Processo nº 487/2019 Data: 27.06.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Absolvição.
Perda de objectos.
Pressupostos.
Quantia monetária.
SUMÁRIO
1. Uma “decisão absolutória” não implica que os bens ao arguido apreendido sejam – necessáriamente – devolvidos, afastada estando uma declaração da sua perda a favor da R.A.E.M..
2. Porém, atento o estatuído no art. 101° do C.P.M., e em causa estando “notas genuínas (de dólares americanos)”, motivos não existem para se entender que “pela sua natureza ou circunstâncias do caso”, sejam de se ter como passíveis de “por em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem pública, ou de oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 487/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 15.03.2019 decidiu-se absolver A, do crime de “passagem de moeda falsa”, (p. e p. pelo art. 255°, n.° 1, al. a) do C.P.M.), que lhe era imputado, declarando-se, porém, o perdimento de diversos bens que lhe tinham sido apreendidos.
Inconformado com o assim decidido, o arguido recorreu.
Motivou para produzir as conclusões seguintes:
“1ª O presente recurso vem interposto do douto Acordão proferido nos vertentes autos, circunscrito ao segmento do mesmo em que declarou perdidos a favor da RAEM os objectos apreendidos ao Arguido, e destruídos após o trânsito em julgado da sentença;
2ª Entende o Recorrente que o referido Acordão do douto Tribunal a quo deverá ser revogado na parte em que declarou perdidos a favor da RAEM os objectos apreendidos ao ora Recorrente, por resultar claramente que a decisão recorrida violou o disposto no artigo 101°, n.° 1 do Código Penal, sendo por isso o fundamento do presente recurso o previsto no art. 400°, n° 1 do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser substituída por douto Acórdão que decrete a restituição ao Recorrente dos objectos apreendidos nos autos;
3ª Realizado o julgamento nos presentes autos, perante a factualidade dada como provada, entendeu o Tribunal Colectivo ora recorrido que a mesma não consubstanciava a prática do crime de passagem de moeda falsa, previsto e punido pelo art. 255°, n° 1 alínea a) do Código Penal que ao Recorrente era imputado, nesta conformidade se decidindo pela sua absolvição;
4ª Não obstante esta decisão absolutória, invocou o douto Tribunal a quo o previsto nos arts. 101°, n° 2 e 102° do Código Penal para declarar a perda dos objectos apreendidos ao Arguido a favor da RAEM, e a sua destruição após o trânsito em julgado da sentença;
5ª Os bens apreendidos em causa são as 176 notas de 100 dólares americanos com o n° LL62033416F, com os caracteres impressos com o significado de “Nota para Prática de Caixa” e “Amostra”, bem como as 43 (21+22) notas genuínas de 100 dólares americanos, conforme resulta, designadamente, do Relatório de Exame Pericial de fls. 253 e segts. dos autos, e mais especificamente do constante das fls. 255 e 256;
6ª Entende o Recorrente que, apesar da lei consignar que uma decisão absolutória não implica que os bens aos arguidos apreendidos sejam necessáriamente devolvidos, in casu justificava-se a devolução ao Recorrente das 43 notas genuínas de 100 dólares americanos;
7ª As notas apreendidas nos autos ao Arguido eram todas elas de sua propriedade, conforme resulta dos factos dados como provados, pelo que não se trata de bens ou objectos pertencentes a terceiros, sendo assim inaplicável ao vertente caso o art. 102° do Código Penal invocado pelo douto Tribunal Colectivo a quo na sua decisão ora em crise;
8ª Considerando toda a factualidade avaliada nos vertentes autos pelo douto Tribunal recorrido, e dada como provada e não provada, dela não resulta a prática de nenhum facto ilícito por parte do Recorrente;
9ª Não se verificando que as referidas notas de 100 dólares americanos apreendidas sejam produto de facto ilícito, nem existindo motivo para se entender que, pela sua natureza ou circunstâncias do caso, sejam aquelas notas passíveis de pôr em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem pública, ou de oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos:
10ª As sobreditas 176 notas de 100 dólares americanos com o n° LL62033416F, com os caracteres impressos com o significado de “Nota para Prática de Caixa” e “Amostra”, são notas produzidas legalmente para o ensino de funcionários bancários e outro pessoal dos bancos de Macau, e ainda de croupiers e outros funcionários de casinos em Macau, e por isso nunca poderão ser consideradas notas contrafeitas, são insusceptíveis de serem confundidas com as verdadeiras notas de 110 dólares americanos, e não podendo ser instrumento da prática do crime de passagem de moeda falsa, conforme afirmado no douto Acordão ora recorrido;
11ª As 43 notas genuínas de 100 dólares americanos, não podem também elas integrar a previsão legal do n° 1 do art. 101° do Código Penal, por se tratarem de notas com curso legal, tanto nos Estados Unidos da América, como em todo o mundo, incluindo por isso Macau;
12ª Provado que se encontra nos presentes autos que não resultou a prática de nenhum crime, e que os referidos objectos apreendidos não são bens cuja posse ou detenção seja ilícita ou sequer condicionada, nenhum motivo legal existe para a declaração da sua perda;
13ª O Recorrente não pretende reaver as 176 notas de 100 dólares americanos com o n° LL62033416F, com os caracteres impressos com o significado de “Nota para Prática de Caixa” e “Amostra”, porque tais notas chegaram à sua posse e propriedade por razões que desconhece, e não queridas por si, e as mesmas não apresentam para o Recorrente qualquer interesse ou utilidade;
14ª Apenas requerendo no âmbito do presente recurso que o referido Acordão do douto Tribunal a quo deverá ser revogado na parte em que declarou perdidas a favor da RAEM as 43 notas genuínas de 100 dólares americanos apreendidas ao ora Recorrente, por resultar claramente que a decisão recorrida violou o disposto no artigo 101°, n.° 1 do Código Penal, sendo fundamento do presente recurso o previsto no art. 400°, n° 1 do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser substituída por douto Acórdão que decrete a restituição ao Recorrente das sobreditas 43 notas”; (cfr., fls. 451 a 464 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 466 a 467-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.451 a 464 dos autos, o recorrente solicitou a revogação do aresto recorrido na parte em que o Tribunal a quo declarou perdidas a favor da RAEM as 43 notas genuínas de 100 dólares americanos apreendidos nestes autos, bem como a restituição dessas, ancorando a sua pretensão no preceito no n.º1 do art.400º do CPP e na violação do disposto no n.º1 do art.101º do Código Penal.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na douta Resposta (cfr. fls.466 a 467 verso), no sentido do não provimento do presente recurso.
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Ora bem, o disposto no n.º2 do art.101º do Código Penal demonstra inequivocamente que a perda de objectos relacionados com certo ilícito penal não depende da efectiva condenação. Pois, «O instituto de perda dos objectos é regulado, como regra geral, pelos artigos 101º, 102 e 103º do Código Penal, em que se inserem essencialmente dois requisitos para a perda dos instrumentos e do produto: a) o facto ilícito-típico e b) perigosidade, com a finalidade preventiva.» (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º82/2003)
No caso sub judice, os factos dados por provados pelo Tribunal a quo tornam incontestável que o recorrente tinha possuído conscientemente as 176 notas com caracteres de “票樣” e “練功券”, e utilizou algumas delas para comprar fichas de aposta de jogo. E o Tribunal a quo ainda afirmou concludentemente que “嫌犯利用練功券購買籌碼,存在欺詐嫌疑”.
Na parte «三﹑定罪與量刑» do Acórdão em crise, o Tribunal a quo apontou iniludivelmente que “本案,嫌犯將多張練功券交予賭場員工要求兌換為籌碼,但是,相關的練功券不具備偽造貨幣的特性,不屬於偽造的貨幣,此外,相關練功券所呈現的外觀,特別是上面載「票樣」及「練功券」之字樣,不能被認定為偽造貨幣也不能被誤會為真幣,因此,本案缺乏構成被控『將假貨幣轉手罪』的客觀方面的事實。” Na nossa óptica, o que significa que em bom rigor, o fundamento determinante em que o Tribunal a quo ancorou a decisão da absolvição consiste na tentativa impossível por inaptidão do meio empregado.
Afigura-se-nos que é acertada e impecável a observação da ilustre colega que reza prudentemente que “上訴人確實實施了被控告的事實,將練功券充當真實鈔票使用,只是所使用的方法明顯不能,練功券的特徵讓人容易識別而未能成功。在實施犯罪的過程中,上訴人使用了真實鈔票混合練功券使用,以避免被揭發。因此,本案扣押的43張真實鈔票是上訴人實施犯罪時所使用的工具。《刑法典》第101條第1款規定,用於....作出一符合罪狀之不法事實之物件,.....須宣告喪失而歸本地區所有。”
Com efeito, temos por concludente que a conduta do recorrente se integra no ilícito-típico consagrado na alínea a) do n.º1 do art.101º do Código Penal e provoca perigo à finalidade preventiva. O que implica que se verificam in casu os dois requisitos acima aludidos.
Nesta linha de vista, e em esteira da sensata jurisprudência supra aludida, inclinamos a entender que o Acórdão recorrido na parte em que o Tribunal a quo declarou, ao abrigo do disposto no n.º2 do art.101º do Código Penal, perdidas todas as notas apreendidas nestes autos a favor da RAEM não merece censura, sem eivar da assacada violação de lei.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 478 a 479).
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 436-v a 437, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Como se deixou relatado, vem o arguido recorrer, pedindo a revogação do segmento decisório com o qual se decidiu “declarar a perda de 43 notas (genuínas) de 100 dólares americanos”, alegando que o mesmo viola os art°s 101° e 103° do C.P.M..
Vejamos.
Nos termos do art. 101° do C.P.M.:
“1. São declarados perdidos a favor do Território os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto.
3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos declarados perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.
Em face do exposto e estatuído no transcrito art. 101° do C.P.M., que dizer?
Desde já, cabe notar que uma “decisão absolutória” não implica que os bens aos arguidos apreendidos sejam – necessáriamente – devolvidos, afastada estando uma (possível) declaração da sua perda a favor da R.A.E.M.; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 19.04.2018, Proc. n.° 55/2018).
Porém, in casu, cremos que se deve (igualmente) ter presente que da factualidade dada como provada não resulta a “prática de nenhum facto ilícito”, não se vislumbrando assim nenhuma factualidade que permita considerar que o referido apreendido seja “produto de facto ilícito”.
Por sua vez, e atentos os “bens” em questão, nenhum motivo existe para se entender que, os mesmos “estivessem destinados à prática de ilícitos”, e que “pela sua natureza ou circunstâncias do caso”, sejam de se ter como passíveis de “por em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem pública, ou de oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
Na verdade, os referidos “bens” – 43 notas genuínas de 100 dólares americanos – não constituem bens cuja posse ou detenção seja “ilícita” ou sequer “condicionada”, nenhum motivo havendo assim para a declaração da sua perda; (cfr., v.g., o Ac. do Vdo T.U.I. de 21.06.2017, Proc. n.° 114/2016).
Nesta conformidade, há que decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, ordenando-se a devolução dos bens reclamados.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 27 de Junho de 2019
José Maria Dias Azedo
[Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, e como venho entendendo, noto que a “declaração de perda de bens” deve ser (oportunamente) requerida na acusação, permitindo-se o contraditório, e evitando-se uma “decisão surpresa”; cfr., v.g., declaração de voto que anexei ao Ac. de 13.11.2014, Proc. n.° 506/2014 e, mais recentemente, de 04.04.2018. Proc. n.° 519/2016].
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 487/2019 Pág. 14
Proc. 487/2019 Pág. 15