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Processo nº 668/2019 Data: 25.07.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “peculato”.
Crime de “abuso de confiança”.
Troca – desvio – de fichas de jogo por croupier.
Qualificação jurídica.


SUMÁRIO

1. Os elementos constitutivos do crime de “peculato” abrangem os elementos do “furto”, (subtracção ilegítima de coisa móvel alheia), e do “abuso de confiança”, (apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha sido entregue ao agente ou esteja na sua posse).

2. Entre o “peculato” e o “abuso de confiança” há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.

3. Um croupier de 1 casino que, no âmbito das suas funções, se apropria de fichas de jogo, incorre na prática do crime de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 do C.P.M..

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 668/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A e B, (1° e 2ª) arguidos com os restantes sinais dos autos, responderam no T.J.B. sob a acusação da prática como co-autores de 1 crime de “peculato”, (na forma continuada), p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., vindo, a final, a ser condenados como co-autores da prática de 1 crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 do C.P.M., na pena individual de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e no pagamento solidário da quantia total de HKD$42.000,00 (MOP$43.260,00) à demandante/assistente “C MACAU, S.A.”, (“C澳門股份有限公司”); (cfr., fls. 101 a 103-v e 220 a 229-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, recorreu o Ministério Público, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “errada qualificação jurídica”, pedindo a condenação dos ditos arguidos como co-autores de 1 crime de “peculato”, (na forma continuada), p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., como acusados tinham sido; (cfr., fls. 239 a 241-v).

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Sem resposta, e admitido o recurso com o efeito e modo de subida adequadamente fixados, (cfr., fls. 246), foram os autos remetidos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação (cfr. fls.239 a 241v dos autos), a magistrada do Ministério Público assacou um erro de subsunção ao Acórdão em questão (cfr. fls.220 a 229v dos autos), traduzido em infringir as disposições no n.°1 do art.340° ex vi na alínea c) do n.°2 do art.336° do Código Penal de Macau (CPM).
Sem embargo do muito respeito pela opinião diferente, inclinamos a entender que o recurso em apreço merece provimento.
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Note-se que num caso em que na devida altura, o arguido exercia funções de croupier num Casino sediado na RAEM e, mancomunado com outros, se apropriou sempre de fichas de jogo pertencentes à sua entidade patronal, que estavam na sua posse, como instrumento de trabalho e como produto do trabalho, o Venerando TUI esclareceu a relação entre o crime de peculato, o de furto e o de abuso de confiança, bem como fixou a iluminativa orientação jurisprudencial de que “Entre o peculato e o abuso de confiança e entre o peculato e o furto simples há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.” (vide. Acórdão no Processo n.°42/2016)
A condenação operada pelo Venerando TUI no Acórdão supra aludido torna iniludível que o “croupier” dos casinos exploradores do jogo de fortuna e azar na RAEM se equipara ao funcionário nos termos e para os efeitos previstos na alínea c) do n.°2 do art.336° do CPM.
A nossa leitura semeia-nos a ideia de que a maioria da jurisprudência do Venerando TSI vem andando no sentido de encaixar o “croupier” no alcance da alínea c) do n.°2 do art.336° do CPM. Pois, o que nos dão a conta os prudentes veredictos decretados designadamente nos Processos n.°260/2010, n.°828/2011, n.°870/2016 e n.°835/20I7.
Subsumindo os factos dados por provados no Acórdão recorrido em conformidade com as sensatas jurisprudências acima citadas, afigura-se-nos que infringe os preceitos no n.°1 do art.340° e na alínea c) do n.°2 do art.336° CPM a subsunção efectuada pelo Tribunal a quo que procedeu à convolação do crime indicado na Acusação.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do presente recurso”; (cfr., fls. 260 a 260-v).

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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 222-v a 224-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como se deixou relatado, vem o Ministério Público recorrer do Acórdão prolatado pelo T.J.B., insurgindo-se contra a decisão de condenação dos arguidos como co-autores da prática de 1 crime de “abuso de confiança”, (p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 do C.P.M., na pena individual de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e no pagamento solidário da quantia total de HKD$42.000,00 à demandante/assistente).

É de opinião que incorreu o Colectivo a quo em “erro na qualificação jurídico-penal” da matéria de facto dada como provada, pedindo a condenação dos ditos arguidos como co-autores de 1 crime de “peculato”, (na forma continuada), p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., como acusados foram.

Identificada que assim fica a “questão” (apenas de direito) a tratar e decidir no âmbito do presente recurso, vejamos, sendo de consignar desde já que o recurso se nos apresenta como merecedor de provimento.

Com efeito, sem prejuízo do respeito por entendimento em sentido diverso, (cfr., v.g., sobre a questão, L. Cavaleiro de Ferreira in “O jogo, a fraude e o crime”, comunicação apresentada na “10 Conferência Internacional – As Reformas Jurídicas de Macau no Contexto Global – O Direito do Jogo”, B.F.D.U.M., Ano XXII, n.° 43, 2018, pág. 231 e segs.), e como se salienta no douto Parecer do Ministério Público, está a posição do ora Recorrente em sintonia com a maioria das decisões dos vários Tribunais de Macau sobre a matéria, sendo também a que a este Colectivo se mostra de adoptar, valendo, igualmente, a pena aqui realçar o (citado) Acórdão do Vdo T.U.I. de 22.07.2016, Proc. n.° 42/2016, onde, perante factualidade análoga à dada como provada nos presentes autos, e apreciando idêntica questão à agora trazida a esta Instância, considerou o que segue:

“(…).
Pratica o crime de furto “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” (n.º 1 do artigo 197.º do Código Penal), sendo que se o valor da coisa exceder 150 000 patacas, o crime é qualificado e a pena correspondente a de 2 a 10 anos deprisão [alínea b) do artigo 196.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 198.º].
Por outro lado, “Quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” (n.º 1 do artigo 199.º do Código Penal), por estar em causa a prática de crime de abuso de confiança.
Se o valor da coisa exceder 150 000 patacas, o crime de abuso de confiança é qualificado e a penalidade correspondente a de 1 a 8 anos de prisão [alínea b) do artigo 196.º e alínea b) do n.º 4 do artigo 199.º].
Importa distinguir os crimes de abuso de confiança e de furto.
Como explica JORGE FIGUEIREDO DIAS «Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma … violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, “apropriação indevida”)».
E «O crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, “ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de ‘subtrair’ a coisa”».
Finalmente, o Código Penal prevê, a título do crime de peculato, que “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (n.º 1 do artigo 340.º).
Os elementos constitutivos do crime de peculato abrangem os elementos do furto (subtracção ilegítima de coisa móvel alheia) e do abuso de confiança (apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha sido entregue ao agente ou esteja na sua posse).
«Pode dizer-se que o crime de peculato é um crime de furto qualificado em razão da qualidade especial do agente (ou especial função que desempenha, onde se engloba a sua relação com os bens objecto do presente crime) … ou um crime de abuso de confiança qualificado em razão da qualidade de funcionário».
Põe-se, assim, a questão da existência de concurso entre os crimes de peculato e de furto e entre os crimes de peculato e de abuso de confiança.
Entre o peculato e o abuso de confiança há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.
Entre o peculato e o furto simples sucede o mesmo, por idênticas razões.
Já quanto ao crime de furto qualificado a relação com o peculato é de concurso aparente de subsidiariedade expressa, não se aplicando a penalidade do peculato, mas a do furto qualificado, mais grave, face ao disposto na parte final do n.º 1 do artigo 340.º do Código Penal”; (tendo-se, a final, confirmado a condenação do arguido dos autos como autor de 1 crime de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 do C.P.M.).

Ora, sendo – como se disse – também este o entendimento que neste T.S.I. é o maioritariamente assumido, (cfr., v.g., entre outros, o Ac. de 19.01.2017, Proc. n.° 870/2016 e, mais recentemente, o de 09.11.2018, Proc. n.° 634/2018), e clara se nos afigurando a solução que se deixou exposta para a “questão”, necessárias não nos parecem mais alongadas considerações.

Aqui chegados, e assim, aplicável sendo a pena prevista no art. 340°, n.° 1 do C.P.M., (“1 a 8 anos de prisão”, e já não a de “prisão até 3 anos ou pena de multa”, cfr., art. 199°, n.° 1), atenta a factualidade dada como provada, e da qual se destaca o “prejuízo causado”, (HKD$42.000,00), e a “primo-delinquência dos arguidos”, e atentos os critérios dos art°s 40° e 65° do mesmo C.P.M. e as fortes necessidades de prevenção criminal, (no caso, especialmente, geral, deste tipo de criminalidade), impõe-se – face ao peticionado – alterar a pena aos arguidos fixada, (que até se encontra aquém do mínimo legal aplicável), mais justa e adequada se nos apresentando a pena individual de 1 ano e 9 meses de prisão, mantendo-se o período de suspensão da sua execução.

Tudo visto, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso.

Custas pelos arguidos recorridos, com a taxa de justiça individual de 4 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 25 de Julho de 2019

José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa (Vencida por entender que era de manter a qualificação jurídica condenada pelo Tribunal “a quo”.)
Proc. 668/2019 Pág. 12

Proc. 668/2019 Pág. 13