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Processo nº 943/2016(*) Data: 04.07.2019
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Recurso interlocutório.
Recurso final.
Selecção da matéria de facto.
Decisão da matéria de facto.
Decisão de direito.
Contrato de trabalho.
Litigância de má fé.



SUMÁRIO

1. O “recurso interlocutório” interposto pelo recorrido em recurso da decisão final sobre o mérito só é apreciado se esta (sentença) não for confirmada.

2. A matéria de facto seleccionada e levada à base instrutória não merece censura se a mesma se apresentar em conformidade com o estatuído no art. 430°, n.° 1 do C.P.C.M., assegurada estando uma boa decisão de direito atentas as pretensões das partes e as “várias soluções plausíveis da questão de direito”.

3. Da mesma forma, reparo (também) não merece a “decisão da matéria de facto” se o Tribunal respeitou o “princípio da livre apreciação da prova”, apreciando-a em conformidade com as regras de experiência, e sem violação de nenhuma regra sobre o valor das provas (e sua força probatória).

4. O “contrato de trabalho” caracteriza-se (essencialmente) por dois elementos ou características: a “retribuição” e a “subordinação jurídica”.

Aquela, entendida como “troca” e “contrapartida” da actividade laboral.

Esta, como a “relação” de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face a ordens, regras, e/ou orientações ditadas pelo empregador dentro dos limites do contrato e das normas que o regem, e que, na sua vertente mais característica, tem duas facetas: o dever de obediência do trabalhador e o poder de direcção conferido ao empregador, e, no âmbito do qual, a cargo da entidade patronal está também a fiscalização do cumprimento do horário, da assiduidade e dos bons ou maus resultados do trabalho realizado.

Celebra-se tal espécie de contrato quando alguém se obriga para com outrém, mediante retribuição, a fornecer-lhe o seu próprio trabalho nas suas energias criadoras, e não concretamente o resultado ou os resultados dele. Promete-se a actividade na sua raíz, como processo ou instrumento posto dentro dos limites mais ou menos largos à disposição da outra parte para a realização dos seus fins, não se prometendo este ou aquele efeito a alcançar mediante o emprego de esforço. Nisto se distinguem a “locatio operarum” ou “contrato de trabalho”, e a “locatio operis” a que se dá o nome de “prestação de serviços”.

5. Existe litigância de má-fé, quando um sujeito processual, agindo a título de dolo ou negligência grave, tenha no processo um comportamento desenvolvido com o intuito de prejudicar a outra parte ou para perverter o normal prosseguimento dos autos.

Todavia, na verificação de tal má-fé, importa proceder com cautela, já que há que reconhecer o direito a qualquer sujeito processual de pugnar pela solução jurídica que, na sua perspectiva, se lhe parece a mais adequada ao caso, isto, óbviamente, com excepção dos casos em que se demonstre, de forma clara e inequívoca, a intenção de pretender prejudicar a outra parte ou perturbar o normal prosseguimento dos autos.

O relator,

______________________



Processo nº 943/2016(*)
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, propôs e fez seguir ACÇÃO DE PROCESSO COMUM DO TRABALHO contra “B, LIMITADA” (“B有限公司”) e “C, LIMITADA” (“C有限公司”).

Em sede da sua petição inicial – e em síntese – alegou que com as RR. estabeleceu uma “relação profissional” com base num “contrato de trabalho” e que, em consequência de vicissitudes várias ocorridas no âmbito daquela, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, pedindo, a final, a condenação das ditas RR. no pagamento a seu favor das quantias seguintes:

“Quanto à 1.ª Ré;
a) A quantia de Mop$5,423,250.00, a título de salários devidos e não pagos, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
b) A quantia de Mop$8,950.00, a título de indemnização compensatória, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
c) A quantia de Mop$1,962,738.00, a título de férias vencidas e não gozadas, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
d) A quantia Mop$956,000.00, a título de 13.° e 14.° de salários não pagos, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
e) Em custas e procuradoria condigna.
Quanto à 2.ª Ré:
a) A quantia de Mop$2,625.000.00, a título de salários devidos e não pagos, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
b) A quantia de Mop$8,950.00, a título de indemnização compensatória, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
c) A quantia de Mop$950,076.00, a título de férias vencidas e não gozadas, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
d) A quantia de Mop$999,981.00, a título de 13.° e 14.° de salários não pagos, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento;
e) Em custas e procuradoria condigna”; considerando ainda que,
“f) Devem ainda as Rés ser solidariamente condenadas a pagar à Autora uma quantia nunca inferior a Mop$1,000.000,00, em consequência dos comportamentos graves e reiterados a que a Autora foi sujeita a título de "assédio moral" (mobbing), acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento; e, bem assim,
g) À apresentação de publicamente um pedido de desculpas à Autora, a publicar em cada um dos jornais mais lidos em Macau, em língua chinesa, língua portuguesa e língua inglesa.
(…)”; (cfr., fls. 2 a 54 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Citadas, as RR. contestaram, alegando, (no que para agora releva), que entre as partes não foi celebrado nenhum “contrato de trabalho”, tendo-se (apenas) estabelecido uma “relação” de outra natureza, de consultoria e de relações públicas em regime de prestação de serviços, e que nada deviam à A., pugnando assim pela total improcedência da acção com a sua “absolvição do pedido e condenação da A. como litigante de má fé”; (cfr., fls. 120 a 164).

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O processo seguiu os seus normais termos e, oportunamente, proferiu-se sentença julgando-se a acção improcedente e absolvendo-se as RR. dos pedidos deduzidos; (cfr., 1041 a 1055 que, para melhor compreensão do decidido se passa a transcrever na sua íntegra:
“I. Relatório:
A, de nacionalidade chinesa, com residência na Rua XX, nºs XX, Jardins XX (XX Court), XX.º andar “XX”, na Taipa, em Macau, instaurou contra B, Limitada e C, Limitada, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, emergente de contrato de trabalho, pedindo que as Rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia total de MOP$13.934.945,00, acrescida de juros legais até integral e efectivo pagamento, tudo com os fundamentos que melhor se colhem da petição inicial.
As Rés contestaram, no essencial, impugnando os factos afirmados pela Autora.
Foi elaborado despacho saneador em que se afirmou a validade e regularidade da instância, se relegou para final o conhecimento da matéria contravertida, e onde se seleccionou a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
*
A audiência de julgamento decorreu com observância do formalismo legal, tendo o Tribunal respondido à matéria controvertida por despacho que não foi objecto de qualquer reclamação pelas partes.
*
Questões a decidir:
- Se entre as partes se estabeleceu uma relação de natureza laboral;
- Caso se responda afirmativamente à questão anterior, cumpre aferir se há fundamento para a Autora reclamar créditos laborais e, se sim, quais os montantes.
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II. Fundamentação de facto:
1) A 1.ª Ré é uma sociedade comercial registada em Macau, que se dedica à prestação de serviços de consultadoria, construção civil, fomento predial e importação e exportação de mercadorias (Cfr. Doc. 1). (A)
2) A 2.ª Ré é uma sociedade comercial registada em Macau, que se dedica à actividade de investimento predial (Cfr. Doc. 2). (B)
3) As Rés são proprietárias ou exploram em regime de concessão e/ou arrendamento, por si só ou por intermédio de participações sociais em outras sociedades por si detidas e/ou por intermédio de sociedades filiais, um conjunto de património imobiliário e mobiliário. (C)
4) A 1.ª Ré é administrada, entre outros, pelo Sr. D (também conhecido por D). (D)
5) A 2.ª Ré é integralmente detida pelo Sr. D e sua mulher Sr.ª E (também conhecida por E). (E)
6) No início do ano de 2011, as Rés e a Autora discutiram condições contratuais com vista à colaboração entre si no futuro. (1.º)
7) Ficou acordado entre a Autora e as Rés que a Autora poderia exercer funções de Directora Executiva ou Chief Operating Officer. (2.º)
8) O período temporal para a colaboração referida supra em 6) seria de 3 anos. (4.º)
9) Logo a partir de Maio de 2011 foi atribuído à Autora um XX, de cor cinzenta, com a chapa de matrícula MP-XX-X0, registado em nome da 1.ª Ré, e que a Autora passou a utilizar na sua actividade profissional diária. (9.º)
10) A Autora e as Rés iniciaram uma colaboração profissional no decorrer do Ano de 2011. (14.º)
11) Na sequência do referido em 10), foi atribuído à Autora um gabinete no 11.º andar do “Edifício Banco XX” (XX), sito na Avenida da XX. (15.º)
12) Na sequência do referido em 10), foram pagas à Autora diversas quantias em dinheiro. (17.º)
13) Em 21 de Maio de 2012, a Autora enviou um email ao Sr. D com o teor que resulta do documento de fls. 67, cujo teor damos aqui por integralmente reproduzido. (23.º)
14) A Autora sofreu desgosto anímico e psicológico. (25.º)
15) As Rés emitiram as declarações constantes de fls. 76 e 77. (27.º)
16) Tendo, igualmente, procedido à devolução à 1.ª Ré do automóvel - XX, de cor cinzenta, com a chapa de matrícula MP-XX-X0 - que lhe havia sido atribuído para seu uso pessoal (cfr. doc. 23). (30.º)
17) A Autora desenvolvia uma actividade em prol da participação da RAEM na Exposição Mundial de Xangai. (36.º)
18) Em dada altura, por volta de 2011, a Autora, que entretanto se tornara "amiga" de E, e que em Xangai visitava com alguma frequência o pavilhão onde esta se encontrava em representação das suas empresas, em conversa com esta manifestou interesse em trabalhar no sector privado. (37.º)
19) Na altura, a Autora queixava-se de não ver os seus méritos profissionais devidamente reconhecidos pelo Governo da RAEM de que se julgava merecedora. (38.º)
20) Caso a Autora por sua própria iniciativa viesse a desvincular-se da função pública as Rés poderiam vir a pretender estabelecer uma relação profissional com a Autora. (39.º)
21) Os documentos de fls. 62 e 166 foram assinados em 12 de Março de 2011 dias antes de ser autorizada à Autora uma licença sem vencimento pela Administração Pública. (44.º)
22) A Autora utilizou um gabinete no 11.º andar do Edifício XX antes de se deslocar para o 16.º andar do mesmo edifício após conclusão de obras neste. (58.º)
23) Foi a 2.ª Ré, através de E, que autorizou a Autora a fazer obras no 16.º andar do Edifício do XX. (60.º)
24) Essas obras seriam realizadas por entidades que já colaboravam com as Rés e D, tendo ficado estipulado que o andar seria devolvido pela Autora no estado em que se encontrava à data do "empréstimo" para a sua instalação. (61.º)
25) A Autora aguardou mais de doze meses, no caso da 1.ª Ré, e mais de seis meses, no caso da 2.ª Ré, sem reclamar o pagamento dos seus salários. (64.º)
26) A primeira Ré efectuou dois únicos pagamentos a favor da Autora, em 04/05/2012, mais de um ano após o início da invocada relação laboral, pagamentos que totalizam MOP $ 4.000.000,00, sendo cada um deles no valor de MOP $ 2.000.000,00 (cfr. Documentos 2 e 3). (65.º)
27) E a 2.ª Ré, por sua vez, realizou à Autora um único pagamento de HKD $ 1.000.000,00 (um milhão de dólares de Hong Kong) em 13/10/2011, mais de seis meses depois do início da invocada "relação de trabalho" com esta entidade - cfr. Documento 4. (66.º)
28) Acresce que no recibo de quitação atinente a este último cheque e que foi o primeiro dos quatro pagamentos que a Autora recebeu das Rés e dos seus sócios, encontra-se referido que esse cheque de HKD 1.000.000,00 diz respeito ao pagamento da primeira prestação (no original em língua chinesa) do contrato de consultadoria - cfr. Documento 4. (67.º)
29) Não foram feitos quaisquer descontos da Autora por conta do Imposto Profissional. (69.º)
30) A Autora facturou esses serviços em nome da empresa F da qual é sócia maioritária e gerente-geral, regularizando a situação atinente ao adiantamento pouco antes de deixar de colaborar com as Rés (cfr. Documentos 5 e 6). (73.º)
31) Além das quantias referidas nos factos provados de 26) a 28), a Autora recebeu um cheque no valor de 2 milhões de Hong Kong Dólares, datado 28/11/2011, que lhe foi emitido pela senhora E. (74.º)
32) Passado o período de nojo relativamente à Administração Pública, a Autora, em 11 de Outubro de 2011, procedeu à constituição de uma sociedade denominada G LDA., registada no dia seguinte e com a matrícula n.º 4XXX0 na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, sociedade com o capital de MOP $ 100.000,00 (cem mil patacas), na qual é titular de uma quota de MOP $ 99.000,00 (noventa e nove mil patacas), ou seja, é titular de 99% do capital social, sendo também a sua única administradora (cfr. Documento 10). (75.º)
33) A referida sociedade foi constituída tendo a Autora colocado a respectiva sede na Avenida da XX, n.º XX, no Edifício do XX, XX.º andar, em Macau no gabinete disponibilizado pela 1.ª Ré. (76.º)
34) Em 5 de Janeiro de 2012 foi constituída a outra sociedade acima referida (F), da qual são sócias a Autora A e a antes mencionada G LDA, detendo a primeira uma quota no valor nominal de MOP $ 55.000,00 e a segunda uma outra de MOP $ 45.000,00, assim perfazendo o capital social de MOP $ 100.000,00 (cem mil patacas). (77.º)
35) Esta sociedade F LIMITADA, em inglês F LIMITED, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 4XXX2, tem sede igualmente na Avenida da XX, n.º XX, Edifício do XX, XX.º andar. (78.º)
36) Esta sociedade tem por objecto a "exploração e administração de hotéis, aparthotéis, restaurantes e clubes e a prestação dos respectivos serviços de consultadoria, administração de propriedades e o comércio de importação e exportação (cfr. Documento 11). (79.º)
37) Em 18 de Maio de 2012 a 1.ª Ré concedeu à sociedade F (detida pela Autora) um empréstimo de dois e milhões e quinhentas mil patacas. (85.º)
38) A sociedade F foi interpelada conforme resulta do documento de fls. 202. (87.º)
39) Em Outubro de 2011 foi emitido por H e D, enquanto sócios maioritários da sociedade I. Ltd., intitulado "Carta de Autorização" a favor da Autora. (89.º)
40) A Autora foi nomeada para coordenar a participação de Macau na Expo de Xangai. (95.º)
41) A escreveu em 21 de Maio de 2012 um e-mail a D, manifestando interesse em deixar de colaborar com o referido senhor e as suas empresas (cfr. Documento 8), sendo que o assunto referido nessa comunicação, é "pedido para saída da parceria" ("合作伙伴" no original em língua chinesa). (101.º)
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III. Fundamentação jurídica:
Em face da matéria de facto que se mostra provada e do direito que lhe é aplicável, cumpre dar resposta às questões a decidir que supra se deixaram enunciadas.
A primeira, e decisiva, das questões a decidir diz respeito à caracterização da relação estabelecida entre as partes, no sentido de saber se se pode afirmar ter sido constituída uma verdadeira relação laboral ou se, pelo contrário, assumiu uma outra natureza, por exemplo, de prestação de serviços.
Façamos um breve enquadramento legal, doutrinário e jurisprudencial relativamente à questão enunciada.
De acordo com o disposto nos art.°s 1079° e 1080° do Código Civil, há notas distintivas entre os dois tipos contratuais no que diz respeito ao seu objecto – a prestação devida no contrato de trabalho é uma actividade, intelectual ou manual, enquanto no contrato de prestação de serviços é o resultado dessa actividade – e, por outro lado, no carácter subordinado (vínculo laboral) ou autónomo (prestação de serviços) da prestação.
O contrato de trabalho é, também, por definição, oneroso, enquanto o de prestação de serviços pode ser oneroso ou gratuito; contudo, atenta a constatação de que, em regra, a remuneração está igualmente presente no contrato de prestação de serviços, não poderá ser esse o elemento determinante para estabelecer a distinção entre os tipos contratuais em questão. Assim sendo, a doutrina e jurisprudência elegem o critério da subordinação jurídica como sendo o decisivo para a distinção entre as duas figuras contratuais em apreço.
A subordinação jurídica consiste numa situação de sujeição, em que se encontra o trabalhador, de ver concretizado, por iniciativa da entidade empregadora, o dever de prestar em que está incurso. Mesmo naquelas situações em que o trabalhador goza de grande independência técnica, o que corresponde, em regra, a um elevado grau de qualificação, determinando que o núcleo da própria actividade escape à esfera das instruções do empregador, não goza de autonomia na programação e na organização da actividade: o tempo, o local e os meios de realização da prestação são definidos por este último, havendo, pois, subordinação.
A legitimidade última para considerar um certo contrato como de trabalho, aplicando-lhe o competente regime, reside na vontade das partes que, livremente, o tenham celebrado. Sendo escassos os elementos que permitam identificar a vontade comum das partes no momento da celebração do contrato e dando ele início a uma relação duradoura, esses elementos terão de ser colhidos através do modo como as mesmas desenvolveram, na prática, a relação. “No elenco dos indícios de subordinação, é geralmente conferida ênfase particular aos que respeitam ao chamado «momento organizatório» da subordinação: a vinculação a horário de trabalho, a execução das prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa, tudo elementos retirados da situação típica de integração numa organização técnico-laboral predisposta e gerida por outrem. Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, em regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. São ainda referidos indícios de carácter formal ou externo, como a observância dos regimes fiscal e da segurança social do trabalho por conta de outrem”.
Incumbe a quem invoca um contrato de trabalho, como fundamento da sua pretensão, o ónus de prova dos elementos que o integram. Vejamos, então, se a Autora logrou fazer a prova que lhe competia, tendo em consideração os critérios enunciados.
Feito o enquadramento teórico da questão enunciada, cumpre, por força da análise dos factos apurados e dos documentos juntos aos autos, aferir se é possível, como é pretensão da Autora, concluir que entre si e as Rés se estabeleceu uma verdadeira relação laboral ou se, pelo contrário, foi de outra natureza.
Temos, por um lado, delineada factualmente a aproximação existencial entre as partes (cfr., nomeadamente, factualidade provada em 6) a 8), 17) a 20), o que as levou a iniciarem efectivamente uma relação profissional, da qual redundou para a Autora (que entretanto, após a licença sem vencimento que lhe foi atribuída, constituiu duas sociedades comerciais, cfr. factos 30, 32, 34 e 35, ambas com a mesma sede, num imóvel cedido, por comodato, pela 2.ª Ré e onde a Autora fez obras com a autorização desta, cfr. factos 23 e 24) e para as suas sociedades rendimentos avultados pagos pelas Rés em diferentes momentos, mas todos num período de tempo relativamente curto (cfr. factos 26, 27, 28 – sendo que o pagamento referido neste último facto faz expressa alusão a uma primeira prestação, em quatro, de um milhão de patacas relativa a um contrato de consultadoria – 31, este a título pessoal, 37, este traduzindo-se num empréstimo de dois milhões e quinhentas mil de patacas a uma das referidas sociedades da Autora).
A factualidade provada não nos dá – com excepção do enunciar de uma intenção – cfr. facto provado em 7 – quaisquer elementos que permitam descrever a existência de uma relação laboral entre as Rés e a Autora, mas antes permitem delinear uma mútua colaboração empresarial que redundou para a Autora e suas sociedades em avultados rendimentos, quer por força das quantias efectivamente pagas pelas Rés, quer pela cedência a título gratuito, por um ano, de um espaço que serviu de sede para duas sociedades da Autora e ainda de um veículo automóvel (cfr. documento de fls. 200, traduzido a fls. 989 verso, e facto 9). Curiosamente, alega a Autora na sua petição inicial que este local – o 16.° andar do Edifício XX, que serviu de sede a duas das suas sociedades comerciais – era o seu local de trabalho na relação laboral que afirma ter mantido com as Rés.
Além da factualidade provada há documentos juntos aos autos que justificam uma análise, ainda que breve.
Há, desde logo, o documento de fls. 62 (com tradução para português a fls. 1015 e 106), intitulado de "contrato de trabalho", assinado pela primeira Ré e pela Autora, e que se traduz numa "intenção" de estabelecimento entre as partes de uma relação laboral, a depender, todavia, das condições nesse mesmo documento previstas (cfr. ponto 6. denominado de "vigência" e que previa, por um lado, que a Autora se desvinculasse da Administração Pública), sendo certo que se remetia para um momento posterior o estabelecimento de "regras contratuais mais detalhadas"; o certo é não consta dos autos qualquer outro documento que faça tal concretização, pelo que podemos presumir que nunca foi efectivamente produzido; este é, assim, um documento que, por si só (desacompanhado como veremos imediatamente infra de outros factos que permitam descrever uma típica relação laboral) pouco revela quanto à relação "profissional" que entretanto se concretizou entre as partes (a falta de outro documento concretizador do enunciado contrato de trabalho poderá estar relacionado com a circunstância de a "desvinculação" a que se refere o documento de fls. 62 ter sido concretizada pela Autora através de um pedido de licença sem vencimento e não através de um pedido de exoneração).
Todavia, a fls. 77 e 79 (cfr. traduções de fls. 1017 verso e 1018) há outros dois documentos, com os quais cada uma das Rés declara a cessação da nomeação da Autora como sua "Directora Executiva", ambas datadas de 10 de Dezembro de 2012, os quais devem ser analisados de forma contextualizada relativamente à demais factualidade provada e a outros documentos juntos aos autos donde decorre, por exemplo, estar latente, a partir de uma determinada fase, um conflito entre as partes (como por exemplo o documento de fls. 75 – traduzido a fls. 1017 – em que a Autora reclama, a 7 de Setembro de 2012, o pagamento de "salários", notando-se que este "conflito" surge no tempo após a concessão de um empréstimo de dois milhões e meio de patacas a uma das sociedades da Autora, em Maio de 2012) ou, noutra perspectiva, com o documento de fls. 67 (traduzido a fls. 988), produzido pela própria Autora, datado de 21 de Maio de 2012, dirigido aos sócios da 1.ª Ré, em que designa a relação estabelecida entre si como de "pareceria" e da qual afirma querer colocar um fim (cfr. igualmente o facto 41).
Noutra perspectiva, há um outro documento, a fls. 738, denominado de "acta da reunião", de 13 de Dezembro de 2012 (cuja autenticidade nos merece as maiores dúvidas pelas razões que enunciamos em sede de resposta à matéria de facto, pois não está assinada por todas as pessoas que se afirma terem estado presentes em tal reunião), que permite perceber que havia efectivamente um conflito entre as partes, a envolver a definição dos postos de trabalho de diversos trabalhadores entre as Rés e a Autora e suas sociedades.
Noutro sentido, e a permitir pelo menos contextualizar de forma mais abrangente as relações projectadas e estabelecidas entre as partes, há um documento a fls. 166, datado de 12 de Março de 2011 (com tradução a fls. 1021) denominado de "protocolo de intenções para a constituição de sociedade" entre a Autora e outras duas pessoas (uma delas a representante legal da 2.ª Ré) e cujo objecto principal seria a "prestação de serviços" à 1.ª Ré e que revela, precisamente, uma relação comercial subjacente entre as partes (mesmo ainda quando a Autora estava no exercício de funções públicas, cfr. facto 21, no que não deixa de ser um comportamento da Autora que pode ser questionado sob o ponto de vista ético) e poderá ser uma das fontes justificativas para, em momentos seguintes, como resulta provado, as quantias pagas à Autora, permitindo por exemplo enquadrar a "carta de autorização" emitida a favor da Autora e referida no facto 39.
Em suma, há uma "amálgama" de factos provados e de documentos, dos quais não se pode retirar que entre as partes se tenha estabelecido uma relação laboral, na medida em que não ficaram minimamente enunciados elementos que permitam preencher o supra referido critério da subordinação, nem sequer sob o ponto de vista organizatório, por exemplo, com a descrição de um horário, uma dependência hierárquica, um vencimento (e respectivos recibos, como se aludiu em sede de resposta à matéria de facto, sendo certo que é elucidativa a circunstância de a Autora ter aguardado mais de doze meses, no caso da 1.ª Ré e mais de seis meses, no caso da 2.ª Ré, sem reclamar quaisquer quantias relativas a salários, sendo certo que recebeu, nesse mesmo período, "outras" quantias das Rés, como vimos, em montante muito elevado), desconto profissional (cfr. facto 29, devendo ter-se em consideração a especial qualificação profissional da Autora no que diz respeito à sua ligação profissional à Administração deste Território, tal como resulta de diversos documentos juntos aos autos, enquanto Subdirectora das Finanças, que não podia deixar de estar consciente dessa necessidade de pagamento do imposto profissional caso tivesse sido concretizada uma efectiva relação laboral), tendo somente ficado apurado que a Autora e as Rés iniciaram uma colaboração profissional no decorrer do Ano de 2011, na sequência da qual foram pagas à Autora diversas quantias em dinheiro (cfr. facto 17).
Em suma, podemos concluir que entre as partes se desenvolveu uma relação a envolver a constituição de sociedades comerciais por parte da Autora, cujo objecto social e actividade comercial estava imbrincada com a actividade comercial das Rés, e da qual decorreram pagamentos – e empréstimos – de diversos e elevados montantes (para um período tão curto de tempo), que tornam, por si só, igualmente inverosímil que tenha havido, em simultâneo, o desenrolar de uma relação laboral a originar outros ganhos para a Autora relativamente às Rés.
Entendemos, assim, que a Autora não logrou provar, como lhe cabia, factos que permitissem confirmar ter sido celebrada entre si e as Rés uma qualquer relação laboral.
Neste sentido, respondendo-se negativamente à primeira das questões a decidir enunciadas, fica prejudicada a apreciação das demais, mais não restando do que decidir pela improcedência total dos pedidos formulados, o que se decidirá.
IV. Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a acção totalmente improcedente e em consequência absolvem-se as Rés dos pedidos contra si formulados.
As custas serão a cargo da Autora.
Registe e notifique.
(…)”).

*

Inconformada com o assim decidido, a A. recorreu.

Nas suas alegações de recurso produziu as conclusões seguintes:

“1. Versa o presente Recurso, em primeiro lugar, sobre o Despacho proferido pelo Tribunal a quo a fls. 804, nos termos do qual foi indeferida a Reclamação contra a selecção da matéria de facto oportunamente apresentada pela Autora, ora Recorrente;
2. Salvo o devido respeito – que é muito – em caso algum pode a ora Recorrente conformar-se com o conteúdo do indeferimento constante do referido Despacho, porquanto acredita que os quesitos cuja inclusão na base instrutória se requereu consubstanciam matéria de facto que se mostra essencial ao objecto da presente lide, e sem a qual o Tribunal a quo não poderia ter formado uma convicção segura sobre a matéria em apreciação, o que justifica a sua revogação e substituição por outro que defira o requerimento de ampliação da Base Instrutória tal qual apresentado pela Autora, ora Recorrente;
3. Em concreto, desde já se requer que seja aditada à douta Base Instrutória a matéria alegada pela Autora, ora Recorrente, sob os artigos 67.°, 68.°, 70.°, 73.°, 74.°, 75.°, 76.° da sua Petição Inicial, porquanto se tratam de factos essenciais e sem os quais a Autora, ora Recorrente, estaria em condições de fazer prova dos indícios que formam o chamado elemento organizatório da subordinação jurídica e imprescindíveis à demonstração da existência de uma relação de natureza laboral, tal qual por si alegado ao longo de toda a sua Petição Inicial;
4. Mais se requer que sejam igualmente aditados à douta Base Instrutória o alegado pela Autora sob os artigos 177.°, 151.°, 152.°, 157.°, 158.°, 224.° e 226.° da sua Petição Inicial, porquanto se tratam de factos essenciais e sem os quais o Tribunal a quo não poderá formar uma convicção segura a respeito da determinação do montante dos danos morais sofridos pela Autora em consequência dos comportamentos levados a cabo pelas Rés e pelos seus principais responsáveis;
5. Versa, em segundo lugar, o presente Recurso sobre o conteúdo da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo a fls. 1040 e ss, nos termos da qual foi julgada totalmente improcedente a acção e, em consequência, absolvidas as Rés dos pedidos contra si formulados;
6. Salvo o devido respeito, a Autora, ora Recorrente, igualmente não se conforma com o conteúdo da douta Decisão, estando em crer que a mesma padece de graves erros de julgamento no que respeita à matéria de facto provada e não provada, em termos que põem seriamente em causa sua bondade e respectivo conteúdo e que motivam a respectiva impugnação;
7. De igual modo, existe na douta Decisão uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, porquanto o Tribunal a quo não terá procedido à correcta e integral análise da totalidade dos meios de prova carreados pelas partes para os presentes autos, o que não pode deixar de conduzir à sua nulidade e substituição por outra que atenda devidamente aos meios probatórios constantes dos autos e, em consequência, aos pedidos tal qual formulados pela Autora, ora Recorrente, na sua Petição Inicial;
8. Por último, a Autora, ora Recorrente, está em crer verificar-se uma errada subsunção dos factos no Direito, porquanto o Tribunal a quo não terá atendido e tirado as devidas consequências dos factos assentes, dos dados por provados e não provados, acabando por decidir no sentido da improcedência dos pedidos formulados pela Autora, mas sem o necessário substracto factual para tal juízo decisório;
Da matéria de facto provada e não provada:
9. Salvo o devido respeito por diferente entendimento, está a Autora, ora Recorrente, em crer que perante a factualidade provada o Tribunal a quo dispunha de fortes elementos indiciadores da existência entre as partes de uma relação de natureza laboral, e não de outra natureza, v.g., uma prestação de serviços;
10. De igual forma - ainda que a Autora, ora Recorrente, não deixe de desconhecer que "de um facto tido como não provado não resulta necessariamente o seu contrário" - sempre se está em crer que da matéria de facto não provada resulta igualmente um importante conjunto de factos - expressamente alegados pelas Rés ao longo da sua defesa - os quais devidamente contextualizados e conjugados com a demais factualidade, deixam antever que entre as Rés e a Autora terá existido uma relação de natureza laboral, o que muito deveria ter relevado para a douta decisão final;
Da impugnação da matéria de facto não provada:
11. Salvo o devido respeito, a Autora, ora Recorrente, está em crer que da análise dos depoimentos prestados em audiência e da prova documental constante dos autos, resulta que o Tribunal a quo terá feito uma incorrecta apreciação e/ou uma errada interpretação da mesma prova, o que não pode deixar de consubstanciar um grave erro de julgamento, em termos que põem seriamente em causa a sua bondade e o seu respectivo conteúdo;
12. Assim, a Autora, ora Recorrente, está em crer, ter existido erro na apreciação da prova no que se refere à resposta negativa (Não provada) oferecida pelo Tribunal a quo ao conteúdo dos quesitos 5.°, 32.°, 33.°, 34.°, razão pela qual se impõe a sua alteração para provada;
13. Quanto ao quesito 5, tratando-se de matéria constante do "Contrato de trabalho" (Cfr. documento n.° 4 junto de fls. 62) que foi objecto de negociação e de acordo entre a Autora e a 1.ª Ré, à semelhança das demais cláusulas constantes do mesmo "Contrato de trabalho", a resposta negativa (Não provado) oferecida pelo Tribunal a quo ao referido quesito deve ser alterada para PROVADO; ou, pelo menos, para PROVADO NOS TERMOS EM QUE RESULTA DO DOCUMENTO DE FLS. 62;
14. Quanto aos Quesitos 32.°, 33.° e 34.°, entende a ora Recorrente que a resposta oferecida pelo Tribunal a quo não terá tomado em devida conta quer o teor do documento de fls. 323, quer o testemunho prestado em sede de audiência de discussão e julgamento e nos termos da qual se teria de concluir que a Autora, ora Recorrente, não terá gozado determinados períodos de férias, razão pela qual a resposta negativa (Não provado) oferecida aos referidos quesitos deve ser alterada para PROVADO; ou, pelo menos, para PROVADO NOS TERMOS EM QUE RESULTA DO DOCUMENTO DE FLS. 323;
Da impugnação da matéria de facto julgada provada:
15. Salvo o devido respeito, a Autora, ora Recorrente, está em crer que da análise dos depoimentos das testemunhas e demais prova documental constante dos autos, o Tribunal a quo terá feito uma errada interpretação e/ou uma incorrecta apreciação da mesma prova, designadamente no que se refere à resposta positiva (Provada) oferecida aos quesitos 67.°, 73.° e 75.° da douta Base Instrutória, vazados nos pontos 28, 30 e 32 da factualidade provada, razão pela qual se impõe a sua alteração para Não provado;
16. Em concreto, quanto aos pontos 28 e 30, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, resulta do simples confronto de datas dos documentos n.° 4 e doc. n.° 5 e doc.° 6 - que dão suporte à referida factualidade assente - que a quantia de HKD$1.000.000,00 (um milhão de dólares de Hong Kong) que, em 13/19/2011, a Autora, ora Recorrente, recebeu, em nome próprio, da 2.ª Ré (Cfr. doc. 4), não tem qualquer relação e/ou correspondência com a quantia de Mop$1.000.000,00 (um milhão de patacas) referida no Orçamento (Quotation), de 01/12/2012, e respectiva Factura (Invoice), de 03/12/2012, e relativas a uma prestação de serviços (Technical Fee) entre a Sociedade F LIMITED e a "Pousada de Coloane", e relativa a um período temporal que medeia entre Novembro de 2011 a Abril de 2012 (Cfr. doc. 5 e doc. 6);
17. Depois, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, não existe um qualquer "recibo de quitação" atinente ao cheque no valor de HKD$1.000.000,00 (um milhão de dólares de Hong Kong) que, em 13/19/2011, a Autora, ora Recorrente, recebeu da 2.ª Ré, porquanto a declaração que se encontra junto ao mesmo é apenas um mero documento contabilístico interno da 2.ª Ré, que em lugar nenhum se mostra assinado pela Autora, ora Recorrente (Cfr. doc. 4);
18. De igual modo, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, também o "Orçamento" (Quotation) e a respectiva Factura (Invoice) emitidos pela Sociedade F LIMITED à "Pousada de Coloane" não se encontram assinados por qualquer responsável da 2.ª Ré (Cfr. doc. 5 e 6), o que igualmente deixa grandes dúvidas a respeito de uma possível relação entre os mesmos documentos;
19. Acresce que, não pode deixar de causar alguma "estranheza" o facto de a 2.ª Ré estar a assumir a responsabilidade de uma dívida que respeita a uma terceira entidade com a mesma totalmente distinta: a Pousada de Coloane;
20. Por outro lado, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, não será correcto entender ter existido por parte da Autora, ora Recorrente, a regularização de uma qualquer situação atinente a um adiantamento relativo a serviços de consultadoria hoteleira pouco antes de deixar de colaborar com as Rés (Cfr. doc. 5 e 6), porquanto nenhuma relação se vislumbra entre o conteúdo do doc. 4 e o doc. 5 e doc. 6;
21. Quanto ao ponto 32, porquanto resulta da primeira parte do mesmo uma referência a um "período de nojo relativamente à Administração Pública" que não é legalmente aplicável à Autora, ora Recorrente, deve a mesma referência ser eliminada para todos os devidos efeitos;
Da matéria de Direito: da existência entre as partes de uma relação de natureza laboral e da nomeação da Autora para o cargo de "Directora Executiva" de cada uma das Rés:
22. A douta Sentença começa, e bem, por enunciar a questão central dos presentes autos e relativa à caracterização da relação estabelecida entre as partes, no sentido de saber se se trata de uma relação de natureza laboral ou se, pelo contrário, terá assumido uma outra natureza, por exemplo, de uma prestação de serviços;
23. Não obstante, está a ora Recorrente em crer que o Tribunal a quo não terá andado bem quando concluiu que: "(…) "A (actualidade provada não nos dá - com excepção de enunciar de uma intenção - quaisquer elementos que permitam descrever a existência de uma relação laboral entre as Rés e a Autora, mas antes permitem delinear uma mútua colaboração empresarial (…)";
24. E, bem assim, quando na mesma Decisão se conclui que: "(…) Em suma, há uma "amálgama" de factos provados e de documentos, dos quais não se pode retirar que entre as partes se tenha estabelecido uma relação laboral, na medida em que não ficaram minimamente enunciados elementos que permitam preencher o supra referido critério de subordinação, nem sequer do ponto de vista organizatório, por exemplo, com a descrição de um horário, uma dependência hierárquica, um vencimento) (…) desconto profissional (…)";
25. Ora, ressalvado uma vez mais o devido respeito, não pode a Autora, ora Recorrente, deixar confessar alguma "estranheza" quanto às passagens supra citadas, porquanto, em momento anterior, a Autora havia oportunamente solicitado ao Tribunal a quo o aditamento à douta Base Instrutória de quesitos que acreditava serem essenciais à concretização do pedido e da causa de pedir…;
26. De onde, salvo o devido respeito, não se compreende como num primeiro momento o Tribunal de Primeira Instância não tenha aceite a inclusão de "outros" quesitos na douta Base Instrutória – os quais teriam permitido à Autora, ora Recorrente, a demonstração e prova da existência de uma relação de trabalho com as Rés, ora Recorridas - e, acto contínuo, venha o mesmo Tribunal a quo a concluir pela ausência de prova relativa ao preenchimento do elemento da subordinação jurídica, caracterizador de uma relação jurídico laboral…!
27. Ao decidir assim, salvo o devido respeito, a douta Decisão deixa adivinhar um manifesto e grave erro de raciocínio e erro de julgamento, por manifesta contradição entre os seus termos e, em qualquer dos casos, uma insuficiência da matéria de facto para a decisão final, o que deverá conduzir à sua nulidade;
28. Depois, a Autora, ora Recorrente, não pode igualmente concordar com a douta Sentença quando na mesma se conclui que: iniciou-se efectivamente uma relação profissional, da qual resultou para a Autora e para as suas sociedades rendimentos avultados pagos pelas Rés em diferentes momentos, mas todos num período de tempo relativamente curto (…) que não permite descrever a existência de uma relação laboral entre as Rés e a Autora, mas antes permitem delinear uma mútua colaboração empresarial;
29. Quanto a este outro segmento decisório, está a Autora, ora Recorrente, em crer, que tendo em conta o conteúdo da relação material controvertida tal qual apresentada pela na Petição Inicial, não se percebe em que medida a referência à mútua colaboração empresarial pudesse ter de afastar a existência de uma relação laboral entre as partes;
30. Ou melhor, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, não se percebe - nem aceita - de que forma os "específicos" contornos das relações pessoais e profissionais que a Autora, ora Recorrente, desenvolveu com o Sr. D, com a Sr.a E, ou com a filha menor do referido casal, possam ser impeditivas da existência de uma relação de trabalho entre a Autora e as Rés;
31. Ao não entender assim, está a Recorrente em crer verificar-se, também aqui, um erro de julgamento, que igualmente põe seriamente em causa a sua bondade e conteúdo e, como tal, conduzir à sua nulidade;
32. De regresso à douta Decisão, a Autora, ora Recorrente, está em crer que o Tribunal a quo terá andado mal aquando da análise do teor do documento de fls. 62 (com tradução para português a fls. 1015 e 1016), intitulado de "Contrato de trabalho", assinado entre a 1.ª Ré e a Autora em 12 de Março de 2011;
33. Ou melhor, tendo o Tribunal a quo entendido que o mesmo documento "(…) se traduz numa "intenção" de estabelecimento entre as partes de uma relação laboral, a depender, todavia, das condições nesse mesmo documento previstas (cfr. ponto 6 denominado de "vigência" e que previa, por um lado, que a Autora se desvinculasse da Administração Pública), sendo certo que remetia para um momento posterior o estabelecimento de "regras contratuais mais detalhadas" (…),
34. E, bem assim, que: "(…) a falta de outro documento concretizador do enunciado contrato de trabalho poderá estar relacionado com a circunstância de a "desvinculação" a que se refere o documento de fls. 62 ter sido concretizada pela Autora através de um pedido de licença sem vencimento e não através de um pedido de exoneração",
35. Impunha-se ao Tribunal a quo começar pela análise do sentido que a expressão "desvinculação" apresenta no contexto do "Contrato de trabalho" outorgado entre a 1.ª Ré e a Autora, em 12 de Março de 2011 e junto de fls. 62;
36. A economia do documento deixa ver que a referida expressão apresenta um conteúdo ambíguo e não jurídico, que poderá dar azo a diferentes sentidos possíveis e não apenas e necessariamente ao sentido de "exoneração", que parece ter sido o eleito pelo Tribunal a quo;
37. Acresce que, a expressão em causa não encontra qualquer correspondência em nenhum diploma de Direito laboral local (não surge no ETAPM, nem na Lei das Relações de Trabalho), correspondendo antes a uma forma de expressão oral e empregue na linguagem corrente entre os falantes de língua chinesa materna, e utilizada quer no sentido de: "(1) "Deixar temporariamente o cargo"; quer visando situações de "um trabalhador de uma instituição pública ou privada que deixe de desempenhar o seu cargo designadamente por motivo de aposentação, demissão, suspensão das funções, exoneração ou morte";
38. De onde, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, a "condição" prevista no "contrato de trabalho" seria perfeitamente possível por via da suspensão de funções (mediante licença sem vencimento) a obter pela Autora, ora Recorrente;
39. Porém, ao não concluir assim, está a Autora, ora Recorrente, em crer que o Tribunal a quo não terá andado bem na interpretação da referida expressão no específico contexto do documento em causa, o que igualmente deixa adivinhar um erro de julgamento, porquanto o Tribunal a quo terá partido de uma premissa errada que inquina a conclusão final: a de que a "desvinculação" a que se refere o ponto 6 do "Contrato de trabalho" assinado entre a 1.ª Ré e a Autora, ora Recorrente, apenas se poderia ter por "concretizada" mediante um "pedido de exoneração" e já não através de um "pedido de licença sem vencimento";
40. Acresce que, a dado passo da sua defesa, são as próprias Rés quem afirmam que: "(…) a Autora prestou serviços depois de ter deixado de trabalhar para a Administração Pública da RAEM (…)", razão que a ter sido atendida, certamente teria conduzido o Tribunal a quo a concluir que a concretização "condição" constante do ponto 6 do "contrato de trabalho" se teria "concretizado" e/ou "preenchido" a partir do momento em que as Rés consideram que a Autora já havia deixado de trabalhar para a Administração Pública da RAEM;
41. De onde igualmente se poderá concluir existir um errado julgamento da matéria alegada pelas partes, porquanto o Tribunal a quo não terá atendido integralmente ao alegado pelas partes, nem daí retirado as devidas consequências, o que igualmente se traduz num manifesto erro de julgamento, que justifica que a douta Decisão posta em crise seja revista, em conformidade;
42. Mais adiante, a douta Decisão debruça-se sobre dois documentos (Cfr. fls. 76 e 77, com tradução a fls. 1017 verso fls. 1018), nos termos dos quais resulta que: "(…) cada uma das Rés declara a cessação da nomeação da Autora como sua "Directora Executiva", ambas datadas de 10 de Dezembro de 2012, os quais devem ser analisados de forma contextualizada relativamente à demais factualidade provada e a outros documentos juntos aos autos (…)";
43. Certo é que, no passo seguinte, o douto Tribunal a quo olvida por completo a existência nos mesmos autos de um "outro" documento, nos termos do qual cada uma das Rés, ora Recorridas, procedeu à nomeação da Autora para o cargo de "Directora Executiva" de cada uma das Sociedades (Cfr. doc. 19, constante de fls. 765 e 768, com tradução a fls. 764 e 767), e que em caso algum poderia ter deixado de ser devidamente apreciado e valorado pelo mesmo Tribunal a quo;
44. Sempre com o devido respeito, não se compreende porque razão o Tribunal a quo - depois de ter feito expressa referência aos documentos que titulam a "cessação da nomeação da Autora para o cargo de "Directora Executiva" de cada uma das Rés" - tenha deixado de atender ao conteúdo do documento que, em concreto, procedeu à designação da Autora, ora Recorrente, para o mesmo cargo de "Directora Executiva" de cada uma das Rés…;
45. Acresce que, a leitura do referido documento (constante de fls. 765 e 768, com tradução a fls. 764 e 767) deixa ver que não só cada uma das Rés procedeu expressamente à nomeação da Autora para o cargo de "Directora Executiva", como igualmente a Autora, ora Recorrente, aceitou tal designação, mediante aposição expressa da sua assinatura em cada um dos referidos documentos que titulam a sua designação para o cargo de Directora Executiva;
46. De onde se teria de concluir que, a partir do momento em que as Rés (e, em especial, a 1.ª Ré) procedem à nomeação da Autora, ora Recorrente, para o cargo de "Directora Executiva" de cada uma delas - cargo que, recorde-se, corresponde ao que havia sido negociado e acordado pelas partes no âmbito do "contrato de trabalho", assinado em 12 de Março de 2011 - a "condição" constante do ponto 6 do "Contrato de trabalho" se teria por "verificada" e/ou "preenchida" por expressa vontade das partes, ficando a Autora, ora Recorrente, dispensada de se "desvincular" e/ou "exonerar" do seu lugar na Função Pública…;
47. E a ser assim, teria igualmente o Tribunal a quo de concluir que, pelo menos, entre 1 de Novembro de 2011 (data da nomeação da Autora, ora Recorrente, para o cargo de "Directora Executiva" de cada uma das Rés) até 15 de Dezembro de 2012 (data do termo das mesmas funções) a Autora, ora Recorrente, terá prestado por conta das Rés o cargo de "Directora Executiva", nos termos e condições constantes do "Contrato de Trabalho" que havia sido negociado e assinado entre as partes (ou melhor, entre a 1.ª Ré e a Autora) em 12 de Março de 2011;
48. Ora, salvo o devido respeito, ao não entender assim - e ao desconsiderar por completo o teor do documento de fls. 765 e 768, que titula a nomeação da Autora, ora Recorrente, para o cargo de "Directora Executiva" de cada uma das Rês - está a Autora, ora Recorrente, em crer que a douta Sentença enferma de um erro in judicando, em termos que põem seriamente em causa a sua bondade e o respectivo conteúdo,
49. O que igualmente se traduz numa notória insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que de per si justifica a sua re-apreciação pelo douto Tribunal de Recurso, porquanto em caso algum o documento n.° 19 de fls. 765 e 768 poderia deixar de ser analisado de forma contextualizada e relativamente à demais factualidade constante dos autos;
A terminar,
50. A Autora, ora Recorrente, apenas se limita a tecer duas pequenas observações a respeito da apreciação levada a cabo pelo Tribunal a quo quanto a possíveis comportamentos que podem ser "questionados sob o ponto de vista ético" e relativos, em primeiro lugar, ao facto de a mesma ter assinado um "protocolo de intenções para a constituição de uma sociedade" entre si e a representante legal da 2.ª Ré "mesmo quando estava ainda no exercício de funções públicas";
51. Salvo o devido respeito - que é muito - a Autora, ora Recorrente, está em crer que à semelhança de qualquer outro funcionário público e com excepção dos principais titulares dos cargos no Governo da RAEM que estejam em exercício ou cujas funções tenham cessado há menos de um ano - em caso algum a mesma estava impedida ou limitada na assinatura de "protocolos de intenções" com vista à criação de sociedades comerciais, cujo objecto(s) em nada se confundem com as actividades que, ao tempo, eram por si exercidas no âmbito do Funcionalismo Público da RAEM!
52. Por outro lado - ainda que se possa discordar - a Autora, ora Recorrente, está em crer que a sua especial qualificação profissional no que diz respeito à sua ligação especial à Administração deste Território, em caso algum pode relevar para o facto de se entender que a mesma deveria estar consciente da necessidade de pagamento do imposto profissional, sabido que nos presentes autos a Autora se bateu pela existência de uma relação de trabalho e, como tal, a obrigação de efectuar tais descontos deverá sempre recair sobre as Rés e nunca sobre a própria Autora, ora Recorrente”; (cfr., fls. 1065 a 1116).

*

Contra-alegaram as RR. apresentando as seguintes conclusões:

“I. As conclusões da motivação do recurso devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que serão objecto de decisão.
II. O Recorrente está obrigado a dar cumprimento ao disposto no art.° 598.° do C.P.C. nomeadamente quanto ao ónus de indicar as normas jurídicas violadas pela decisão recorrida, o que não fez.
III. Os tribunais e os senhores magistrados não devem praticar actos inúteis não podendo carrear para a Base Instrutória e formular quesitos sobre factos que já lá estão, que são laterais à lide e que careçam de relevância para as várias soluções plausíveis da questão de direito.
IV. Os tribunais também não se podem substituir às partes de maneira a preencherem os quesitos que devam constar da Base Instrutória com factos que não foram ou foram insuficientemente articulados pelas partes para produzirem os efeitos jurídicos que estas pretendem.
V. A Autora não articulou factos suficientes, nem se mostrou capaz de produzir prova, testemunhal ou documental, que comprovasse a existência de qualquer relação laboral com as Rés.
VI. Dos factos não provados a única consequência que se pode extrair é que foram não provados, não podendo nenhum julgador extrair com seriedade o que quer que fosse daquilo não existe e que não se provou.
VII. Atenta a prova produzida, as respostas dadas pelo Tribunal a quo estão solidamente ancoradas naquela, nos depoimentos de parte, nos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas e na numerosa quantidade de documentos que as partes carrearam para os autos, encontrando-se plenamente fundamentadas na sentença recorrida, de facto e de direito, sendo perfeitamente perceptível o percurso lógico que levou à formação da convicção do julgador, a qual é por natureza insindicável.
VIII. Não têm qualquer sentido as alegações da Recorrente em matéria de pretensos erros manifestos e nulidades na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo.
IX. O Tribunal ad quem está sempre a tempo de julgar a litigância de má fé das partes, pelo que o facto do Tribunal a quo não se ter oportunamente pronunciado sobre a mesma não inibe a instância superior de em sede de recurso se pronunciar sobre o pedido anteriormente formulado de condenação em multa e indemnização a favor das Rés, Recorridas.
X. A decisão recorrida fez uma correcta apreciação dos factos e aplicação do Direito, não merecendo qualquer censura ou reparo”; (cfr., fls. 1123 a 1159).

*

Remetidos os autos a este T.S.I., neles subiu um outro “recurso interlocutório” pelas RR. antes interposto; (cfr., fls. 864 a segs.).

*

Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

Fundamentação

2. Dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..

O primeiro – “interlocutório” – tendo como objecto uma decisão do Mmo Juiz do T.J.B. que admitiu um pedido de alteração de testemunhas pela A. apresentado.

O segundo, da sentença prolatada e que atrás se deixou transcrita na sua íntegra.

Nos termos do art. 628° do C.P.C.M.:

“1. Os recursos que tenham subido conjuntamente são apreciados pela ordem da sua interposição.
2. Os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada.
3. Os recursos que não incidam sobre o mérito da causa só são providos quando a infracção cometida tenha influído no exame ou decisão da causa ou quando, independentemente da decisão do litígio, o provimento tenha interesse para o recorrente”.

Atento o preceituado no n.° 2 deste art. 628°, visto está que há que se começar pela apreciação do “recurso da sentença”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 16.05.2019, Proc. n.° 712/2018).

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

A tanto se passa.

2.1 Do “recurso da sentença”.

Tendo presente o que pela A., ora recorrente, e RR., ora recorridas, vem alegado em sede das suas alegações e contra-alegações e respectivas conclusões, importa desde já resolver uma “questão (prévia)”.

Vejamos.

Dizem as RR., ora recorridas, que “O Recorrente está obrigado a dar cumprimento ao disposto no art.° 598.° do C.P.C. nomeadamente quanto ao ónus de indicar as normas jurídicas violadas pela decisão recorrida, o que não fez”; (cfr., concl. II).

Reflectindo sobre a peça recursória pela A. apresentada, (cfr., fls. 1065 a 1115-v), e ainda que se nos mostre de consignar que (algo) extensas sejam (também) as conclusões apresentadas, cremos que se pode dar por observado o n.° 1 do art. 598° do C.P.C.M., pelas ditas recorridas invocado.

Óbvio é que as ditas conclusões podiam ser mais “comprimidas” e reduzidas, e, quiçá, mais explícitas.

Porém, afigura-se-nos que em matéria como a agora em questão, adequado é adoptar alguma flexibilidade, (sem excessos de formalismos), sendo de se reconhecer, (sempre, a mais ampla) liberdade à parte que, sentindo-se lesada, (injustiçada), usa do recurso no intuito de demonstrar o seu inconformismo em relação à decisão recorrida.

Essencial é que se entenda o “porque” do aludido inconformismo.

Nesta conformidade, e ponderando no teor das alegações e conclusões pela recorrente apresentadas, e nas “questões” em relação às quais pretende uma pronúncia deste T.S.I., cremos que razoável será dar-se as aludidas “conclusões” como adequadas.

*

Dito isto, passemos então às “questões” pela recorrente colocadas no seu recurso.

Se bem ajuizamos, cremos que as mesmas estão relacionadas com a:
- “selecção da matéria de facto”;
- “decisão da matéria de facto”, (provada e não provada); e com a,
- “decisão de direito”.

–– Quanto à “selecção da matéria de facto”.

Em síntese que nos parece adequada, diz a recorrente que o Mmo Juiz a quo devia ter incluído na base instrutória matéria de facto que se lhe apresenta essencial ao objecto da acção que propôs, e com a qual, (como se deixou relatado), pretendia provar que com as RR., ora recorridas, celebrou um “contrato de trabalho”, do qual lhe resultaram danos e prejuízos cuja compensação reclama.

E como resulta das suas conclusões de recurso, (cfr., concl. 1ª a 8ª), pretende a ora recorrente que seja aditada à referida base instrutória a matéria que tinha alegado na sua petição inicial constante dos art°s 67°, 68°, 70°, 73°, 74°, 75°, 76°, 177°, 151°, 152°, 157°, 158°, 224° e 226°; (cfr., concl. 3ª e 4ª).

Na óptica da recorrente, a referida matéria é, como se disse, “essencial” à prova de que a “relação profissional” que manteve com as RR. era assente num “contrato de trabalho”, o mesmo sucedendo com os “danos” cuja compensação pretende.

Nos termos do art. 430° do C.P.C.M.:

“1. Se o processo tiver de prosseguir e a acção tiver sido contestada, o juiz, no próprio despacho a que se refere o artigo anterior ou, não havendo a ele lugar, no prazo fixado para o proferir, selecciona a matéria de facto relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, indicando:
a) Os factos que considera assentes;
b) Os factos que, por serem controvertidos, integram a base instrutória.
2. As partes podem reclamar contra a selecção da matéria de facto considerada assente ou integrada na base instrutória, com fundamento em deficiência, excesso ou obscuridade.
3. O despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final”.

Tempestiva sendo a “questão”, (cfr., n.° 2 e 3 do art. 430°), e da reflexão que sobre a mesma pudemos efectuar, (ponderando, especialmente, no que dos ditos artigos da petição inicial consta e na matéria de facto pelo Tribunal a quo seleccionada e levada à base instrutória, cfr., fls. 633-v a 645), cremos que não se pode reconhecer razão à A., ora recorrente.

Com efeito, lendo-se a matéria de facto seleccionada e levada à referida base instrutória, afigura-se-nos que a mesma se apresenta em conformidade com o estatuído no transcrito art. 430°, apresentando-se-nos que com a mesma assegurada estava uma boa decisão de direito atentas as pretensões das partes e as “várias soluções plausíveis da questão de direito”.

Não se nega que, à primeira vista, outra podia ser a solução quanto à matéria dos art°s 67° e 68° da petição, (isto é, quanto às alegadas “ordens, instruções, direcção e supervisão das RR.”).

Porém, para além de a dita matéria se apresentar “conclusiva”, (e, como tal, não devendo – nem podendo – ser seleccionada), inegável cremos ser que atentas as pretensões (pedidos) da A., adequada foi a levada à base instrutória.

Não se pode também olvidar que a petição inicial da A. era composta por 238 artigos e que, como já se referiu, o juiz deve seleccionar – apenas e tão só – “a matéria de facto relevante, segundo as várias soluções plausíveis de direito”, afigurando-se-nos ser este o caso dos autos.

Dito de outro modo, somos de opinião que a matéria seleccionada e levada à base instrutória respeitou, integralmente, os objectivos pela A. (e RR.) pretendidos com a presente acção, pois que a mesma permitia apurar, (de forma clara e cabal), da invocada “natureza da relação profissional”, (se assente num “contrato de trabalho” celebrado entre as partes), e dos (eventuais) danos – e sua extensão – daí resultantes.

Tenha-se, aliás, em conta, que a própria recorrente não deixa de afirmar no seu recurso que “está a Autora, ora Recorrente, em crer que perante a factualidade provada o Tribunal a quo dispunha de fortes elementos indiciadores da existência entre as partes de uma relação de natureza laboral, e não de outra natureza, v.g., uma prestação de serviços”; (cfr., concl. 9ª).

Adequada se apresentando assim a decisão recorrida que indeferiu a reclamação da ora recorrente com o fundamento de que “a – vasta – matéria constante da matéria de facto controvertida é mais do que suficiente para a análise do objecto essencial da presente acção”, continuemos.

–– Censura não merecendo a “selecção da matéria de facto”, passemos para a questão seguinte, relacionada com a sua “decisão”.

Aqui, diz a A. ora recorrente que o Tribunal a quo incorreu em “erro na decisão da matéria de facto”, afirmando que em relação à matéria constante dos quesitos 5°, 32°, 33° e 34°, (julgada “não provada”), se devia decidir no sentido de que “provada” está.

A matéria em questão prende-se com a (possibilidade de) “renovação” do alegado “contrato de trabalho” e com o “gozo de férias nos anos de 2011 a 2013”, considerando a ora recorrente que adequadamente ponderados não foram os documentos que juntou, (de fls. 62 e 323), assim como o depoimento de uma testemunha; (cfr., concl. 13ª e 14ª).

Ora, tendo presente as “razões” pelo Tribunal a quo invocadas para a sua decisão, (cfr., fls. 1032 a 1038), e não se podendo deixar de ter em conta que a aludida “renovação” dizia respeito a um alegado “contrato de trabalho” (alegadamente) celebrado entre a recorrente e as recorridas, e que as referidas “férias”, gozadas ou não, constituíam um dos seus “efeitos”, também aqui nos parece que motivos não há para qualquer censura ao que decidido foi.

Com efeito, sendo de notar que tão só invoca a ora recorrente “documentos” (particulares) e o “depoimento de uma testemunha” para – tentar – alcançar a inversão do decidido, e constituindo estes elementos probatórios “meios de prova sujeitos à livre apreciação do Tribunal”, (cfr., art. 558° do C.P.C.M.), não se vislumbra nenhum motivo para se acolher o pretendido.

Entende ainda a ora recorrente que incorreu o Tribunal a quo em erro ao dar como “provada” a matéria (então) constante nos “quesitos 67°, 73° e 75°”, (e que constituem os “pontos 28, 30 e 32 da factualidade provada”).

Ora, também aqui não se pode ir ao encontro da sua pretensão.

Vejamos.

No “ponto 28” da matéria de facto consta (como provado) que:
- “Acresce que no recibo de quitação atinente a este último cheque e que foi o primeiro dos quatro pagamentos que a Autora recebeu das Rés e dos seus sócios, encontra-se referido que esse cheque de HKD 1.000.000,00 diz respeito ao pagamento da primeira prestação (no original em língua chinesa) do contrato de consultadoria”;

No “ponto 30” que:
- “A Autora facturou esses serviços em nome da empresa F da qual é sócia maioritária e gerente-geral, regularizando a situação atinente ao adiantamento pouco antes de deixar de colaborar com as Rés”;

E, no “ponto 32” que:
- “Passado o período de nojo relativamente à Administração Pública, a Autora, em 11 de Outubro de 2011, procedeu à constituição de uma sociedade denominada G LDA., registada no dia seguinte e com a matrícula n.º 40630 na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, sociedade com o capital de MOP $ 100.000,00 (cem mil patacas), na qual é titular de uma quota de MOP $ 99.000,00 (noventa e nove mil patacas), ou seja, é titular de 99% do capital social, sendo também a sua única administradora”.

Ora, tendo presente o estatuído no art. 558° do C.P.C.M., onde se consagra o “princípio da livre apreciação da prova”, e ponderando no teor dos documentos pelo Tribunal invocados como motivo da sua “convicção” – respectivamente, “Doc. n.° 4”, a fls. 169, “Doc. n.° 5 e 6”, a fls. 170 a 171, e o “Doc. n.° 10”, a fls. 185 a 187 – cremos que também aqui nenhuma censura merece o decidido, cabendo notar que o mesmo se apresenta em total conformidade (e lógica) com o que a título de fundamentação vem exposto a fls. 1037-v a 1038, quanto à “prova testemunhal”.

Como em recente Ac. deste T.S.I. – que trata da “questão do julgamento da matéria de facto” – se sublinha, não se pode olvidar que “desde que tenham sido observadas as regras quanto à força probatória das provas e à valoração das provas e que a decisão de facto se não mostre manifestamente contrária à regras da experiência de vida e à logica das coisas, em princípio não é sindicável a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação.
(…)
Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação da matéria de facto com vista à sua eventual alteração só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
Portanto, para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.
Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas”; (cfr., o Ac. de 30.05.2019, Proc. n.° 831/2018).

Não se nos apresentando ser o caso dos autos, vista está a solução.

–– Resolvidas que desta forma – cremos que – ficaram as “questões” relacionadas com a “decisão da matéria de facto”, passemos agora para a “decisão de direito”.

Pois bem, aqui, e em suma, bate-se a ora recorrente por uma decisão que qualifique a relação profissional que com as recorridas manteve como uma “relação laboral assente num contrato de trabalho”.

Porém, também aqui se nos apresenta que não se pode acolher o assim entendido.

Nos termos do art. 1079° do C.C.M.:

“1. Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
2. O contrato de trabalho está sujeito a legislação especial”.

Perante o assim estatuído, pacífico é o entendimento que o contrato de trabalho se caracteriza, essencialmente, por dois elementos ou características: a “retribuição” e a “subordinação jurídica”.

Aquela, entendida como “troca” e “contrapartida” da actividade laboral. Esta, como a “relação” de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face a ordens, regras, e/ou orientações ditadas pelo empregador dentro dos limites do contrato e das normas que o regem, e que, na sua vertente mais característica, tem duas facetas: o dever de obediência do trabalhador e o poder de direcção, conferido ao empregador e, no âmbito do qual a cargo da entidade patronal ficará também a fiscalização do cumprimento do horário, da assiduidade e dos bons ou maus resultados do trabalho realizado; (sobre a matéria, cfr., v.g., Calvão Telles in B.M.J. 83°-165, e Monteiro Fernandes in, “Noções Fundamentais de Dto Trabalho”, pág. 33 e segs.).

Celebra-se tal espécie de contrato quando alguém se obriga para com outrém, mediante retribuição, a fornecer-lhe o seu próprio trabalho nas suas energias criadoras, e não concretamente o resultado ou os resultados dele. Promete-se a actividade na sua raíz, como processo ou instrumento posto dentro dos limites mais ou menos largos à disposição da outra parte para a realização dos seus fins; não se promete este ou aquele efeito a alcançar mediante o emprego de esforço, como a transformação ou o transporte de uma coisa, o tratamento de um doente, a condução de um litígio judicial. Nisto se distinguem a “locatio operarum” ou contrato de trabalho, e a “locatio operis” a que se dá o nome de prestação de serviços; (cfr., v.g., sobre a diferença entre o “contrato de trabalho” e o de prestação de serviços, o Ac. da Rel. de Guimarães de 23.05.2019, Proc. n.° 769/17).

Ora, percorrendo a “decisão da matéria de facto dada como provada”, (e, agora, só esta releva), não se encontra matéria (alguma) com base na qual se possa afirmar que na “relação profissional” que entre recorrente e recorrida existiu presentes estavam os “elementos” próprios e típicos de um “contrato de trabalho” mostrando-se pois de acompanhar a fundamentação exposta na sentença recorrida.

E, assim sendo, e sem necessidade de mais alongadas considerações, evidente é que não se pode dar como verificada a alegada e pretendida ”relação profissional contratual”, sendo de se confirmar, assim, também nesta parte, a decisão recorrida, com o que se terá de negar provimento ao recurso da A..

2.2 Do “recuso interlocutório das RR.”.

Tendo presente a solução a que se chegou em relação ao recurso da A., e atento o estatuído no n.° 2 do atrás já transcrito art. 628° do C.P.C.M. – onde se prescreve que “Os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada” – visto está que não tem este T.S.I. que conhecer do “recurso interlocutório” pelas RR. apresentado; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 24.01.2019, Proc. n.° 327/2018).

*
*

Aqui chegados, uma última questão importa resolver.

Em sede da sua contestação, pediram as RR. a condenação da A. como “litigante de má fé”.

Para tal alegaram que:

“C) PEDIDO DE CONDENAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ:
218.°
Para fundamentar a presente acção e enquadrá-la no âmbito do direito laboral, a Autora refere que "Desde o início da prestação de trabalho (18 de Abril de 2011) e até final do mês de Abril de 2012, as Rés pagaram à Autora as quantias salariais que haviam sido expressamente acordadas entre ambas (i.e., por escrito entre a Autora e a 1.ª Ré e verbalmente entre a Autora e a 2.ª Ré).
219.°
É falso, a Autora sabe-o perfeitamente e já acima ficou referido, que as Rés alguma vez lhe tenham pago salários desde 18 de Abril de 2011 e até ao final Abril de 2012.
220.°
Os pagamentos que a Autora recebeu foram sempre a título de contrapartidas dos serviços de consultadoria a várias empresas e relações públicas, sendo que isso é expressamente referido logo no primeiro recibo que a Autora emitiu quando recebeu o primeiro cheque em 13/10/2011 e é evidenciado por múltiplos documentos.
221.°
No total, a Autora recebeu quatro cheques e nunca efectuou descontos para efeitos do imposto profissional.
222.°
Os pagamentos realizados à Autora não tinham, nem tiveram, qualquer periodicidade, regularidade ou tempestividade, ao contrário daquilo que aquela quis dar a entender ao Tribunal, não sendo tal tentativa de indução ingénua ou resultante de um lapso como por vezes se procura justificar, com cada vez maior recorrência, actos ostensivos de má fé processual.
223.°
A Autora omitiu deliberadamente todos esses factos, e muitos outros acima relatados, omitindo documentos, relações empresariais, num manancial de situações que voluntariamente quis subtrair ao conhecimento do Tribunal, para fazer passar a ideia de que era trabalhadora das Rés e procurando converter um contrato-promessa (ou pré-contrato no original em língua chinesa) e um acordo pré-societário num contrato de trabalho escrito, que nunca existiu, entre a Autora e a 1ª Ré e num contrato verbal com a 2ª Ré, ambos só apreensíveis pela sua perfídia e engenhosa imaginação.
224.°
Sem prejuízo do conhecimento oficioso da litigância de má fé, são patentes os artifícios ardilosos - desde logo comprovados pela extensa prova documental junta aos autos - utilizados pela Autora para distorcer a verdade e induzir em erro o julgador, a forma temerária como hoje em dia se introduzem acções em juízo não pode ser tolerada pelo sistema de justiça, tanto mais que provoca uma actividade inútil, morosa e extremamente onerosa para quem é obrigado a defender os seus direitos em sede judicial.
225.°
A atitude processual da Autora é facilmente enquadrável em qualquer uma das alíneas do n.° 2 do artigo 385.° do C.P.C.:
a) A Autora sabe ler chinês e sabia perfeitamente que o Documento que juntou como pretenso contrato de trabalho é um "pré-contrato" ou contrato-promessa que ficaria sempre dependente do preenchimento das condições nele referidas, designadamente quanto à celebração do contrato prometido;
b) A Autor omitiu factos essenciais relevantes para a decisão, nomeadamente quanto à falta de pagamento regular da pretensa retribuição, a ausência de descontos para efeitos de pagamento do imposto profissional e as relações empresariais que manteve com as Rés e D e E;
c) Omitindo esses factos, não juntando cópias dos pagamentos efectuados, dos recibos emitidos ou dos comprovativos dos descontos efectuados, violou de forma grave o dever de cooperação com o Tribunal;
d) A Autora pretende transformar situações de prestação de serviços de consultadoria e relações públicas e uma relação empresarial em pretensos contratos de trabalho com duas entidades juridicamente distintas, escondendo a verdade, omitindo factos essenciais para o julgamento e iludindo o Tribunal para poder conseguir uma compensação de vários milhões de patacas na justiça laboral o que sabe que nunca conseguiria na justiça civil por falta de fundamento.
226.°
Neste sentido, verificados de forma tão clara os pressupostos da litigância de má fé, têm as Rés o direito de pedir a condenação da Autora como litigante de má fé no pagamento de uma indemnização, a qual desde já se requer que seja fixada por V. Exa. em quantia certa, a qual deverá ser estipulada de acordo com o vosso prudente arbítrio num valor que não deverá ser inferior a MOP $ 800.000,00, tendo em atenção a gravidade dos factos, a forma abusiva como a acção é intentada, o seu elevadíssimo valor, as despesas das Rés com as custas judiciais e a sua defesa, incluindo os honorários dos respectivos mandatários, cujo valor desde já se estima, face ao valor da acção e valor/hora médio praticado no foro local em MOP $ 300.000,00 (trezentas mil patacas)”; (cfr., fls. 162 a 164).

E, (como se viu), perante o silêncio do T.J.B. quanto ao assim peticionado, terminam as RR. as suas contra-alegações e conclusões afirmando:

“O Tribunal ad quem está sempre a tempo de julgar a litigância de má fé das partes, pelo que o facto do Tribunal a quo não se ter oportunamente pronunciado sobre a mesma não inibe a instância superior de em sede de recurso se pronunciar sobre o pedido anteriormente formulado de condenação em multa e indemnização a favor das Rés, Recorridas”; (cfr., concl. IX).

Pois bem, antes de mais, note-se que em relação ao pelas RR. recorridas peticionado nas suas contra-alegações foi a A. recorrente notificada, pelo que, sobre a matéria, (e embora nada tenha dito), o certo é que teve (já) oportunidade de se pronunciar, (observado estando o contraditório).

Assim, há que decidir.

Vejamos.

Em conformidade com o se deixou consignado, constata-se que incorreu o T.J.B. em “omissão de pronúncia” dado o seu silêncio em relação a esta questão oportunamente suscitada e agora em apreciação.

Tal “omissão”, origina, como se sabe, a nulidade a que se refere o art. 571°, n.° 1, al. d) do C.P.C.M..

Porém, tal “nulidade” não foi (adequadamente) suscitada –v.g., em sede de recurso das RR. – nem é de conhecimento oficioso; (cfr., v.g., V. Lima in, “Manuel de Direito Processual Civil”, 2018, pág. 568).

Seja como for, uma questão é a “nulidade” (por “omissão de pronúncia”), e outra, a (eventual) “má fé da A.”.

E em relação a esta última, pode – e deve – este T.S.I. emitir pronúncia.

Vejamos pois.

Nos termos do art. 385° do C.P.C.M.:

“1. Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”.

Nas palavras de Rodrigues Bastos, “A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.º e 266º-A. Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má-fé”; (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, 3ª Edição, pág. 221 e 222, podendo-se, sobre o tema, ver também Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo”, pág. 26 e segs.)

E como já teve este T.S.I. oportunidade de considerar:

“Existe litigância de má-fé, quando um sujeito processual, agindo a título de dolo ou – agora, no âmbito do C.P.C.M. – negligência grave, tenha no processo, um comportamento desenvolvido com o intuito de prejudicar a outra parte ou para perverter o normal prosseguimento dos autos.
Todavia, na verificação de tal má-fé, importa proceder com cautela, já que há que reconhecer o direito a qualquer sujeito processual de pugnar pela solução jurídica que, na sua perspectiva, se lhe parece a mais adequada ao caso, isto, óbviamente, com excepção dos casos em que se demonstra de forma clara e inequívoca a intenção de pretender prejudicar a outra parte ou perturbar o normal prosseguimento dos autos”; (cfr., v.g., o Ac. de 19.09.2002, Proc. n.° 109/2002 e de 13.09.2007, Proc. n.° 419/2007, podendo também ver-se o recente Ac. da Rel. do Porto de 06.05.2019, Proc. n.° 3835/18, onde sobre a questão se consignou “O direito fundamental de acesso aos tribunais só deve ser penalizado no seu exercício quando, de forma segura, se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização chicaneira dos meios processuais, com o objetivo de entorpecer a realização da justiça, não bastando para a condenação por litigância de má-fé o facto de o julgador considerar manifestamente improcedente o pedido formulado” ou, o recente Ac. deste T.S.I. de 30.05.2019, Proc. n.° 845/2018, onde se considerou que “Quando o autor não obtém ganho de causa nem sempre pode ser tido como litigante de má fé, como se sabe. Na verdade, só é litigante de má fé quando, como dolo ou culpa grave, quem deduz pretensão ou oposição que sabia, ou não devia ignorar, não ter qualquer fundamento (art. 385°, n°2, al. a), do CPC)”).

Ora, ponderando no que se deixou exposto, cremos nós que motivos não existem para a pretendida condenação da A. como litigante de má fé.

O facto de a A. não ter conseguido provar a sua versão, não implica que se conclua que alegou, consciente e intencionalmente, factos que não correspondiam à verdade, não se mostrando de afirmar também – porque provado não está – que omitiu, deliberadamente, certos factos, ou que agiu de forma intencional e ardilosa.

Daí, e sem mais alongadas considerações, há que decidir como segue.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso da A., não se conhecendo do recurso interlocutório pelas RR. interposto.

Custas pela A. recorrente.

Registe e notifique.

Oportunamente, nada vindo de novo, devolvam-se os presentes ao T.J.B. autos com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 04 de Julho de 2019
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José Maria Dias Azedo
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Fong Man Chong
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Ho Wai Neng

(*) Processo redistribuído ao ora relator em 11.04.2019.
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Proc. 943/2016 Pág. 56

Proc. 943/2016 Pág. 57