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Processo n.º 752/2018 Data do acórdão: 2019-7-25
Assuntos:
– qualidade de funcionário
– art.o 336.o, n.o 2, alínea c), do Código Penal
– crimes cometidos no exercício de funções públicas
– conceito tradicional de funcionário
– agente da Administração Pública
– injúria agravada
– ofensa qualificada à integridade física
– art.o 129.o, n.o 2, alínea h), do Código Penal
– art.o 178.o do Código Penal
– art.o 140.o, n.o 2, do Código Penal
– croupier de casino
S U M Á R I O
1. Para efeitos de hermenêutica jurídica da alínea c) do n.o 2 do art.o 336.o do Código Penal (CP), é de entender que fora do âmbito do capítulo de normas sobre crimes cometidos no exercício de funções públicas (e nem mesmo em todos estes crimes, pois alguns supõem características mais especificadas, cf., exemplificativamente, o art.o 349.o do CP), todos os crimes que exijam a qualidade de funcionário para o agente activo (ou passivo) referem-se ao conceito, tradicional e específico do direito público, de agente da Administração, ou das demais entidades públicas.
2. No caso, como os crimes de injúria agravada e de ofensa qualificada à integridade física por que vinha inicialmente acusado o arguido não fazem parte do capítulo de normas referente a crimes cometidos no exercício de funções públicas, a expressão “funcionário” constante do disposto na alínea h) do n.o 2 do art.o 129.o do CP, para efeitos a relevar quer do art.o 178.o do CP quer do art.o 140.o (n.o 2) do CP, deve ser interpretada no seu conceito tradicional e específico do direito público.
3. Não sendo o arguido, como croupier de um casino em Macau explorado por uma sociedade comercial privada, um trabalhador da Administração Pública de Macau na acepção tradicional e específico deste termo no direito público, não pode proceder a pretensão do assistente e do Ministério de condenação do arguido em sede dos ditos crimes de injúria agravada e de ofensa qualificada à integridade física.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 752/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
Ministério Público
Assistente A
Recorrido:
Arguido B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 284 a 292v do Processo Comum Colectivo n.o CR2-16-0301-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido B, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material de um crime consumado de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.o 137.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em três meses de prisão, e de um crime consumado de injúria, p. e p. pelo art.o 175.o, n.o 1, do CP, em um mês e quinze dias de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de quatro meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, e mais condenado na obrigação de pagar MOP5.118,00 (cinco mil, cento e dezoito patacas) de indemnização (de danos patrimoniais e não patrimoniais) ao ofendido (já constituído assistente) A, com juros legais desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformado, veio recorrer o assistente para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no essencial), na sua motivação apresentada a fls. 297 a 302 dos presentes autos correspondentes, que o conceito de funcionário definido no art.o 336.o do CP, dadas as palavras “Para efeitos do disposto no presente Código”, é aplicável a todas as disposições do CP, e não só às do capítulo de normas em que se insere este artigo, pelo que deve ser o arguido condenado, como inicialmente vinha acusado, pela autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa qualificada à integridade física, p. e p. pelos art.os 137.o, n.o 1, 140.o, n.os 1 e 2, 129.o, n.o 2, alínea h), e 336.o, n.o 2, alínea c), do CP, em pena de prisão não inferior a cinco meses, e de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos art.os 175.o, n.o 1, 178.o, 129.o, n.o 2, alínea h), e 336.o, n.o 2, alínea c), do CP, em pena de prisão não inferior a dois meses, e, em cúmulo jurídico, finalmente numa pena única não inferior a seis meses de prisão.
Recorreu também a Digna Delegada do Procurador a fls. 306 a 308v, para pedir a condenação do arguido por um crime consumado de injúria agravada e um crime consumado de ofensa qualificada à integridade, preconizando, em suma, que o conceito definitório de funcionário no art.o 336.o do CP é aplicável na interpretação de todo o CP.
Aos recursos do assistente e do Ministério Público, respondeu o arguido respectivamente a fls. 315 a 317 e a fls. 321 a 323, no sentido igual de improcedência dos recursos.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, emitiu parecer a fls. 336 a 337, opinando que:
– o conceito de funcionário do art.o 336.o do CP é aplicável a todas as disposições do CP, até porque em inúmeros processos penais anteriores, diversas pessoas foram condenadas por prática de crimes de injúria agravada e de ofensa qualificada contra polícias ou trabalhadores da função pública em exercício das funções, daí que no caso dos autos, o ofendido deve ser considerado como detendo qualidade equiparável à de funcionário público;
– entretanto, como no caso dos autos não se vislumbra, ante a matéria de facto provada, que o arguido, como turista a jogar no casino dos autos em que trabalhava o ofendido como croupier, tenha sabido, no momento da prática dos factos de injúria e de ofensa corporal ao mesmo ofendido, da qualidade deste, no plano jurídico, como funcionário público, não se pode condenar o arguido pelo crime de injúria agravada nem pelo crime de ofensa qualificada à integridade física, por não ser de dar por verificados cabalmente todos os elementos constitutivos do dolo destes dois delitos inicialmente acusados.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
No acórdão ora recorrido, proferido a fls. 284 a 292v, afirmou o Tribunal Colectivo seu autor que o conceito de funcionário definido no art.o 336.o do CP, como está inserido no capítulo de normas sobre crimes cometidos no exercício de funções públicas, dispõe sobre a qualidade de agente de crime, e não sobre a qualidade de ofendido, pelo que o ofendido dos autos não pode ser considerado como tendo a qualidade de funcionário (cfr. mormente o segundo parágrafo da página 13 do texto do aresto recorrido, a fl. 290).
Segundo a matéria de facto descrita como provada nesse acórdão, o ofendido (ora recorrente) era croupier de um casino em Macau, e no exercício dessas suas funções em 23 de Abril de 2016, foi insultado (por palavrões) e batido (na costa da sua mão direita) pelo arguido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Ambos os dois recursos sub judice colocam a mesma questão jurídica, qual seja, a de saber se o ofendido do caso dos autos, sendo um croupier num casino em Macau, deve ser considerado funcionário, nos termos da alínea c) do n.o 2 do art.o 336.o do CP, para efeitos da incriminação do arguido ora recorrido em sede dos crimes de injúria agravada e de ofensa qualificada à integridade física.
O art.o 336.o do CP, tendo por epígrafe “Conceito de funcionário”, prescreve que:
“1. Para os efeitos do disposto no presente Código, a expressão funcionário abrange:
a) O trabalhador da administração pública ou de outras pessoas colectivas públicas;
b) O trabalhador ao serviço de outros poderes públicos;
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar ou colaborar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional.
2. Ao funcionário são equiparados:
a) […];
b) […];
c) Os titulares dos órgãos de administração, de fiscalização ou de outra natureza e os trabalhadores de empresas públicas, de empresas de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, bem como de empresas concessionárias de serviços ou bens públicos ou de sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo.”
Pois bem, para efeitos de hermenêutica jurídica da alínea c) do n.o 2 desse art.o 336.o do CP, é de considerar, mutatis mutandis, o seguinte, na esteira da análise doutrinária anotadora do preceito semelhante do n.o 2 do art.o 386.o do Código Penal de Portugal (que dispõe que “Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares de órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos”), veiculada no Tomo III do COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, dirigido por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Coimbra Editora, 2001:
– fora do âmbito do capítulo de normas sobre crimes cometidos no exercício de funções públicas (e nem mesmo em todos estes crimes, pois alguns supõem características mais especificadas, cf., exemplificativamente, o art.o 349.o do CP de Macau), todos os crimes que exijam a qualidade de funcionário para o agente activo (ou passivo) referem-se ao conceito, tradicional e específico do direito público, de agente da Administração, ou das demais entidades públicas.
No caso dos autos, como os crimes de injúria agravada e de ofensa qualificada à integridade física por que vinha inicialmente acusado o arguido ora recorrido não fazem parte do capítulo referente a crimes cometidos no exercício de funções públicas, a expressão “funcionário” constante do disposto na alínea h) do n.o 2 do art.o 129.o do CP, para efeitos a relevar quer do art.o 178.o do CP quer do art.o 140.o (n.o 2) do mesmo Código, deve ser interpretada no seu conceito tradicional e específico do direito público.
Não sendo o arguido, como croupier de um casino em Macau explorado por uma sociedade comercial privada, um trabalhador da Administração Pública de Macau na acepção tradicional e específico deste termo no direito público de Macau, não pode proceder a pretensão do assistente e do Ministério de condenação do arguido em sede dos ditos crimes de injúria agravada e de ofensa qualificada à integridade física.
Improcedem os recursos sub judice, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos do assistente e do Ministério Público.
Sem custas no recurso do Ministério Público, por esta Entidade estar isenta legalmente delas. Fixam em mil patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso que minutou a resposta do arguido a esse recurso, quantia essa a ser suportada pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Pagará o assistente duas UC de taxa de justiça por decaimento do seu recurso. Fixam em mil patacas os honorários do mesmo Ex.mo Defensor Oficioso por ter minutado também a resposta do arguido a esse recurso, quantia essa a ser suportada igualmente pelo referido Gabinete.
Macau, 25 de Julho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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