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Processo nº 271/2019
Data do Acórdão: 18JUL2019


Assuntos:

Divórcio litigioso
Causa de pedir
Separação de facto
Propósito de não restabelecer a comunhão de vida


SUMÁRIO


1. Ao autor incumbe a iniciativa de afirmar os factos essenciais ao direito que invoca.

2. Se o autor pretender ver procedente a acção de divórcio litigioso com fundamento na separação de facto, é preciso cumprir o ónus de alegar e provar o facto essencial de o propósito, da parte de ambos, ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida.

3. É admissível o entendimento de que da simples propositura da acção de divórcio litigioso com fundamento na separação de facto faz presumir o propósito, por parte do cônjuge autor, de não voltar a estabelecer a vida em comum com o cônjuge réu.

4. Todavia, numa acção de divórcio litigioso em que foi invocada como causa de pedir os factos demonstrativos da violação por parte do cônjuge réu dos deveres conjugais de fidelidade e de respeito, a simples propositura da acção já não dispensa o Autor do seu ónus de alegar e provar o facto essencial do propósito de não restabelecer a vida em comum, se pretender ver, a título subsidiário, procedente a acção com fundamento na separação de facto.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 271/2019


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção especial de divórcio litigioso, registada sob o nº FM1-17-0029-CDL, do Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

   A, do sexo masculino, casado, natural de Macau, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM nº ..., e residente em Macau na …,
   vem instaurar acção especial de divórcio litigioso contra
   B, do sexo feminino, casada, natural de R.P.C., de nacionalidade chinesa, e residente em Macau na….
   Para tanto alega o Autor que entre si e a Ré foi celebrado casamento em 27.11.2003, sendo que a partir de 2015 a relação do casal começou a deteriorar-se uma vez que a Ré ralhava com frequência com o Autor e o agredia fisicamente deixando-o com ferimentos, sendo frequente terem de recorrer ao auxílio da polícia quando havia disputas. A Ré em Janeiro de 2016 levou um homem para casa com quem teve relações sexuais.
   Não aguentando a situação o Autor em Dezembro de 2015 saiu de casa e desde então nunca mais houve entre os cônjuges comunhão de leito, mesa e habitação, nem a possibilidade de os dois voltarem a ter uma vida em comum.
   Concluindo pede o Autor que seja julgada procedente a presente acção de divórcio e assim, decretar o divórcio por culpa exclusiva da Ré.
   Citada a Ré para querendo contestar veio esta fazê-lo defendendo-se por impugnação e deduzir reconvenção alegando que em Fevereiro de 2016 o Autor saiu de casa e nunca mais prestou quaisquer cuidados à Ré nem aos três filhos de ambos, desenvolvendo a partir daí uma relação romântica com uma outra senhora, violando assim o dever de coabitação, fidelidade e respeito a que estava obrigado.
   Mais invoca que ao longo do casamento o Autor raramente contribuiu para as despesas do lar e que desde que saiu de casa nunca mais o fez, pelo que violou os deveres de cooperação e assistência comprometendo com o seu comportamento qualquer possibilidade de vida em comum.
   Concluindo pede que a presente acção seja julgada totalmente improcedente, por não provada. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve o pedido reconvencional ser julgada totalmente procedente, e consequentemente, ser decretado o divórcio, declarando o A. como principal culpado, por violação do disposto nos artigos 1533º, 1535º a 1537º, conjugadamente com o disposto no artigo 1635º e 1642º, todos C.C..
   O Autor replicou defendendo-se por impugnação.
   Foi proferido despacho saneador, sendo admitida a reconvenção e selecionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
   Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal, mantendo-se a validade da instância.
   
   Nestes autos apurou-se a seguinte factualidade:
a) O Autor e a Ré contraíram casamento na Conservatória de Registo Civil de Macau, no dia 27 de Novembro de 2003; (alínea a) dos factos assentes)
b) Durante a constância do casamento, o Autor e a Ré tiveram três filhos, nomeadamente C (nascido no dia 7 de Novembro de 2005), D (nascido em 30 de Outubro de 2006) e E (nascida em 16 de Dezembro de 2009); (alínea b) dos factos assentes)
c) Por disputas entre o Autor e Ré surgidas em 31 de Janeiro de 2015, 23 de Fevereiro de 2015, 29 de Junho de 2015, 8 de Dezembro de 2015, 30 de Março de 2016, 8 de Maio de 2016, 9 de Maio de 2016, 14 de Julho de 2016, 22 de Novembro de 2016, 24 de Dezembro de 2016, 25 de Dezembro de 2016, 26 de Dezembro de 2016 e 28 de Dezembro de 2016, tiveram de pedir o auxílio da Polícia; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória)
d) Autor e Ré pelo menos desde Agosto de 2016 que não vivem juntos; (resposta ao quesito nº 5 da base instrutória)
e) Pelo menos desde Agosto de 2016 o Autor e a Ré deixaram de ter uma vida conjugal normal, nomeadamente comunhão de leito, mesa e habitação; (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
f) Desde há pelo menos sete anos que a Ré recorre ao apoio da organização sem fins lucrativos denominada por “Irmãs de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor”; (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
g) Em 01.02.2015 pelas 3 da manhã a R. com os três filhos do casal permaneceu no Centro de Solidariedade Lai Yuen da Associação das Mulheres de Macau; (resposta ao quesito nº 10 da base instrutória)
h) Relativamente à queixa da Ré no processo nº 4569/2016, o Ministério Público apesar da desistência de ofendida considerou que havia fortes indícios que o Autor tinha atacado a Ré que “devendo ser censurado”; (resposta ao quesito nº 11 da base instrutória)
i) Os filhos do sexo masculino do Autor e da Ré foram para o Lar Vila Lok Tou em 10.05.2016; (resposta ao quesito nº 13 da base instrutória)
j) A Ré apresentou queixa por violência doméstica em 12.12.2016; (resposta ao quesito nº 14 da base instrutória)
k) A Ré apresentou queixa em 28.12.2016; (resposta ao quesito nº 15 da base instrutória)
l) A R. recorreu à Caritas para receber apoio alimentar em 08.03.2015 a 16.05.2015, 28.06.2015 a 05.09.2015 e 01.05.2016 a 09.07.2016; (resposta ao quesito nº 19 da base instrutória)

Cumpre assim apreciar e decidir.

De acordo com o disposto no nº 2 do artº 1628º do C.Civ. «o divórcio litigioso é requerido no tribunal por um dos cônjuges contra o outro, com algum dos fundamentos previstos nos artigos 1635º e 1637º».
Nos termos da alínea a) do artº 1637º do C.Civ. é fundamento de divórcio litigioso a separação de facto dos cônjuges por dois anos consecutivos, sendo que o divórcio pode ser requerido por qualquer dos cônjuges nos termos do nº 2 do artº 1640º do C.Civ..
No caso dos autos não foi feita prova alguma quanto à alegada violação dos deveres conjugais, sendo que, o facto de se apresentarem queixas à Polícia não permite concluir que tenha havido violação de qualquer dever conjugal sem que haja sido feita prova do facto objecto da queixa o que, em momento algum aconteceu.
De igual modo embora se alegasse a factualidade relativa à separação de facto dos cônjuges, o certo é que, apenas se provou que desde Agosto de 2016 não há comunhão de leito, mesa e habitação, contudo, não se alegou nem provou que também não há da parte de um dos cônjuges ou de ambos o propósito de não restabelecer a vida em comum.
Destarte, não se provando os factos de onde Autor e Ré pretendiam fazer emergir o direito ao divórcio, não pode a presente acção ter outra sorte que não seja a de ser julgada improcedente.

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a acção e reconvenção improcedentes por não provadas e em consequência absolvem-se Autor e Ré dos respectivos pedidos.

Custas a cargo do Autor e Ré em partes iguais.
Registe e Notifique.

Não se conformando com o decidido, veio o Autor recorrer da mesma concluindo que:

1. 被上訴之判決無認定上訴人與被上訴人不欲維持婚姻關係,具有違反一般經驗法則的瑕疵。或者在最少在有關事實中,應認定“即使不在2016年8月起決意與被告分開,但提起訴訟時便肯定已不欲維持婚姻關係”。
2. 被上訴判決沾有推論事實違反一般經驗法則,以及適用法律錯誤之瑕疵,並違反澳門《民法典》第1638條規定。
3. 因此,“不欲維持婚姻關係之意圖”得由上訴法院以事實推論得出之結論作認定,並判決離婚請求由成立。

Ao recurso não respondeu a Ré.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Tendo em conta o alegado e concluído na petição do recurso, a única questão que constitui o objecto da nossa apreciação e a de saber se se mostra provado o propósito por parte do Autor de não restabelecer a vida em comum.

Apreciemos.

In casu, foi com fundamento na violação dos deveres de fidelidade e de respeito que o Autor instaurou a presente acção de divórcio litigioso.

Da leitura da sentença resulta que foi com fundamento na não comprovação dos factos quanto à violação dos deveres conjugais e na falta da alegação nem a demonstração de que não há por parte de um dos cônjuges ou de ambos o propósito de não restabelecer a vida em comum que o Tribunal a quo julgou improcedente a acção, não obstante o apuramento da falta da comunhão de leito, mesa e habitação entre o Autor e a Ré desde AGO2016.

Para o recorrente, a intenção de não restabelecer a vida em comum pode ser tirada, mediante presunção judicial, do simples facto de o Autor ter instaurado a presente acção de divórcio litigioso.

Vejamos.

Para o Tribunal a quo, a matéria não diz, de per si, se houve a vontade de não restabelecer a vida em comum, apesar de ter como assente o facto de ambas as partes se separarem desde AGO2016, ou seja, há mais de dois anos.

Para o recorrente, a intenção de não restabelecer a vida em comum, que existe na cabeça do Autor, pelo menos, a partir do momento da instauração da presente acção, pode ser tirada mediante a ilação judicial.

Ora, como se sabe, ao Autor incumbe a iniciativa de afirmar os factos essenciais ao direito que invoca.

No caso de divórcio litigioso com fundamento na separação de facto, um dos factos essenciais é a falta, da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não restabelecer a comunhão de vida.

In casu, o fundamento da acção é a alegada violação dos deveres de fidelidade e de respeito.

Para o efeito, toda a causa de pedir foi redigida por forma a tentar persuadir o Tribunal da existência dos factos demonstrativos da violação por parte da Ré dos deveres de fidelidade e de respeito, sendo certo que o facto de o Autor ter deixado de viver na casa da morada de família é apenas descrito pelo Autor como um facto meramente instrumental, consequente dos incidentes ocorridos entre os cônjuges, que na óptica do Autor, demonstrativos da violação dos tais deveres conjugais por parte da Ré.

Não obstante a alegação de o Autor deixar a casa de morada da família, o certo é que isto não foi descrito com causador da formação da vontade na cabeça do Autor de não restabelecer a vida em comum.

Ora, não nos repugnamos admitir o entendimento de que a simples propositura da acção de divórcio litigioso com fundamento na separação de facto é reveladora do propósito, por parte do cônjuge autor, de não voltar a estabelecer a vida em comum com o cônjuge réu – cf. Acórdão do TSI de 16MAIO2019, tirado no proc. 894/2018.

Todavia, no caso como este que está sub judice, já temos toda a legitimidade para crer que, tendo em conta os termos em que foi configurada a causa de pedir, a simples propositura da acção de divórcio com fundamento na violação dos deveres conjugais de fidelidade e de respeito já não dispensa o Autor do seu ónus de alegar e provar o facto essencial do propósito de não restabelecer a vida em comum, se pretender ver, a título subsidiário, procedente a acção de divórcio com fundamento na separação de facto.

Portanto, não tendo sido invocada como facto essencial da causa de pedir na presente acção a separação de facto, o simples facto de o Autor ter instaurado a acção de divórcio litigioso não faz presumir a vontade de não restabelecer a vida em comum com fundamento na separação de facto.

À luz do artº 1638º/2 do CC, “há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.”.

Não tendo o Autor cumprido o ónus de alegar factos essenciais de modo a demonstrar do elemento subjectivo, que consiste na disposição interior de foro afectivo, por parte de um ou de ambos os cônjuges, de não restabelecer a comunhão de vida, não pode deixar de improceder a acção.

Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo, e nada temos a censurar a sentença recorrida.

Em conclusão:

1. Ao autor incumbe a iniciativa de afirmar os factos essenciais ao direito que invoca.

2. Se o autor pretender ver procedente a acção de divórcio litigioso com fundamento na separação de facto, é preciso cumprir o ónus de alegar e provar o facto essencial de o propósito, da parte de ambos, ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida.

3. É admissível o entendimento de que da simples propositura da acção de divórcio litigioso com fundamento na separação de facto faz presumir o propósito, por parte do cônjuge autor, de não voltar a estabelecer a vida em comum com o cônjuge réu.

4. Todavia, numa acção de divórcio litigioso em que foi invocada como causa de pedir os factos demonstrativos da violação por parte do cônjuge réu dos deveres conjugais de fidelidade e de respeito, a simples propositura da acção já não dispensa o Autor do seu ónus de alegar e provar o facto essencial do propósito de não restabelecer a vida em comum, se pretender ver, a título subsidiário, procedente a acção com fundamento na separação de facto.


Tudo visto, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar improcedente o recurso e manter na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo Autor recorrente.

Registe e notifique.

RAEM, 18JUL2019

Lai Kin Hong

Fong Man Chong

Ho Wai Neng
Ac. 271/2019-12