Processo n.º 52/2019
(Autos de recurso de decisões jurisdicionais do TA)
Relator: Fong Man Chong
Data: 18/Julho/2019
Assuntos:
- Poder de emitir instruções pelo DSS em matéria de procriação médica assistida (PMA) e excesso de regulação
- Administração Directa e Indirecta e Governo da RAEM
- Definição da política de saúde nos termos da Lei Básica da RAEM
SUMÁRIO:
I - Está em causa a regulação do exercício de procriação médica assistida (PMA), no âmbito do qual o Director dos Serviços de Saúde emitiu o aludido Despacho n.º 12/SS/2017, publicado no BOM nº 19, de 10/05/2017, em que contém um anexo, intitulado de Instruções para a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), composto por 23 artigos, que tocam a matérias vastas, de carácter técnico, administrativo e procedimental.
II – Sendo a DSS uma pessoa colectiva com personalidade jurídica própria, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro), é um órgão da Administração Indirecta1. Em bom rigor, a DSS não faz parte da Administração Pública Directa, integrada no GOVERNO da RAEM, em sentido técnico-jurídico-administrativo. É por esta razão que a sua lei orgânica estatui que a DSS está sujeita à tutela do Chefe do Executivo da RAEM.
III – No exercício das suas competências, à Entidade Recorrida é reconhecido o poder de emitir instruções na área de saúde, mas este poder deve ser exercido nas restritas condições legalmente fixadas.
IV – O artigo 2º das Instruções, para além de tocar matérias importantes (manipulação gamética ou embrionária, Fertilização in vitro; Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos), vem mexer com a política de saúde e a filosofia nesta matéria que caem na alçada do Governo da RAEM.
V - Ou seja, o conteúdo este artigo pressupõe uma política previamente definida pelo Governo da RAEM! E como tal, haverá lugar então à aplicação do artigo 123º da Lei Básica que dispõe:
“O Governo da Região Administrativa Especial de Macau define, por si próprio, a política respeitante à promoção dos serviços de medicina e saúde e ao desenvolvimento da medicina e farmacologia chinesas e ocidentais. As associações sociais e os particulares podem prestar, nos termos da lei, serviços de medicina e saúde de qualquer tipo.”
Ora, o Governo pode não querer intervir, nesta fase e nesta matéria, ou mesmo que queira, há-de definir com que forma e que método é que tais matérias devem ser reguladas e densificadas!
VI - Uma vez que o Governo não foi chamado para assumir este papel, e um serviço personalizado veio a tocá-las autonomamente, há invasão do espaço reservado ao Governo pela DSS, o que determina a ilegalidade da actuação desta última ao emitir tais Instruções.
VII – Pelo que, julgando ilegais as Instruções em causa, como a decisão de indeferimento foi tomada com base nestas Instruções, é de anular a decisão recorrida, por padecer de vício de ilegalidade, tal como o Tribunal Administrativo assim decidiu, mantendo-se assim a sentença proferida pelo mesmo.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo n.º 52/2019
(Recurso de decisões jurisdicionais do TA)
Data : 18/Julho/2019
Recorrente : - Director dos Serviços de Saúde (衛生局局長)
Recorridas : - A
- B
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I - RELATÓRIO
Director dos Serviços de Saúde (衛生局局長), Recorrente, devidamente identificada nos autos, não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo, datada de 03/10/2018, que, julgando procedente o recurso contencioso, anulou a decisão administrativa (indeferiu o pedido dos Recorrentes), veio, em 22/11/2018, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 107 a 120, tendo formulado as seguintes conclusões :
1. O artigo 3.°, n.º 1, alínea h), do Decreto-Lei n.º 22/99/M, de 31 de Maio, reconhece que as autoridades sanitárias podem emitir as determinações que se prevejam noutros diplomas ou, na falta de tal previsão, atribui às autoridades sanitárias de uma competência genérica para emitir determinações.
2. Não se individualizando a forma como tais determinações deverão ser emitidas, v.g., não se limitando as determinações actos administrativos, forçosa é a conclusão de que se reconheceu ou conferiu às autoridades sanitárias a possibilidade de emitir normas.
3. O artigo 12.°, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 22/99/M, de 31 de Maio, ao atribuir aos SSM competências para emitir orientações específicas determinadas pela diferenciação técnica requerida ou pela natural evolução científica e técnica, conferiu-lhes a competência para emitir comandos (individuais e concretos ou gerais e abstractos) de natureza imperativa para os seus destinatários, incluindo a aprovação de normas.
4. O artigo 4.°, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, confere ao Director dos SSM a competência para tomar as medidas indispensáveis à prevenção ou à eliminação de factores ou situações susceptíveis de pôr em risco ou causar prejuízos à saúde individual, em que se inclui a aprovação de norma que defina os requisitos a que deve obedecer um estabelecimento médico para a prática de determinados actos de saúde, com vista a proteger a saúde individual dos sujeitos que procurem tais cuidados de saúde.
5. Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, violando as referidas normas.
6. Acresce que, nos termos do artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 84/90/M, de 31 de Dezembro, o legislador atribuiu aos SSM a competência para aprovar as regras a que devem obediência os estabelecimentos de saúde privados, quanto às respectivas instalações e equipamentos.
7. Estas regras correspondem a normas jurídico-administrativas aprovadas pelos SSM que um estabelecimento em que se exerça a actividade privada de prestação de cuidados de saúde tem de cumprir para obter o respectivo licenciamento.
8. É, pois, manifesto que o artigo 3.° do despacho n.º 12/SS/2017 consubstancia uma norma de execução do disposto no artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 84/90/M, de 31 de Dezembro.
9. Existe, pois, norma legal a conferir o poder para a aprovação da norma regulamentar aplicada pelo acto impugnado.
10. Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, violando o disposto no artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 84/90/M, de 31 de Dezembro.
11. Do mesmo passo verifica-se que não foi invadida a reserva de lei a que se refere o artigo 123.° da Lei Básica, já que é uma norma legal que confere poderes regulamentares aos SSM para aprovar as regras sobre as instalações e equipamentos de que deverão ser dotados os estabelecimentos privados de saúde.
12. Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
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A e B, Recorridas, notificada do recurso interposto pelo Recorrente, veio, em 21/12/2018, a apresentar a sua resposta constante de fls. 123 a 130, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. 上訴人認為被訴實體拒絕上訴人的請求時引用了“指引”第3條作為理據,然而該條文是載於被訴實體所作出的“批示”及其核準的“指引”內,倘若相關“批示”及“指引”是缺乏法律基礎的話,那麼被訴實體根本不可能再引用附於該“指引”上的條文。
2. 根據該“指引”第一條所述可見,該“指引”是一部由行政當局利用行政權力來創設,以對私人醫療活動進行監管理的規範。
3. 正如原審判決分析後所認為,第12/SS/2017號批示所規範的事項,鑑於其內容—批示中各條文使用了“准許”、“命令”、“禁止”等詞語的含義,這些詞語具有強烈的禁止性,似乎不應包含在單純的正式特定指引內。
4. 在這情況下,原審法庭對上述“指引”而作出行政規章(regulamento administrativo)這一法律定性是正確的,以此來進行遞進的分析及結論並無可非議之處。
5. 當上述“指引”的法律定性可確認為行政規章時,我們首先需要考慮的是到底被訴實體是否擁有制定規章的資格(titularidade do poder regulamentar)。
6. 《基本法》第50條第5款已經明確規定了澳門特別行政區行政長官具職權制定行政法規並頒佈執行(Compete ao Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau elaborar, mandar publicar e fazer cumprir os regulamentos administrativos)。
7. 第3/1999號法律第13條對於所有行政規章(regulamento administrativo)的格式統一化,亦即上述“指引”的制定必須符合第13/2009號法律 ‒ 關於訂定內部規範的法律制度的要件。
8. 然而,根據被訴實體的第12/SS/2017號批示所見,顯然地被訴實體在制定行政規章(regulamento administrativo)時(即使冠以“批示”的名稱),缺乏了主體權限(competência subjectiva),故該“批示”違反了《基本法》第50條第5款、第13/2009號法律第3條和第9條以及第3/1999號法律第13條之規定。
9. 此外,正如原審判決分析後所認為,盡管被訴實體援引第84/90/M號法令第3條第1款h項之規定以及第22/99/M號法令第12條第4款之規定,然而,第12/SS/2017號批示所規範的事項,鑑於其內容—批示中各條文使用了“准許”、“命令”、“禁止”等詞語的含義,這些詞語具有強烈的禁止性,似乎不應包含在單純的正式特定指引內。
10. 同時,被訴實體亦指出其根據第84/90/M號法令第5條第2款c項之規定,然而,如上條所述,第12/SS/2017號批示所規範的事項,亦不能視之為單純的規則。
11. 至於被訴實體指根據第81/99/M號法令第1款及第2款賦予的權力而作出第12/SS/2017號批示,一如原審判決分析後所認為,第81/99/M號法令第2款所述的“必要措施”,似乎不可以將之納入制定規章性的文件內;另一面,也沒有出現“以預防或消除可能危及或損害個人或集體健康之因素或情況”的跡象,而有合理理由地就使用醫學生殖技術事宜進行規範。
12. 其次,被訴實體作出拒絕上訴人早已按照第84/90/M號法律而獲得的行醫資格之請求的決定時(即被上訴行為),其所引用的理由僅為“指引”的第3條,與上述的各項法令並無關係。
13. 倘若被訴實體是有權制定現所被爭議的“指引”,被訴實體又何需再就《醫學輔助生殖技術》的立法作出公開咨詢(並且交由立法會進行審議)!?
14. 簡言之,在現行法制中,不存在由局長以衛生當局的身份,制定具對外規範性的批示。
15. 根據《行政程序法典》第3條第1款所規定的合法原則,當中有兩個重要的原則:法律優先原則(princípio da precedência de lei)和權限原則(princípio da competência),前者要求行政當局需遵守法律,後者規定行政當局僅可實施法律所允許的行為。
16. 在此情況下,被訴實體所作出的“批示”及“指引”,基於缺乏行政規章制定權(poder regulamentar),應該被宣告為不法(ilegal)。
17. 被訴實體依據一部不法的行政規章來否決上訴人申請的這一行政行為顯然是違反了《行政程序法典》第3條所規定的合法原則,該行政行為應予以撤銷。
18. 因此,原審判決認定被訴實體沒有制定行政法規之權力並沒有在審判上出現錯誤。
19. 一如原審判決所分析,根據《基本法》第123條規定,當中明示“......依法”一詞時,則就該事宜的原始立法權限屬立法會保留的事宜。
20. 換言之,必須以具有形式意義的法律用以規範私人可提供醫學輔助生殖技術服務的規定。
21. 基於此,原審判決最後認定透過衛生局局長批示制定的規章性規定屬違法;當使用這種方式規範有關事宜時,已經侵犯了立法會法律保留的範圍,違反了法律保留原則;此外,違法行為也源自衛生局局長沒有制定規章的權限。
22. 故此,原審判決認定被訴實體所作出之批示所規範的內容侵犯法律保留的事項並沒有犯有判決上之錯誤。
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O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o seguinte douto parecer (fls.174 e 175):
O Director dos Serviços de Saúde vem recorrer jurisdicionalmente da sentença de 3 de Outubro de 2018, do Tribunal Administrativo, que julgou procedente o recurso contencioso de anulação interposto por A e B, em que eram visados o acto de 19 de Julho de 2017, de indeferimento de requerimento para ministração de técnicas de procriação medicamente assistida, e as Instruções para a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida aprovadas pelo Despacho n.º 12/SS/2017.
Acha que houve erros de julgamento, com violação das normas dos artigos 3.º, n.º 1, alínea h), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro, 12.º, n.º 4, do DL 22/99/M, de 31 de Maio, 4.º, n.ºs 1 e 2, do DL 81/99/M, de 15 de Novembro, e 5.º, n.º 2, alínea c), do já referido DL 84/90/M.
Não se afigura que lhe assista razão.
A decisão recorrida, após esclarecer que não havia lugar, neste processo, à impugnação das normas contidas nas instruções aprovadas pelo Despacho n.º 12/SS/2017, do Director dos Serviços de Saúde, abordou o poder regulamentar em Macau e analisou essas instruções, concluindo pela sua natureza regulamentar e acabando por considerar ilegal, a título incidental, a norma do artigo 3.º de tais instruções, aplicada naquele acto administrativo de 19 de Julho de 2017, que, por isso, foi anulado.
Para fundamentar a ilegalidade de tal norma regulamentar, analisou as normas legais ao abrigo das quais foi emitido o aludido Despacho n.º 12/SS/2017, concluindo que nenhuma delas habilitava o Director dos Serviços de Saúde a editar o regulamento em que se consubstanciam tais instruções. Trata-se das normas dos artigos 3.º, n.º 1, alínea h), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro, 12.º, n.º 4, do DL 22/99/M, de 31 de Maio, 4.º, n.ºs 1 e 2, do DL 81/99/M, de 15 de Novembro, que o recorrente jurisdicional tem por violadas.
Não cremos que ocorra a apontada violação. Tal como a sentença recorrida consignou, em termos que temos por inteiramente pertinentes e acertados, nenhum subsídio se colhe de tais normas no sentido da atribuição de competência regulamentar ao Director dos Serviços de Saúde, por forma a habilitá-lo a editar uma norma do jaez do artigo 3.º das aludidas instruções. E o certo é que os argumentos avançados em contrário na alegação de recurso não apresentam virtualidade para infirmar o bem fundado raciocínio que presidiu àquele juízo.
Daí que se devam considerar improcedentes os fundamentos do recurso jurisdicional relativos à violação dos normativos dos artigos 3.°, n.º 1, alínea h), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro, 12.°, n.º 4, do DL 22/99/M, de 31 de Maio, 4.°, n.ºs 1 e 2, do DL 81/99/M, de 15 de Novembro, e inerentes erros de julgamento.
Mas, no recurso jurisdicional, veio o recorrente avançar um outro fundamento para legitimar o seu poder regulamentar para emissão da norma do artigo 3.° das instruções aprovadas pelo Despacho n.º 12/SS/2017, invocando para talo artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro.
Segundo este normativo, a autorização para abertura e funcionamento dos estabelecimentos destinados à prestação de cuidados de saúde depende, entre outros, do requisito de as respectivas instalações e equipamentos possuírem as condições adequadas à actividade que nele vai ser exercida, de acordo com as regras fixadas pela Direcção dos Serviços de Saúde.
Este artigo remete, na verdade, para regras a fixar pela Direcção dos Serviços de Saúde. Só que, salvo melhor juízo, essas regras não abrangem a matéria que o Director dos Serviços de Saúde regulou no artigo 3.° das aludidas instruções. Tais regras visam apenas instalações e equipamentos necessários para a actividade, no caso para a actividade de prestação de técnicas de procriação medicamente assistida, ou seja, visam os espaços físicos e os equipamentos tidos por adequados para tal actividade. Pois bem, o que está estipulado no artigo 3.° das instruções são as valências de cuidados de saúde que uma unidade privada tem que assegurar se quiser operar em matéria de técnicas de procriação medicamente assistida, o que interfere com matéria totalmente diversa da componente instalações e equipamentos.
Assim, também a norma do artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro, não cauciona a legalidade da actividade regulamentar substanciada no artigo 3.° das instruções aprovadas pelo Despacho n.° 12/SS/2017, pelo que o juízo de ilegalidade desta norma formulado na sentença recorrida permanece incólume.
Daí que igualmente improceda este fundamento do recurso.
Deve, em consequência, manter-se a sentença recorrida e negar-se provimento ao recurso jurisdicional.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS
São os seguintes elementos considerados assentes, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
‒ 兩名司法上訴人為衛生局之註冊執業醫生,A之註冊編號為…,B之註冊編號為…,兩人之執業住址均設於澳門… (詳見卷宗第2頁、第11頁及第12頁) 。
‒ 2016年12月16日,兩名司法上訴人向被上訴實體申請開展醫學輔助生殖技術項目 (詳見行政卷宗第32頁至第67頁及第69頁至第104頁) 。
‒ 2017年7月19日,被上訴實體在編號1520/NI/UTLAP/2017內部工作備註中作出“同意”批示,指出由於該局已於2017年5月10日公佈有關醫學輔助生殖之指引,故決定通知兩名司法上訴人應依照《關於使用醫學輔助生殖技術的指引》之要求向衛生局申請提供醫學輔助生殖醫療服務之預先許可 (詳見行政卷宗第23頁至第24頁,有關內容在此視為完全轉錄)。
‒ 2017年7月31日,被上訴實體分別通過編號2568/OF/UTLAP/2017及2569/OF/UTLAP/2017公函通知兩名司法上訴人,指出根據《關於使用醫學輔助生殖技術的指引》附件第三條之規定,兩名司法上訴人未符合相關要求 (詳見行政卷宗第16頁至第19頁,有關內容在此視為完全轉錄)。
‒ 2017年8月29日,兩名司法上訴人透過訴訟代理人針對上述決定向本院提起本司法上訴。
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IV - FUNDAMENTOS
Como o presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, importa ver o que este decidiu. Este afirmou:
I. Relatório
Recorrentes A e B melhor id. nos autos,
interpuseram o presente recurso contencioso administrativo contra
Entidade recorrida, Director dos Serviços de Saúde que indeferiu os seus pedidos de utilização das técnicas de procriação medicamente assistida.
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Alegaram as Recorrentes com os fundamentos de fls. 23 a 31 dos autos, em síntese,
- o erro na aplicação do direito;
- a nulidade do despacho como fundamento do acto recorrido, por vício de usurpação;
- a nulidade do despacho como fundamento do acto recorrido, por ofensa aos direitos fundamentais;
- anulabilidade do despacho como fundamento do acto recorrido, por violação das normas legais estabelecidas na Lei Básica e no DL n.º 84/90/M.
Concluiu, pedindo que seja declarado nulo o respectivo despacho e que seja declarado nulo ou anulado do acto recorrido.
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A Entidade recorrida apresentou a contestação com os fundamentos de fls.37 a 57 dos autos, na qual pugnou pela legalidade do acto, concluiu no sentido de ser o presente recurso julgado improcedente.
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Devidamente notificadas, ambas as partes apresentaram alegações facultativas, mantendo as conclusões anteriormente formuladas.
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A Digna Magistrada do M.º P.º emitiu douto parecer no sentido de proceder o presente recurso pelo vício de violação da lei resultante da aplicação do acto normativo ilegal, com os fundamentos a fls.88 a 90v dos autos.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
***
II. Fundamentação
1. Matéria de facto
(…)
***
2. Matéria de direito
Na petição inicial, as recorrentes para além de pretender obter a anulação do acto recorrido, querem que o despacho que fundamenta o acto seja também declarado nulo.
Como é sabido, o recurso contencioso é um meio processual que tem por objecto o acto administrativo e se destina a obter sua anulação ou a declaração da nulidade ou inexistência jurídica como previsto no art.º 20.º do CPAC. E que o acto administrativo se distingue do acto normativo, que não tem força obrigatória geral, mas só produz os efeitos nos casos concretos e individuais.
Agora, qual é a natureza de Instruções para a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (doravante designado por PMA), aprovadas pelo despacho do director dos Serviços de Saúde n.º 12/SS/2017?
Basta uma vista de olhos e consegue-se saber que, embora designada por “Instruções”, os artigos aí integrados se dirigem ao destinatário não determinado, e que tem força geral e vinculativa a todos os interessados.
Por isso, não é um acto administrativo de que se trata, mas sim um acto normativo de aplicação geral e abstracta. Para a impugnação directa da sua legalidade, o recurso contencioso não é o meio próprio.
É evidente que o acto normativo, sendo de fonte regulamentar, só deve ser objecto da impugnação das normas, conforme é estatuído nos art.ºs 88º a 96.º do CPAC.
A declaração de ilegalidade de normas por este meio processual pode ser feita, “tanto por vício próprio (incompetência do autor da norma, vícios de conteúdo) como por vícios derivados da invalidade de actos praticados no âmbito do respectivo procedimento de aprovação, isto é, no procedimento da sua aprovação”. (cfr. Código de Processo Administrativo Contencioso, anotado, Viriato Lima e Álvaro Dantas, pp.279.)
Com isto quer dizer, se as recorrentes pretenderam obter a declaração da ilegalidade do acto normativo em causa, escolheram o meio processual errado. Nem é possível a sua convolação para forma adequada, por não terem sido verificados os respectivos pressupostos processuais.
Porém, o acima referido não preclude a possibilidade do tribunal de conhecer incidentalmente da ilegalidade de norma: pode o recorrente suscitar ou o tribunal conhecer oficiosamente da ilegalidade de norma que inquine o acto administrativo, anulando este acto com tal fundamento (como se refere no Acórdão do TUI de 18 de Julho de 2007, no processo n.º 28/2006). Nestes casos, a pronúncia do tribunal quanto à ilegalidade da norma regulamentar apenas tem efeitos no processo em causa.
É a situação que ocorreu no nosso caso: a inadmissibilidade da impugnação directa da norma regulamentar, não obsta a que o conhecimento incidental da sua ilegalidade no recurso contencioso.
Neste caso, foram invocados os vícios da norma que respeitam tanto o seu aspecto formal (como usurpação de poder), como aspecto material (como violação de direitos fundamentais, das normas da Lei Básica).
Começamos por analisar o vício formal da norma impugnada.
Questionaram as recorrentes a incompetência do autor da norma em causa, considerando que a matéria, a qual respeita à limitação do direito de utilização das técnicas de procriação medicamente assistida, devia ser regulada por lei ou regulamento administrativo, e não por despacho do Director dos Serviços de Saúde.
As questões a resolver serão equacionadas pela seguinte ordem:
- O conceito de regulamento administrativo,
- Regulamento independente ou executivo, a natureza do despacho do Director dos Serviços de Saúde,
- O poder regulamentar do Director dos Serviços de Saúde,
- A reserva da Lei e a matéria regulada pelo despacho impugnado.
1. A primeira questão que se coloca é saber o que se entende por “regulamento administrativo”.
Como se sabe, o conceito de “regulamento administrativo” à luz do enquadramento jurídico vigente da RAEM, já foi densificado no referido Acórdão do TUI de 18 de Julho de 2007, de forma mais suficiente possível, para o qual remete a nossa resposta:
“ …Quanto ao regulamento, atendendo ao disposto nos artigos 50.º, alínea 5) e 64.º, alínea 5), (onde se estatui que o Chefe do Executivo pode elaborar regulamentos administrativos e Governo pode elaborar projectos de regulamentos) podemos concluir que a Lei Básica o utiliza com o sentido de normas jurídicas dimanadas de órgãos da Administração no exercício da função administrativa.
Mas é de salientar aqui que o conteúdo e a extensão da concepção de regulamento administrativo empregada na Constituição de 82 da China vigente são bastante mais amplos. Trata-se de manifestação do exercício do poder de normação administrativa conferido pela Constituição ao Conselho de Estado. Na prática do Interior da China, o âmbito de regulação é muito mais extenso do que o “regulamento” do sistema jurídico de Macau. Muitos assuntos objecto de regulação por antigos Decretos-Leis são regulados, no Interior da China, por regulamentos administrativos do Conselho de Estado.
Por conseguinte, a espécie de diploma designado por “Regulamento Administrativo”, criado pelo artigo 3.º, alínea 2) da Lei n.º 3/1999, é apenas uma espécie do género regulamentos administrativos, previsto na Lei Básica, aliás, como se retira dos arts. 3.º, alíneas 4) e 5), 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 2 e 16.º, n.º 2 da mesma Lei n.º 3/1999, que cria, ao lado dos “Regulamentos Administrativos”, os “despachos regulamentares externos” exarados pelo Chefe do Executivo e pelos titulares dos principais cargos da RAEM, uns com base no artigo 50.º da Lei Básica, outros com fundamento no artigo 64.º da mesma Lei, que são igualmente regulamentos administrativos previstos na Lei Básica…” (sublinhado nosso)
Acompanhando a posição aí reiterada, não seria difícil deduzir que o tipo do acto normativo se determina em relação à fonte donde dimana a respectiva norma, isto é, enquanto que a lei ou o acto normativo legislativo é diploma aprovado pela Assembleia Legislativa da RAEM, o regulamento administrativo ou acto normativo regulamentar é o conjunto das normas jurídicas provenientes de órgão da Administração no exercício da função administrativa.
E que não obstante a designação pode variar, o conceito de “regulamentos administrativos” a que se aludem as normas da Lei Básica é mais abrangente e extenso no sentido de não incluir apenas “Regulamentos Administrativos” referido pelo art.º 3.º, alínea 2) da Lei n.º 3/1999, como também outros géneros de actos normativos regulamentar, nomeadamente os despachos regulamentares externos do Chefe do Executivo e dos titulares dos principais cargos da RAEM, respectivamente com os fundamentos nos art. ºs 50.º e 64.º da Lei Básica.
Isso é assim, mesmo considerando o disposto da Lei n.º 13/2009 que veio a ser publicada na sequência do referido Acórdão, que tem por finalidade “estatuir tipologias de regulamentos administrativos”, uma vez que foram apenas mencionados como tipos de “actos normativos principais” - Lei da Assembleia Legislativa, Regulamento administrativo independente do Chefe do Executivo, Regulamento administrativo complementar do Chefe do Executivo. Ou seja, os “regulamentos administrativos” não foram de todo aí incluídos.
2. A natureza do despacho do Director dos Serviços de Saúde, regulamento executivo ou independente?
Distinguem-se os regulamentos de execução dos regulamentos independentes.
Os regulamentos de execução ou complementar visam regulamentar uma lei. Os regulamentos independentes são os restantes, são aqueles que não visam desenvolver ou pormenorizar uma lei.
Ou seja, os regulamentos administrativos são elaborados sem dependência da autorização prévia da lei, ou seja não exigem a presença de uma norma habilitante legal.
Como atrás referido, embora designado como“instruções”, é evidente que o anexo que integra o despacho n.º 12/SS/2017, tem um conteúdo que vai muito para além de instruções propriamente ditas, porque tem força geral obrigatória, e por conseguinte, natureza regulamentar.
E aparentemente, o referido despacho parece ter indicado as normas habilitantes legais no seu preâmbulo, nos seguintes termos:
“Considerando as competências previstas na alínea h) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 84/90/M, de 31 de Dezembro, no n.º 4 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 22/99/M, de 31 de Maio, e nos termos dos poderes de autoridade sanitária conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, o director dos Serviços de Saúde determina:…”
Convém saber se as normas foram correctamente invocadas.
Desde logo, quanto à primeira norma habilitante - a alínea h) do n.º 1 do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 84/90/M de 31 de Dezembro:
“Artigo 3.º
(Deveres dos profissionais)
1. Os profissionais e as entidades a quem é aplicável o presente diploma encontram-se ao serviço da saúde pública, exercendo actividades de elevado grau de responsabilidade social, devendo, por esta razão:
…
h) Cumprir as leis e as determinações das autoridades sanitárias e respeitar os princípios deontológicos da respectiva profissão.
…”
Obviamente, da norma referida não se pode tirar nenhuma ideia de que o legislador atribui à entidade recorrida a competência de regulamentar, quer subjectiva quer objectiva.
De seguida, outra norma invocada – o n.º 4 do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 22/99/M, de 31 de Maio:
“Artigo 12.º
(Fiscalização)
…
4. Os SSM podem emitir orientações específicas determinadas pela diferenciação técnica requerida ou pela natural evolução científica e técnica.
…”
Já concluímos que a matéria veio a ser regulada pelo despacho impugnado, tendo em conta o seu conteúdo, não se reduz à de meras orientações.
Pois se pode facilmente deparar com o sentido de “permissões”, “comandos”, “proibições”, que se encontram disseminados nos seus artigos, como p.ex. “as técnicas de PMA só podem ser ministradas…” (art.º 3.º), “Os Centros de PMA só podem ministrar…” (art.º 4.º), “são expressamente proibidas as seguintes actividades…” (art.º 22.º), “não estão autorizados os seguintes serviços…” (art.º 23.º) etc.
Trata-se de termos fortemente imperativos que as simples orientações específicas normais parecem não dever comportar.
Assim sendo, deve afirmar que a invocada norma habilitante também não conferiu o poder regulamentar à entidade recorrida.
Vejamos a terceira norma habilitante invocada – os n.ºs 1 e 2 do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro:
“Artigo 4.º
(Autoridade sanitária)
1. Para o exercício das atribuições dos SSM respeitantes à prevenção da doença, são conferidos poderes de autoridade sanitária ao director e aos médicos dos SSM que, para o efeito, forem expressamente designados por despacho nominal do Governador, publicado no Boletim Oficial de Macau.
2. A autoridade sanitária a que alude o número anterior exerce a sua actividade sem dependência hierárquica e sem necessidade de processo prévio, administrativo ou judicial, podendo tomar as medidas indispensáveis à prevenção ou à eliminação de factores ou situações susceptíveis de pôr em risco ou causar prejuízos à saúde individual ou colectiva.
…”
Com o devido respeito da opinião contrária, não se vislumbra aqui nenhuma norma susceptível de ser interpretada no sentido de conferir o poder regulamentar naquela matéria em causa.
Por um lado, “As medidas indispensáveis” aludidas no supracitado n.º 2, não parece que possam ter englobado os actos normativos regulamentares, e por outro, nem se evidenciam também os “factores ou situações susceptíveis de pôr em risco ou causar prejuízos à saúde individual ou colectiva” que justificariam uma intervenção regulamentar na matéria da utilização de técnicas de procriação medicamente assistida.
Concluindo, nenhuma das normas invocadas pode valer como norma habilitante no caso concreto.
Assim, aquele despacho normativo, não comportando uma norma habilitante válida, nem tendo sido legitimado por autorização legislativa prévia, não é regulamento executivo ou complementar, só pode ser qualificado como regulamento independente.
3. Mas, será que o Director dos Serviços de Saúde tem poder regulamentar, ou melhor dizendo, de regulamentar autonomamente sem autorização legal?
Cumpre dizer desde já que a discussão que surgiu em relação à legitimação do poder regulamentar do Governo já foi ultrapassada. Os poderes regulamentares do Chefe do Executivo e do Governo encontram o seu suporte legal na Lei Básica, nomeadamente, ao abrigo do disposto dos art.º s 50.º e 64.º:
“Artigo 50.º
Compete ao Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau:
…
5) Elaborar, mandar publicar e fazer cumprir os regulamentos administrativos;
…”
“Artigo 64.º
Compete ao Governo da Região Administrativa Especial de Macau:
…
5) Apresentar propostas de lei e de resolução, e elaborar regulamentos administrativos.
…”
E no que respeita à forma dos regulamentos administrativos a Lei Básica não a define. O art.º 3.º da Lei n.º 3/1999 prevê a existência de regulamentos administrativos do Chefe do Executivo e os despachos regulamentares externos exarados pelo Chefe do Executivo e pelos titulares dos principais cargos da RAEM.
Mas nada diz quanto aos despachos regulamentares externos do director dos serviços.
É inegável que o director dos serviços, sendo órgão administrativo da RAEM, faz parte do Governo, mas nem é por isso possível concluir sem mais que os directores têm o mesmo poder que o Chefe do Executivo ou dos titulares dos principais cargos, de regulamentar, autonomamente, sobre matéria que lhe convier. É por isso sempre necessário um fundamento legal específico que lhe atribua este poder.
Repara-se que no regime jurídico constitucional da República Popular da China, é estatuído expressamente que compete ao Conselho de Estado aprovar regulamentos administrativos nos termos da Constituição e das leis.
Nos termos do art.º 89.º, alínea 1) da Constituição vigente da RPC, revista em 11 de Março de 2018:
“Artigo 89.º
Compete ao Conselho de Estado:
1. Determinar as providências administrativas, fazer regulamentos administrativos tomar decisões e ordens;
…”
Além do mais, ao abrigo do disposto do art.º 65.º da Lei da Legislação da RPC:
“Compete ao Conselho de Estado fazer regulamentos administrativos nos termos da Constituição e das leis…”
Não se suscita dúvidas que o Conselho de Estado, enquanto órgão administrativo máximo do Estado, é o sujeito que elabora regulamentos administrativos. Por outras palavras, só o Conselho de Estado integrado pelos diversos Ministérios tem competência para aprovar os regulamentos administrativos.
Na RAEM, como se sabe, “o Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau é o dirigente máximo do Governo, competindo-lhe dirigir o Governo.” “Os titulares dos principais cargos (do Governo) respondem perante o Chefe do Executivo.” (cfr. os art.ºs 2.º, 4.º e 8.º n.º 3 da Lei n.º 2/1999 ).
Daí que se confirma a posição de supremacia indisputada do Chefe do Executivo, e de seguida, dos titulares dos principais cargos dentro da organização administrativa da RAEM, e por conseguinte, são lhes atribuídos, na representação do Governo, os poderes regulamentares indispensáveis ao exercício das suas funções administrativas, especialmente na definição das políticas governamentais.
Tanto mais que os regulamentos administrativos podem conferir os novos direitos e impor os novos deveres aos particulares, e têm os efeitos vinculativos externos.
Afigura-se que na maioria dos casos, não têm este poder outros órgãos do Governo, como os directores que se encontram na hierarquia inferior face aos Secretários do Governo, que não lhes cabem, na prática, a última palavra na emissão das directivas e políticas gerais que interessam ao funcionamento da máquina administrativa.
Assim é, não ser que haja norma legal especial que lhes reconheça este poder regulamentar.
Todavia, tal norma não se verificou em relação ao Director dos Serviços de Saúde.
Chegando a este ponto, somos de concluir que o Director dos Serviços de Saúde não tem poder regulamentar. (Sublinhado nosso)
4. A matéria regulada pelo despacho incide sobre reserva da Lei?
Outra questão que se levanta no plano objectivo do acto normativo, é saber, mesmo reconhecendo o poder regulamentar ao Director dos Serviços de Saúde, se a matéria em causa pode ser regulada por regulamento administrativo.
O princípio da reserva de lei, ou melhor dizendo, reserva de competência legislativa da Assembleia, significa que há matérias que estão reservadas à assembleia representativa e que não reconhece qualquer poder regulamentar originário ao poder executivo.
O princípio da reserva de lei está naturalmente conexa com a precedência da lei, que significa que a lei tem superioridade e preferência relativamente aos regulamentos administrativos, não podendo ser contrariada pelas normas regulamentares.
Como se vê, no que diz respeito à reserva da lei, nenhum preceito da Lei Básica estatui sobre o que é matéria de lei e sobre o que é matéria de regulamento, nem existe nenhuma norma geral da Lei Básica que estabeleça uma competência normativa reservada da Assembleia Legislativa ou do Chefe do Executivo e do Governo.
Existem somente normas dispersadas da Lei Básica que determinam que ceras matérias devem constar de lei.
Como p. ex. :
- “O direito à propriedade privada é protegido por lei na Região Administrativa Especial de Macau” (art.º 6.º);
- “Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei. ...” (o 2.º parágrafo do artigo 40.º);
- “A organização, competência e funcionamento dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau são regulados por lei” (o 3.º parágrafo do artigo 84.º);
- “A organização, competência e funcionamento do Ministério Público são regulados por lei” (o 4.º parágrafo do artigo 90.º);
- “Os residentes de Macau gozam da liberdade de exercer actividades de educação, investigação académica, criação literária e artística e outras actividades culturais.” (o art.º 37.º);
- “Os residentes de Macau gozam do direito a benefícios sociais nos termos da lei. O bem-estar e a garantia de aposentação dos trabalhadores são legalmente protegidos” (o art.º 39.º).
Por sua vez, em relação à reserva de regulamento administrativo ou seja, às matérias que estão reservadas à normação do Governo, com exclusão do poder legislativo da Assembleia Legislativa, parece que encontra seu fundamento no art.º 129.º da Lei Básica, nos termos do qual “O Governo da Região Administrativa Especial de Macau determina, por si próprio, o sistema relativo às profissões e define, com base no princípio da imparcialidade e da razoabilidade, os regulamentos respeitantes à avaliação e à atribuição de qualificação profissional nas várias profissões e de qualificação para o seu exercício”.
A ideia da reserva da lei, com a publicação da Lei n.º 13/2009, veio a ser mais reforçada e melhor definida.
A norma do art.º 6.º da mesma Lei estabelece o seguinte:
“A normação jurídica das seguintes matérias é feita por leis:
1) Regime jurídico dos direitos e liberdades fundamentais, e suas garantias, previstos na Lei Básica e em outros actos legislativos;
2) Estatuto de residente de Macau;
3) Regime do direito de residência em Macau;
4) Recenseamento eleitoral e regimes eleitorais;
5) Definição dos crimes, contravenções, penas, medidas de segurança e os respectivos pressupostos;
6) Regime geral das infracções administrativas, seu procedimento e estatuição das respectivas sanções, sem prejuízo do disposto na alínea 6), do n.º 1 do artigo 7.º;
7) Estatuto dos Deputados à Assembleia Legislativa;
8) Regime jurídico relativo à orgânica, funcionamento e pessoal dos serviços de apoio à Assembleia Legislativa;
9) Código civil e Código comercial;
10) Código de procedimento administrativo;
11) Regimes processuais civil, penal e administrativo e regime de arbitragem;
12) Códigos de registo e de notariado;
13) Formulário dos actos normativos e demais actos sujeitos a publicação oficial;
14) Regimes fundamentais aplicáveis aos trabalhadores da administração pública;
15) Orçamento e regime tributário;
16) Regime jurídico dos solos, do ordenamento do território, do urbanismo e do ambiente;
17) Regime jurídico dos sistemas monetário e financeiro e operações de comércio externo;
18) Regimes da propriedade, da requisição e da expropriação por utilidade pública;
19) Outras matérias atribuídas pela Lei Básica à Assembleia Legislativa.”
Além do mais, foi determinada que certas matérias podem ser reguladas por regulamento administrativo:
“1. Podem ser objecto de regulamentos administrativos independentes as seguintes matérias:
1) Normas de desenvolvimento, implementação e execução de políticas governativas;
2) Definição dos regimes e procedimentos de gestão dos assuntos públicos;
3) Organização e funcionamento do Governo e estatuto dos respectivos membros;
4) Estrutura e orgânica da administração pública e de todos os seus serviços e unidades orgânicas incluindo os órgãos consultivos, bem como dos serviços públicos personalizados, institutos públicos, estabelecimentos públicos, serviços e fundos autónomos, fundações públicas e demais entidades autónomas e de natureza afim, com excepção dos que estejam afectos ou que se integrem na esfera funcional ou na orgânica da Assembleia Legislativa, dos tribunais, do Ministério Público ou dos Comissariados de Auditoria e Contra a Corrupção e com excepção ainda dos organismos cujas competências interfiram directamente com os direitos e liberdades fundamentais e suas garantias, nomeadamente os órgãos de investigação criminal;
5) Organização e funcionamento do Conselho Executivo e estatuto dos respectivos membros;
6) Infracções administrativas e respectivas multas que não excedam 500 000,00 (quinhentas mil patacas);
7) Outras matérias não abrangidas no artigo 6.º da presente lei.
2. Podem ser objecto de regulamentos administrativos complementares as matérias reguladas em leis que se devam executar.
3. Nos casos previstos no número anterior é feita menção expressa às normas legais que se visa regulamentar.”
Não se pode falar aqui da reserva de regulamento administrativo, porque a norma quando referiu “Podem ser objecto de regulamentos administrativos independentes”, parece não ter excluído a possibilidade da intervenção do poder de normação originária legislativa da Assembleia Legislativa.
Importa ainda referir que, como expressão do princípio de precedência da lei, foi consagrado no art.º 3.º da mesma Lei, “os regulamentos administrativos independentes não podem ter o efeito de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar preceitos constantes de leis.”
Voltemos ao caso em apreço, o despacho impugnado integrado pela “instruções” respeita à utilização das técnicas de PMA, que pretende definir os requisitos mínimos exigidos às entidades singulares ou colectivas que pretendam prestar cuidados de saúde com recurso às mesmas técnicas.
É que nesta matéria, ainda não existe uma normação primária legislativa no regime jurídico actual de Macau, e por consequência que o princípio de precedência da lei não é posto em causa, isto é, não existe a violação da lei por uma norma regulamentar.
Porém, pode muito bem levantar a questão da violação da reserva da lei.
A norma contida naquele “instruções”, cuja ilegalidade foi arguida, é nomeadamente, o art.º 3.º, que foi invocada pela entidade recorrida como fundamento do acto, nos termos do qual:
“As técnicas de PMA só podem ser ministradas no Centro Hospitalar Conde de S. Januário e em unidades privadas de saúde, com unidades de urgência, de obstetrícia e de cuidados intensivos neonatais, doravante designados por Centros de PMA.”
A norma referida limitou expressamente a qualidade das entidades que possam ser autorizadas a ministrar as técnicas de PMA, ou Centro Hospital Conde de S .Januário, ou entidades privadas paralelamente apetrechadas. (Sublinhado nosso)
Ora, está em causa a prestação dos serviços de medicina e de saúde, estatui o art.º 123.º da Lei Básica o seguinte:
“O Governo da Região Administrativa Especial de Macau define, por si próprio, a política respeitante à promoção dos serviços de medicina e saúde e ao desenvolvimento da medicina e farmacologia chinesas e ocidentais. As associações sociais e os particulares podem prestar, nos termos da lei, serviços de medicina e saúde de qualquer tipo.”
A norma incide sobre a prestação dos serviços de medicina e saúde de qualquer tipo pelas associações ou particulares, naturalmente tem aplicação aos particulares que pretendam prestar os serviços de PMA, como ocorreu neste caso. E quanto a este ponto, pareça-nos que a entidade recorrida não se opôs.
E continuando a seguir o entendimento do TUI no Acórdão acima referido, quando a norma diz “…nos termos da lei” implica a competência da normação primária sobre a mesma matéria está reservada à Assembleia Legislativa.
Dito por outra forma, é sempre necessária uma lei no sentido formal, para regular os termos em que os particulares podem prestar serviços de PMA, cobrindo assim, inclusivamente as questões como “quem” o pode fazer (as exigências subjectivas), e como o pode fazer (as exigências objectivas).
Nestes termos, é legítimo afirmar a ilegalidade da referida norma regulamentar do despacho do Director dos Serviços de Saúde, que, ao regular a matéria em causa por esta forma, se intrometeu na esfera reservada pela lei da Assembleia Legislativa, violando o princípio da reserva da lei,além de que a ilegalidade também provém da falta da competência regulamentar do Director dos Serviços de Saúde.
E o acto recorrido praticado com base nesta norma ilegal padece do vício de violação da lei, deve, em consequência ser anulado.
***
III. Decisão
Assim, pelo exposto, decide-se:
Julga procedente o presente recurso contencioso e em consequência, anula o acto recorrido.
*
Sem custas, por subjectivamente isenta.
*
Registe e notifique.
*
Quid Juris?
O Tribunal recorrido fez uma análise exaustiva e fundamentada sobre as questões suscitadas em torno do Despacho do Director dos SS de Macau, Despacho n.º 12/SS/2017, publicado no BOM nº 19, de 10/05/2017, com a qual, na essencialidade, concordamos, merecem, porém, em determinados aspectos, alguns reparos:
a) – A determinada passagem da fundamentação, o Tribunal a quo afirmou: É inegável que o director dos serviços, sendo órgão administrativo da RAEM, faz parte do Governo, mas nem é por isso possível concluir sem mais que os directores têm o mesmo poder que o Chefe do Executivo ou dos titulares dos principais cargos, de regulamentar, autonomamente, sobre matéria que lhe convier. É por isso sempre necessário um fundamento legal específico que lhe atribua este poder.
Aqui, a frase “FAZ PARTE DO GOVERNO” deve ser entendia em termos hábeis, ou seja, o sentido desta frase deve ser tomado num sentido não jurídico, porque a DSS, sendo pessoa colectiva com personalidade jurídica própria, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro), é um órgão da Administração Indirecta2. Isto é, a DSS não faz parte da Administração Pública Directa, integrada no GOVERNO da RAEM, em sentido técnico-jurídico-administrativo, por isso na sua lei orgânica estatui que a DSS está sujeita à tutela do Chefe do Executivo da RAEM. Dita doutra forma, a DSS goza de gestão autónoma, toma decisões com base no poder próprio, sem prejuízo do poder tutelar do Chefe do Executivo e da competência em definir a política geral nesta área.
B) – Depois, noutra passagem da douta sentença o Tribunal recorrido afirmou:
“(…) Assim é, não ser que haja norma legal especial que lhes reconheça este poder regulamentar.
Todavia, tal norma não se verificou em relação ao Director dos Serviços de Saúde.
Chegando a este ponto, somos de concluir que o Director dos Serviços de Saúde não tem poder regulamentar. (Sublinhado nosso)”
Igualmente aqui merece alguma atenção ao ler esta parte da sentença, pois, dela não se pode retirar a ideia de que, em qualquer situação, o Director dos SS não tem competência para ditar “regulamentos” (preferimos utilizar “normas gerais e abstractas”), pode e deve, desde que haja lei habilitante que assim lhe confira o respectivo poder, compreende-se que assim seja, porque na área de saúde, existem matérias muito técnicas que, a priori, o legislador não tem capacidade para disciplinar como deve ser, então reserva determinado espeço para a intervenção constitutiva dos serviços administrativos especializados. Aliás, eis um dos fundamentos da criação de serviços independentes ou autónomos, ou personalizados.
*
Feitas estas observações, passemos a ver o que se discute entre as partes as questões nestes autos.
Tal como se referiu anteriormente, concordamos basicamente o que fica consignado na douta sentença, mas temos uma leitura diferente nos aspectos a seguir indicados:
1) – Está em causa a regulação do exercício de procriação médica assistida (PMA), no âmbito do qual o Director dos Serviços de Saúde emitiu o aludido Despacho n.º 12/SS/2017, publicado no BOM nº 19, de 10/05/2017, em que contém um anexo, intitulado de Instruções para a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), composto por 23 artigos, que tocam a matérias vastas, de carácter técnico, administrativo e procedimental.
2) – Neste domínio, temos alguns preceitos legais emanados do poder legislativo que disciplina alguns aspectos, faltando efectivamente um regime completo sobre a matéria em vista.
3) – É certo que, quer no Código Penal, quer na legislação avulsa existem normas respeitante à procriação assistida, mas são normas sectoriais;
4) – Ora, como fundamento do despacho acima referido o Director dos SS invocou 3 diplomas legais, que podem ser lidos no seu cabecilho:
a) - Artigo 3º/1-h) do DL nº 84/90/M, de 31 de Dezembro;
b) – Artigo 12º/4 do DL nº 22/99/M, de 31 de Maio;
c) – Artigo 4º/1 e 2 do DL nº 81/99/M, de 15 de Dezembro.
5) – Ora, lido com atenção os normativos dos diplomas legais referenciados, estes não dão cobertura legal a todo conteúdo inserido no referido Despacho n.º 12/SS/2017, pois:
A alínea h) do n.º 1 do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 84/90/M de 31 de Dezembro, dispõe:
Artigo 3.º
(Deveres dos profissionais)
1. Os profissionais e as entidades a quem é aplicável o presente diploma encontram-se ao serviço da saúde pública, exercendo actividades de elevado grau de responsabilidade social, devendo, por esta razão:
…
h) Cumprir as leis e as determinações das autoridades sanitárias e respeitar os princípios deontológicos da respectiva profissão.
…”
De seguida, outra norma invocada – o n.º 4 do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 22/99/M, de 31 de Maio, estipula:
“Artigo 12.º
(Fiscalização)
…
4. Os SSM podem emitir orientações específicas determinadas pela diferenciação técnica requerida ou pela natural evolução científica e técnica.
…”
Por último, os n.ºs 1 e 2 do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, mandam:
“Artigo 4.º
(Autoridade sanitária)
1. Para o exercício das atribuições dos SSM respeitantes à prevenção da doença, são conferidos poderes de autoridade sanitária ao director e aos médicos dos SSM que, para o efeito, forem expressamente designados por despacho nominal do Governador, publicado no Boletim Oficial de Macau.
2. A autoridade sanitária a que alude o número anterior exerce a sua actividade sem dependência hierárquica e sem necessidade de processo prévio, administrativo ou judicial, podendo tomar as medidas indispensáveis à prevenção ou à eliminação de factores ou situações susceptíveis de pôr em risco ou causar prejuízos à saúde individual ou colectiva.
É de ver que nenhuma norma acima citada confere directamente à Entidade Recorrida o poder regulamentar sobre a matéria em causa, num âmbito tão vasto como o regulado no respectivo Despacho em análise.
6) – Porém, não queremos dizer que a Entidade Recorrida não tenha poder de emitir instruções na área de saúde, pode e deve, mas nas restritas condições legalmente fixadas, pois, porque os SSM é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, tal como define o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, diploma legal este que reconhece igualmente ao Director dos SS a competência de emitir licença e fiscalizar as respectivas actividades na área de saúde.
7) – No caso concreto, conforme a matéria inserida no respectivo Despacho, pela sua extensão e pela sua profundidade da disciplina, parece-nos a “roupa” mais adequada é a forma da “lei” , e não um despacho administrativo, sendo este nitidamente inadequado, até ilegal nos termos analisados pelo Tribunal recorrido, que acompanhamos.
8) – Outro aspecto que importa destacar aqui é o de que, no exercício de atribuições, a Administração Pública competente pode (e deve) fixar padrões uniforme que sirvam de critérios para avaliar as pretensões perante ela formuladas pelos particulares, outro será o de produzir normas de carácter abstracto e geral, e publicados no jornal oficial de forma a que possam produzir efeitos universais. Nesta última hipótese, temos de encontrar base legal suficiente para o fazer!
9) – Especificadamente falado, independentemente de outras reflexões que se possa fazer em torno do artigo 3º do citado Despacho, certo que tal norma é ambígua, principalmente quando se invoca ela para indeferir a pretensão dos Recorridos, pois, pergunta-se:
- A pretensão do Recorridos foi indeferida porque eles não tinham o chamado Centro de PMA?
- Ou porque eles não tinham equipamentos adequados?
- Ou Será que eles não dominam os conhecimentos técnicos nesta área?
- Ou ainda, será que eles não obtiveram a respectiva licença para esta finalidade?
10) – É de ver que, à volta deste ponto, e independentemente da conclusão da ilegalidade do citado Despacho, a norma do artigo 3º, uma vez invocada para indeferir a pretensão dos Recorridos, é ambígua e não é bastante para formular juízo negativo sobre a pretensão dos Recorridos.
11) – Porém, o mais importante não é a norma do artigo 3º das Instruções em análise, pois, ela não se pode sobreviver sozinho, visto que o seu conteúdo em si não nos parece poder suscitar problemas complicados. Mas, quando conjugamos o seu conteúdo com a norma do artigo 2º das Instruções e artigo 123º da Lei básica, já se suscita problema ao nível da competência
O artigo 2º das Instruções tem o seguinte teor:
Este artigo 2º das Instruções, para além de tocar matérias importantes (manipulação gamética ou embrionária, Fertilização in vitro; Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos), vem mexer com a política de saúde e a filosofia nesta matéria que caem na alçada do Governo da RAEM.
Técnicas de PMA
Para efeitos das presentes instruções são consideradas técnicas de PMA todas as técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias destinadas à formação de um embrião humano, nomeadamente:
1) Inseminação artificial;
2) Fertilização in vitro; e
3) Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos.
Ou seja, o conteúdo este artigo pressupõe uma política previamente definida pelo Governo da RAEM! E como tal, haverá lugar então à aplicação do artigo 123º da Lei Básica que dispõe:
“O Governo da Região Administrativa Especial de Macau define, por si próprio, a política respeitante à promoção dos serviços de medicina e saúde e ao desenvolvimento da medicina e farmacologia chinesas e ocidentais. As associações sociais e os particulares podem prestar, nos termos da lei, serviços de medicina e saúde de qualquer tipo.”
Ora, o Governo pode não querer intervir, nesta fase e nesta matéria, ou mesmo que queira, há-de definir com que forma e que método é que tais matérias devem ser reguladas e densificadas!
Uma vez que o Governo não foi chamado para assumir este papel, e um serviço personalizado veio a tocá-las autonomamente, há invasão do espaço reservado ao Governo pela DSS, o que determina a ilegalidade da actuação desta última ao emitir tais Instruções.
Nestes termos, é de manter a decisão recorrida.
*
Um outro aspecto que a Entidade Recorrida veio a suscitar nesta sede de recurso que, para defender a sua legalidade de actuação, veio a invocar o artigo 5º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 84/90/M, de 31 de Dezembro, entendendo que o legislador atribuiu aos SSM a competência para aprovar as regras a que devem obediência os estabelecimentos de saúde privados, quanto às respectivas instalações e equipamentos.
O artigo 5º do citado DL dispõe:
“Artigo 5.º
(Requisitos para o licenciamento)
1. Podem exercer as profissões referidas na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º, os indivíduos que:
a) Possuam capacidade profissional;
b) Não estejam abrangidos por incompatibilidades para o exercício da profissão;
c) Tenham residência legal no Território;
d) Não tenham sido condenados por crime doloso contra a saúde pública ou por crime de comércio ou fornecimento ilícito de estupefacientes e psicotrópicos;
e) Possuam instalações e equipamentos adequados ao exercício da profissão.
2. A autorização para a abertura e o funcionamento dos estabelecimentos referidos na alínea b) do n.º 2 do artigo 1.º depende do preenchimento dos seguintes requisitos gerais:
a) Ter o requerente residência em Macau ou, tratando-se de pessoa colectiva, ter sede no Território e encontrar-se legalmente constituída;
b) Encontrarem-se inscritos na Direcção dos Serviços de Saúde, nos termos previstos neste diploma, os indivíduos que vão exercer as funções de direcção técnica dos estabelecimentos e aqueles que neles vão prestar cuidados de saúde ou exercer funções técnicas auxiliares desta prestação;
c) Terem as instalações e os equipamentos afectos ao estabelecimento as condições adequadas à actividade que nele vai ser exercida, de acordo com as regras fixadas pela Direcção dos Serviços de Saúde e as normas em vigor sobre segurança, higiene e salubridade dos estabelecimentos industriais.”
Em princípio, parece que sim, mas como se trata de matéria inserida no âmbito da política de saúde do Governo, que não definiu, falta assim a “legitimidade” da intervenção da Entidade Recorrida.
Neste ponto, é pertinente a observação do Digno. Magistrado do MP:
“Mas, no recurso jurisdicional, veio o recorrente avançar um outro fundamento para legitimar o seu poder regulamentar para emissão da norma do artigo 3.° das instruções aprovadas pelo Despacho n.º 12/SS/2017, invocando para talo artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro.
Segundo este normativo, a autorização para abertura e funcionamento dos estabelecimentos destinados à prestação de cuidados de saúde depende, entre outros, do requisito de as respectivas instalações e equipamentos possuírem as condições adequadas à actividade que nele vai ser exercida, de acordo com as regras fixadas pela Direcção dos Serviços de Saúde.
Este artigo remete, na verdade, para regras a fixar pela Direcção dos Serviços de Saúde. Só que, salvo melhor juízo, essas regras não abrangem a matéria que o Director dos Serviços de Saúde regulou no artigo 3.° das aludidas instruções. Tais regras visam apenas instalações e equipamentos necessários para a actividade, no caso para a actividade de prestação de técnicas de procriação medicamente assistida, ou seja, visam os espaços físicos e os equipamentos tidos por adequados para tal actividade. Pois bem, o que está estipulado no artigo 3.° das instruções são as valências de cuidados de saúde que uma unidade privada tem que assegurar se quiser operar em matéria de técnicas de procriação medicamente assistida, o que interfere com matéria totalmente diversa da componente instalações e equipamentos.
Assim, também a norma do artigo 5.°, n.º 2, alínea c), do DL 84/90/M, de 31 de Dezembro, não cauciona a legalidade da actividade regulamentar substanciada no artigo 3.° das instruções aprovadas pelo Despacho n.° 12/SS/2017, pelo que o juízo de ilegalidade desta norma formulado na sentença recorrida permanece incólume.
Daí que igualmente improceda este fundamento do recurso.”
Leitura esta que acompanhamos.
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Pelo exposto, na sequência de concordância com as linhas gerais do raciocínio da douta sentença do Tribunal a quo, com base nos argumentos acima produzidos por nós, mantemos a decisão recorrida.
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Síntese conclusiva:
I - Está em causa a regulação do exercício de procriação médica assistida (PMA), no âmbito do qual o Director dos Serviços de Saúde emitiu o aludido Despacho n.º 12/SS/2017, publicado no BOM nº 19, de 10/05/2017, em que contém um anexo, intitulado de Instruções para a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), composto por 23 artigos, que tocam a matérias vastas, de carácter técnico, administrativo e procedimental.
II – Sendo a DSS uma pessoa colectiva com personalidade jurídica própria, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro), é um órgão da Administração Indirecta3. Isto é a DSS não faz parte da Administração Pública Directa, integrada no GOVERNO da RAEM, em sentido técnico-jurídico-administrativo. É por esta razão que a sua lei orgânica estatui que a DSS está sujeita à tutela do Chefe do Executivo da RAEM.
III – No exercício das suas competências, à Entidade Recorrida é reconhecido o poder de emitir instruções na área de saúde, mas este poder deve ser exercido nas restritas condições legalmente fixadas.
IV – O artigo 2º das Instruções, para além de tocar matérias importantes (manipulação gamética ou embrionária, Fertilização in vitro; Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos), vem mexer com a política de saúde e a filosofia nesta matéria que caem na alçada do Governo da RAEM.
V - Ou seja, o conteúdo este artigo pressupõe uma política previamente definida pelo Governo da RAEM! E como tal, haverá lugar então à aplicação do artigo 123º da Lei Básica que dispõe:
“O Governo da Região Administrativa Especial de Macau define, por si próprio, a política respeitante à promoção dos serviços de medicina e saúde e ao desenvolvimento da medicina e farmacologia chinesas e ocidentais. As associações sociais e os particulares podem prestar, nos termos da lei, serviços de medicina e saúde de qualquer tipo.”
Ora, o Governo pode não querer intervir, nesta fase e nesta matéria, ou mesmo que queira, há-de definir com que forma e que método é que tais matérias devem ser reguladas e densificadas!
VI - Uma vez que o Governo não foi chamado para assumir este papel, e um serviço personalizado veio a tocá-las autonomamente, há invasão do espaço reservado ao Governo pela DSS, o que determina a ilegalidade da actuação desta última ao emitir tais Instruções.
VII – Pelo que, julgando ilegais as Instruções em causa, como a decisão de indeferimento foi tomada com base nestas Instruções, é de anular a decisão recorrida, por padecer de vício de ilegalidade, tal como o Tribunal Administrativo assim decidiu, mantendo-se assim a sentença proferida pelo mesmo.
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Tudo visto, resta decidir.
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V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se a sentença recorrida proferida pelo Tribunal Administrativo.
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Sem custas por isenção subjectiva.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 18 de Julho de 2019.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
1 O artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro.
2 O artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro.
3 O artigo 1º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro.
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