autor B e a Ré C.
De facto, inexistindo norma legal que imponha a intervenção da recorrente na acção de execução específica, nem que as partes outorgantes do contrato-promessa tenham acordado a necessidade de intervenção da recorrente nessa mesma acção, resta apreciar se a intervenção da recorrente deriva da própria natureza da relação jurídica, ao abrigo do n.º 2 do citado artigo 61.º do CPC.
Ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora2 que “Há realmente situações em que, pela natureza da relação substantiva sobre a qual recai a acção, a falta de algum ou alguns dos interessados impede praticamente a decisão que nela se proferisse de produzir qualquer efeito útil.”
Ainda sobre a locução “efeito útil normal”, Rodrigues Bastos3 diz o seguinte: “A decisão produz o seu efeito útil normal quando regule definitivamente a situação concreta sujeita a apreciação judicial. Sempre que, por não intervirem certas pessoas, seja abalada essa estabilidade que se procura e se deseja, deixando a porta aberta à possibilidade de outros interessados na mesma relação jurídica suscitarem nova demanda, em que poderão obter decisão diferente, o litisconsórcio impõe-se como obrigatório.”
Dispõe o n.º 1 do artigo 1308.º do Código Civil que “O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes.”
No caso vertente, não obstante que a recorrente não é parte outorgante do contrato-promessa, a verdade é que a procedência da acção de execução específica depende de a recorrente, na qualidade de preferente legal, não vir exercer o seu direito de preferência na compra do prédio.
Nestes termos, para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal, no sentido de obter regulamentação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido de execução específica da metade indivisa do imóvel n.º XXXX, há-de mandar citar a recorrente, na qualidade de comproprietária da outra metade indivisa do prédio, para, querendo, intervir na acção com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel.
Uma vez verificada a falta de citação da recorrente na acção, há ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário natural e, em consequência, temos que anular tudo o que se tenha processado depois das citações, nos termos da alínea a) do artigo 143.º do Código de Processo Civil.
Desta forma ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente C, anulando tudo o que se tenha processado depois das citações.
Custas pelo recorrido em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
***
RAEM, 18 de Julho de 2019
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Código de Processo Civil de Macau Anotado e Comentado, Volume I, FDUM, 2006, pág. 184 e 185
2 Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 167
3 Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 3.ª edição, pág. 77
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Recurso Cível 235/2018 Página 38