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Processo nº 168/2019
Data do Acórdão: 25JUL2019


Assuntos:

Tribunal arbitral
Preterição de tribunal arbitral
Regra Kompetenz- Kompetenz


SUMÁRIO


Não obstante a consagração da regra Kompetenz- Kompetenz no artº 27º/1 do Decreto-Lei nº 29/96/M, o Tribunal estadual não fica impedido de interpretar, numa acção já instaurada, a cláusula compromissória, invocada pelo réu, como fundamento da excepção de preterição do tribunal arbitral, a fim de fixar o seu alcance e depois afirmar ou infirmar a sua própria competência.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 168/2019


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos de acção ordinária registada com o nº CV1-18-0015-CAO, e que correm os seus termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi no despacho saneador proferida a seguinte decisão julgando procedente a excepção por preterição de tribunal arbitral e absolvendo a Ré da instância.

  Da preterição de tribunal arbitral voluntário
  O presente pleito tem como objecto um contrato de cessão de direito ao uso de uma loja, em inglês “Agreement for Granting a Right of Use of a Shop” celebrado em 30 de Abril de 2009 entre a sociedade Ré e a Autora, relativo à loja 15, localizada no Rés-do-Chão do Hotel Grand Lapa Macau, que à data da celebração do Contrato se designava por Hotel Mandarim Oriental Macau.
  A Autora, através da presente acção judicial, visa reaver da sociedade Ré, valores que, de acordo com a tese por si apresentada, pagou indevidamente a título de Compensação pelo uso da loja (“Consideration”) e a título de Imposto do Selo, na quantia total de MOP$4,372,254.77.
  A Autora reclama ainda a devolução da caução prestada ao abrigo do referido contrato no montante de MOP$480,150.00.
  A Ré invocou na sua contestação a excepção dilatória da preterição de tribunal arbitral voluntário. Para tanto, alegou que, de acordo com a Cláusula 5 do “Third Schedule” anexo ao contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado entre as partes em 30 de Abril de 2009, afastaram-se os litígios emergentes do contrato sub judice, e que respeitem à forma de cálculo da Compensação devida pelo uso da loja, da esfera dos tribunais judiciais.
  A Autora respondeu que, o que está verdadeiramente em causa nos presentes autos é uma questão de interpretação das cláusulas contratuais que as partes escolheram, reduziram a escrito e expressamente aceitaram (maxime, a Cláusula 1 do “Third Schedule”) e não uma mera aferição contabilística, e para além disso, está ainda em causa a devolução à Autora da caução por esta prestada à Ré, nos termos da alínea h) da Cláusula 7 do Contrato, concluindo que a competência dos Tribunais da R.A.E.M. para dirimir o presente litígio é inatacável.
  Cumpre decidir.
  De acordo com o n.º l do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, que aprovou o regime da arbitragem, "A arbitragem pode ter por objecto qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis, desde que não esteja submetido por lei especial a tribunal judicial ou a arbitragem necessária."
  O artigo 4.º, n.ºl, al. b) do mesmo Decreto-Lei prevê que, “A convenção de arbitragem pela qual as partes de um litígio confiam a respectiva solução a um ou vários árbitros pode revestir uma das seguintes modalidades: b) Cláusula compromissória, quando o acordo tem por objecto litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica, de natureza contratual ou extracontratual.”
  E os n.ºs 1 a 3 do artigo 7.º do mesmo Decreto-Lei dispõem, "1. O compromisso arbitral deve determinar com precisão o objecto do litígio e designar os árbitros ou, pelo menos, indicar as modalidades de designação destes. 2. A cláusula compromissória deve especificar a relação jurídica a que os litígios eventuais respeitem. 3. Cabe ao tribunal arbitral fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo."
  Em caso em apreço, as partes estipularam na Cláusula 5 do "Third Schedule" anexo ao contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado em 30 de Abril de 2009 que "Any dispute between the parties over the amounts calculated pursuant to the preceding paragraphs, or verification under paragraph 4 hereof, shall be determined by a qualified accountant to be appointed by the President for the time being of the Macau Society of Certified Practising Accountants. Such accountant shall act as an expert whose decision, save in the case of manifest error, shall be final and binding on both parties. The cost of the appointment of the accountant and any professional charges shall be borne and paid equally by the parties."
  Trata-se de uma convenção de arbitragem constante de um contrato.
  Ao abrigo desta Cláusula, as partes estipularam que o objecto do litígio é “any dispute between the parties over the amounts calculated pursuant to the preceding paragraphs, ar verification under paragraph 4 hereof” (pelo que a relação jurídica a que os litígios eventuais respeitem é o contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado em 30 de Abril de 2009 entre as partes, e apenas respeita o cálculo dos montantes de “Consideration”) e, a modalidade de designação é que “shall be determined by a qualified accountant to be appointed by the President for the time being of the Macau Society of Certified Practising Accountants”.
  Salvo melhor opinião, a referida Cláusula não se limita no alcance de mera aferição contabilística. Sem dúvida que a Autora impugnou os valores que, de acordo com a tese por si apresentada, pagou a título de Compensação pelo uso da loja (“Consideration”) e a título de Imposto do Selo.
  Mais importante é que, de acordo com o n.º3 do artigo 7.º do Decreto-Lei 29/96/M, cabe ao tribunal arbitral, mas não este Tribunal, fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.
  As cláusulas sobre o cálculo dos montantes de Taxa Base Mensal (“Consideration”) devida pelo uso da loja e de Imposto do Selo, constantes no anexo ao contrato de cessão de direito ao uso de uma loja celebrado entre a sociedade Ré e a Autora em 30 de Abril de 2009, não respeitam a direito indisponível, pelo que as partes podiam, livremente, afastar a competência do tribunal judicial, submetendo os eventuais litígios emergentes destas cláusulas a uma entidade externa à jurisdição comum.
  Está ainda em causa a devolução à Autora da caução por esta prestada à sociedade Ré, nos termos da al. h) da Cláusula 7 do referido contrato, matéria essa parece que não é incluído na referida Cláusula compromissória. Vejamos então.
  As partes estipularam na al. h) da Cláusula 7 do referido contrato que “Upon the execution of these presents the User shall pav to the Owner the sum of Macau Patacas (MOP 384,120,00) as deposit for securing the due payment of the Consideration. Management Fee, and any other moneys payable by the User and to secure the performance and observance of the said covenants, restrictions, stipulations and conditions. At the expiration or sooner determination of the term hereby created if the User shall have paid all Consideration, rates, Management Fee, and other monies payable hereunder and if there shall be no breach of any of the said covenants, restrictions, stipulations and conditions on the User's part to be observed and performed the Owner will repay to the User within 60 days after the User has surrendered to the Owner vacant possession of the Shop the said sum without any interest thereon, but if there shall be any money due to the Owner, the Owner may apply such deposit towards payment of such sums due, and if there shall be any breach of any of the said covenants, restrictions, stipulations and conditions on the part of the User, the Owner shall pay or apply the said deposit or such part thereof as shall be required towards remedying such breach insofar as this may be possible without prejudice to any of the Owner's rights or remedies hereunder provided, and the User hereby agrees that in the event of there being any increase in Consideration agreed determined or provided for under this AGREEMENT FOR GRANTING A RIGHT OF USE OF A SHOP or any increase in Management Fee under the provisions of Clause 3 hereof or any increase in Government rates being payable hereunder then and in every such case the User shall pay to the Owner as further deposit……” (sublinhado nosso).
  As partes aceitaram que essa caução foi alvo de reforço até ao montante de MOP$480,l50.00, quantia essa foi efectivamente prestada pela Autora à Ré.
  De acordo com a referida cláusula, a caução prestada pela Autora à Ré visa garantir pagamento das quantias devidas em relação do contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado entre a sociedade Ré e a Autora, como por exemplo, pagamento das quantias a título de Compensação pelo uso da loja (“Consideration”). E caso exista alguma quantia devida à Ré, a Ré poderá aplicar tal caução para fazer face ao pagamento de tais quantias devidas.
  Isto é, uma caução resultante de negócio jurídico, tratando-se de uma garantia especial prevista no artigo 620.º do CC, mas não de uma garantia autónoma. Quer dizer, a obrigação da caução é acessória das obrigações principais do contrato.
  Nos termos da Cláusula 5 do “Third Schedule” anexo ao contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado entre as partes em 30 de Abril de 2009, afastam-se os litígios que respeitem ao cálculo dos montantes de Compensação devida pelo uso da loja e de imposto do selo, da esfera dos tribunais judiciais.
  Assim, por maioria de razão, a matéria da caução, como garantia acessória das obrigações principais, também deve ser incluindo na cláusula compromissória, afastando-se da esfera dos tribunais judiciais.
  Por outro lado, mais uma vez, de acordo com o n.º3 do artigo 7.º do Decreto-Lei 29/96/M, cabe ao tribunal arbitral, mas não este Tribunal, fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.
  Pelo exposto, de acordo com os artigos 412.º, n.º2, 413.º, al. a), 414.º, 230.º, n.ºl, al. a) e 33.º, n.º2, todos do CPC, julga-se totalmente procedente a excepção dilatória da preterição de tribunal arbitral voluntário invocada pela Ré, condenando-se a absolvição da Ré da instância.
  Custas pela Autora.

Não se conformando com essa decisão que julgou procedente a excepção, veio a Autora Companhia A Sociedade Unipessoal Limitada recorrer da mesma concluindo que:

1. O objecto do presente recurso cinge-se à específica parte do despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo nos presentes Autos (constante de fls. 1180 e seguintes dos mesmos) em que o citado Tribunal confere procedência à alegada excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário invocado pela Recorrida.
2. A Cláusula 5 do "Third Schedule" anexo ao contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado entre as Partes em 30 de Abril de 2009 reveste a qualidade de cláusula compromissória, nos termos do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho.
3. A vontade das Partes convergiu na decisão de apenas sujeitarem à arbitragem os litígios emergentes do cálculo dos montantes da Taxa Base Mensal ("Consideration") devida pelo uso da loja, desde que esse cálculo tenha sido realizado de acordo com o estipulado na Cláusulas 1, 2 ,3 e 4 do "Third Schedule", algo que não sucedeu no presente caso.
4. O que está verdadeiramente em causa nos presentes Autos é uma questão de interpretação das cláusulas contratuais que as Partes escolheram, reduziram a escrito e expressamente aceitaram (maxime, a Cláusula 1 do "Third Schedule" anexo ao contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado entre as Partes em 30 de Abril de 2009) e não uma mera aferição contabilística, pelo que o presente litígio se encontra fora do âmbito de aplicação da cláusula supra citada.
5. Está ainda em causa a devolução à Autora da caução por esta prestada à Ré, nos termos da alínea h) da Cláusula 7 do contrato de cessão de direito ao uso de loja celebrado entre as Partes em 30 de Abril de 2009, causa de pedir essa que igualmente se encontra fora do âmbito de aplicação da cláusula compromissória em análise.
6. O objecto do presente litígio deve ser aferido pelo Tribunal a quo e não pelo tribunal arbitral, visto que a cláusula compromissória ínsita na disposição contratual supra citada não se encontra preenchida, não devendo ter qualquer aplicação prática no caso sub judice.
7. A competência dos Tribunais judiciais da R.A.E.M. para dirimir o presente litígio é inatacável.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o despacho saneador recorrido ser revogado, nos termos oportunamente expostos, e substituído por outro que declare improcedente a alegada excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final.


Contra-alegou a Ré pugnando pela improcedência do recurso interposto pela Autora.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, convém relembrar aqui os elementos e vicissitudes relevantes para o melhor enquadramento das questões suscitadas na presente lide recursória.

A Autora A intentou a presente acção no Tribunal Judicial de base contra a Ré B – Investimentos Hoteleiros, Lda., pedindo a condenação da ré a devolver-lhe diversas quantias, alegadamente não devidas mas erradamente calculadas e pagas à Ré no âmbito da execução do contrato da cedência de uso da loja 15, localizada no r/c do Hotel Grand Lapa Macau (à data da celebração do contrato, Hotel Mandarim Oriental Macau).

Em síntese, a Autora alegou a seguinte matéria como causa de pedir:

* A Autora e a Ré celebraram um contrato da cedência de uso da loja 15, localizada no r/c do Hotel Grand Lapa Macau (à data da celebração do contrato, Hotel Mandarim Oriental Macau);

* Por força do qual a Autora se obriga a pagar à Ré uma quantia mensal como contrapartida pelo uso da loja;

* Nos termos desse contrato, a contrapartida pela cedência do uso consiste numa quantia mensal fixa ou numa quantia correspondente a uma certa percentagem da receita total obtida pela Autora na exploração da loja, sendo devido aquilo que se afigurasse de montante mais elevado;

* Em 05NOV2010, a Autora e a Ré acordaram estabelecer que a quantia mensal devida pelo uso da loja passasse a ser apenas a correspondente a 15% da receita total da Autora pela exploração da loja;

* Para o efeito, a Autora obrigou-se a entregar à Ré um relatório mensal no qual constasse a receita total por ela obtida pela exploração da loja no mês anterior, por forma a aferir qual seria a taxa mensal a pagar;

* Já no próximo do termo final do contrato, a Autora apercebeu-se de que os relatórios mensais continham, por lapso, valores que não correspondiam à receita;

* Isto porque, em vez de registar o preço efectivo de venda, o departamento da contabilidade da Autora registou, para o efeito do cálculo de receita, por lapso, o preço original sem descontos;

* Por causa desse lapso no registo dos preços de venda, a Autora pagou à Ré em excesso e de forma indevida a quantia mensal pelo uso da loja e a quantia a título de imposto de selo, cujo valor depende daquela quantia mensal; e

* Cumulativamente, pediu ao Tribunal a condenação da Ré na restituição de uma caução prestada pela Autora a favor da Ré, nos termos acordados do contrato para a garantia do bom cumprimento das obrigações contratuais, com fundamento no termo do contrato e na não restituição voluntária da caução por parte da Ré.

Citada, veio a Ré contestar deduzindo as excepções por preterição do tribunal arbitral e por prescrição do direito invocado pela Autora, e subsidiariamente defender-se por impugnação quanto à existência dos créditos reclamados e à obrigação de restituir a caução.

A Autora replicou, quanto à excepção por preterição do tribunal arbitral, dizendo que em face da letra da cláusula compromissória em apreço, as partes apenas acordaram sujeitar à arbitragem os litígios emergentes do cálculo dos montantes da Taxa Base Mensal (consideration) devida pelo uso da loja.

A excepção por preterição do tribunal arbitral acabou por ser julgada procedente pelo Mmº Juiz titular do processo no âmbito do despacho saneador, com fundamento numa cláusula compromissória estipulada entre a Autora e a Ré no parágrafo 5º de um anexo ao contrato que titulou o negócio da cedência do uso da loja.

Pois para o Tribunal a quo, em face aos termos da convenção de arbitragem, a solução das questões suscitadas pela Autora no presente litígio deve ser confiada ao tribunal arbitral, uma vez que a cláusula compromissória, pelo seu alcance, não se limita a referir-se à aferição matemática.

A isto acresce, o Tribunal a quo, que de acordo com o artº 7º/3 do Decreto-Lei nº 29/96/M, cabe sempre ao tribunal arbitral fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.

Quid juris?

Abstraindo-se da excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral, a Ré veio deduzir subsidiariamente a excepção de prescrição do direito invocado pela Autora e a defesa por impugnação, atacando directamente as interpretações feitas de cláusulas contratuais pela Autora sobre o que se deve entender por receita pela exploração da loja, tida em conta para o cálculo da taxa mensal da compensação pelo uso da loja, não reconhecendo ser beneficiária dos montantes alegadamente pagos a mais pela Autora a título de imposto de selo e impugnando a veracidade dos documentos juntos pela Autora com a petição inicial.

Para o Tribunal a quo, esta matéria controvertida cabe na jurisdição do tribunal arbitral conforme o convencionalmente acordado entre as partes no contrato que titula o negócio da cedência do uso da loja, pois, na sua óptica, o alcance parágrafo 5º do Third Schedule, anexo ao contrato, não se limite à mera aferição contabilística.

Então urge saber o que foi dito na referida cláusula.

Diz que Any dispute between the parties over the amounts calculated pursuant to the preceding paragraphs, or verification under paragraph 4 hereof, shall be determined by a qualified accountant to be appointed by the President for the time being of the Macau Society of Certified Practicing Accountants.

Ao passo que o parágrafo 4º, para o qual remete tem a seguinte redacção:
4. The User shall keep or cause to be kept complete, accurate and true records, together with full supporting information in relation to the TR of the User’s business at the Shop and shall make available for inspection after prior appointment with the User and all reasonable times by the Owner or its agent duly authorized in that behalf in writing by the Owner, the User’s books of account, documents and records which ought to be kept by the User for the purpose of accurately ascertaining and verifying the TR pursuant to the general accounting principles and practices. The User shall bear the cost of that inspection in the event that any material discrepancy is discovered or if that inspection follows a failure by the User to provide any statement required in accordance with the terms of this Agreement.

Ora, da leitura da cláusula compromissória resulta que a solução de disputas entre as partes sobre o cálculo dos montantes da taxa mensal será confiada a um contabilista qualificado a designar pelo Presidente da Macau Society of Certified Practicing Accountants.

Todavia, as relações controvertidas suscitadas, conforme vimos supra são muito mais do que o cálculo dos montantes.

Pois, em relação às quantias, quer a título da taxa mensal pelo uso da loja, quer a título do imposto de selo cujo valor daquela taxa depende, alegadamente pagas em excesso à Ré, foram suscitadas as questões sobre a existência dos créditos reclamados pela Autora, a eventual prescrição do direito de reclamar tais créditos, e o valor probatório dos elementos de prova apresentados pela Autora sobre os preços de venda, ao passo que, no que diz respeito à alegada não restituição da caução, se coloca a questão de saber se procedem as razões invocadas pela Ré para justificar a não restituição da caução, ou seja, se a Autora (in)cumpriu as suas obrigações de pagar as taxas pelo uso da loja nos meses de Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2016, e eventualmente se é operável a compensação das dívidas pelo valor da caução.

Ou seja, estamos perante um caso complexo controverso relativamente ao qual as partes têm visões jurídicas não coincidentes, em vários aspectos, que se prendem com matéria de direito e que requerem sempre juízos a formar à luz das regras do direito e não apenas das regras de contabilidade.

Na verdade, as questões sobre a existência dos créditos reclamados pela Autora, a eventual prescrição do direito de reclamar tais créditos, a força probatória dos documentos apresentados pela Autora para demonstrar a causa de pedir, o incumprimento das suas obrigações de pagar as taxas pelo uso da loja nos meses de Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2016, assim como a operabilidade da compensação das dívidas pelo valor da caução são todas elas questões de direito, cuja resolução deve preceder sempre o simples cálculo a que se refere a cláusula compromissória e que as partes acordaram confiar a um contabilista.

Portanto, não é de acolher a tese defendida pelo Tribunal a quo, no sentido de que, face ao alcance da cláusula compromissória, é a um contabilista que cabe resolver todas estas questões.

Por outro lado, o Tribunal a quo diz, em relação à taxa mensal pelo uso da loja a pagar pela Autora, que:
  Salvo melhor opinião, a referida Cláusula não se limita no alcance de mera aferição contabilística. Sem dúvida que a Autora impugnou os valores que, de acordo com a tese por si apresentada, pagou a título de Compensação pelo uso da loja (“Consideration”) e a título de Imposto do Selo.
  Mais importante é que, de acordo com o n.º3 do artigo 7.º do Decreto-Lei 29/96/M, cabe ao tribunal arbitral, mas não este Tribunal, fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.

e em relação à pretendida restituição da caução que:
  Assim, por maioria de razão, a matéria da caução, como garantia acessória das obrigações principais, também deve ser incluindo na cláusula compromissória, afastando-se da esfera dos tribunais judiciais.
  Por outro lado, mais uma vez, de acordo com o n.º3 do artigo 7.º do Decreto-Lei 29/96/M, cabe ao tribunal arbitral, mas não este Tribunal, fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.

Salvo o devido respeito, não é de aceitar este entendimento.

Na verdade, diz o artº 7º/3 do Decreto-Lei nº 29/96/M que

Artigo 7.º

(Objecto)

1. O compromisso arbitral deve determinar com precisão o objecto do litígio e designar os árbitros ou, pelo menos, indicar as modalidades de designação destes.

2. A cláusula compromissória deve especificar a relação jurídica a que os litígios eventuais respeitem.

3. Cabe ao tribunal arbitral fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.

4. Têm-se por não escritas as estipulações da convenção de arbitragem que confiram a uma das partes qualquer situação de privilégio relativamente à designação do árbitro ou dos árbitros.

5. A violação do disposto nos nºs 1 e 2 acarreta a nulidade da convenção de arbitragem.

A lei fala de objecto do litígio.

Diz-se litígio um conflito de interesses – Castro Mendes, in DPC Iº, pág, 70.

Um conflito de interesses com dignidade para ser submetido a um tribunal com vista à justa composição desses interesses.

Segundo o normativo no artº 7º/3 do citado decreto, cabe ao tribunal arbitral fixar o objecto do litígio, em caso de divergência das partes sobre o mesmo.

In casu, não existe a divergência entre as partes sobre quais são as questões em litígio.

As questões encontram-se bem identificadas.

Existe sim divergência sobre qual será o tribunal competente para resolver o litígio.

Para nós, o que está estatuído ai é quando já tiver sido fixada a competência de um tribunal arbitral e houver divergência sobre quê matéria irá debruçar-se o tribunal arbitral, é a este cabe delimitar âmbito das questões que lhe são submetidas.

Não é o que in casu sucede.

Portanto, ao caso sub judice não é aplicável, por ser impertinente, o preceituado no artº 7º/3 do decreto.

Ao que parece, o Tribunal a quo está a dizer que as questões suscitadas pela Ré B, nomeadamente quanto à abrangência do litígio pela cláusula compromissória, não devem ser subtraídas a uma primeira apreciação pelo tribunal arbitral e que é sempre o tribunal arbitral o primeiro competente para decidir a excepção da incompetência do tribunal estadual com fundamento na preterição da competência do tribunal arbitral voluntária.

Ora, se fosse essa ideia do Exmº Juiz a quo, estaríamos perante uma questão que se prende com a dita regra sobre Kompetenz-Kompetenz.

Esta regra encontra-se, entre nós, regulada no artº 27º do Decreto-Lei nº 29/96/M.

E não no invocado artº7º/3, que por razões que vimos supra, nunca pode ser interpretado no sentido de que se reconhece ao tribunal arbitral a competência para decidir se tem competência para dirimir o litígio que lhe foi submetido.

O artº 27º do Decreto-Lei nº 29/96/M reza:

(Decisão sobre a própria competência)

1. O tribunal pode decidir oficiosamente sobre a sua competência, apreciando para esse efeito a existência, a validade e a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira.

2. A excepção de incompetência deve ser deduzida no primeiro articulado de defesa do demandado ou até ao momento de apresentação desse articulado, salvo estipulação em contrário.

3. O tribunal arbitral pode optar por conhecer de imediato da excepção a que se refere o número anterior ou relegar tal conhecimento para a decisão final.

4. A designação de um árbitro pela parte não a priva da possibilidade de deduzir a incompetência do tribunal.

Nos termos desse preceituado, a regra Kompetenz-Kompetenz ai consagrada visa reconhecer a um tribunal arbitral, já constituído e a quem já tenha sido submetido um litígio, a competência para sindicar, oficiosamente ou a requerimento, a sua própria competência.

Mas o mesmo decreto nada diz sobre se um tribunal judicial, no âmbito de uma acção já nele instaurada, tem competência para conhecer a excepção dilatória da preterição de convenção de arbitragem, enquanto o litígio não tiver sido submetido ao tribunal arbitral.

Na falta da norma expressa da lei especial, é de seguir a regra geral consagrada nos artºs 412º/2, 413º/-a) e 414º do CPC, à luz da qual, o tribunal judicial é sempre competente para conhecer a excepção dilatória da preterição de convenção de arbitragem, deduzida pelo réu na contestação, sem que tenha de aguardar uma primeira apreciação pelo tribunal arbitral nos termos prescritos no artº 27º/1 do Decreto-Lei nº 29/96/M.

Aqui cabe notar, ex abundantia e no direito comparado, que, em Portugal, a mesma solução tradicional já foi afastada pelo artº 5º/1 da Lei nº 63/2011, de 14DEZ.

A Lei nº 63/2011, de 14DEZ, estabelece no seu artº 5º/1 que:

O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.

Não tendo sido todavia uma norma especial correspondente introduzida no ordenamento de Macau, a regra Kompetenz-Kompetenz consagrada no artº 27º/1 do Decreto-Lei nº 29/96/M não deve ser interpretada no sentido de que, numa acção já instaurada num tribunal estadual, este fica impedido de interpretar uma cláusula compromissória, invocada pelo réu, como fundamento da excepção de preterição do tribunal arbitral, a fim de fixar o seu alcance e depois afirmar ou infirmar a sua própria competência.

Aliás o Tribunal a quo assim procedeu.

Pois não obstante o não acolhimento por nós do seu entendimento quanto ao alcance da cláusula compromissória, o Tribunal a quo interpretou a mesma cláusula e acabou por infirma a sua própria competência.

De facto, para nós, não faz muito sentido que, por força da regra Kompetenz-Kompetenz consagrada no artº 27º/1 do Decreto-Lei nº 29/96/M, o tribunal judicial fique privado da sua competência para interpretar a cláusula compromissória, invocada como fundamento da excepção de preterição do tribunal arbitral voluntário deduzida pelo réu numa acção já instaurada, nomeadamente quanto à abrangência ou não do litígio pela mesma cláusula.

Portanto, sem mais delongas, é de concluir que o tribunal judicial tem competência para ajuizar a sua própria competência e que não há in casu a invocada preterição do tribunal arbitral voluntário.

Em conclusão:

Não obstante a consagração da regra Kompetenz- Kompetenz no artº 27º/1 do Decreto-Lei nº 29/96/M, o Tribunal estadual não fica impedido de interpretar, numa acção já instaurada, a cláusula compromissória, invocada pelo réu, como fundamento da excepção de preterição do tribunal arbitral, a fim de fixar o seu alcance e depois afirmar ou infirmar a sua própria competência.


Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam conceder provimento ao recurso interposto pela Autora, revogando a decisão de 1ª instância que julgou procedente a excepção da incompetência do tribunal deduzida pela ré e determinando o prosseguimento da acção.

Custas pela recorrida.

Notifique.

RAEM, 25JUL2019

Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng

Ac. 168/2019-21