Processo n.º 476/2018 Data do acórdão: 2019-7-11 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 476/2018
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 300 a 307v do Processo Comum Colectivo n.° CR1-16-0221-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de sete meses de prisão, e como autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de dois anos e nove meses de prisão, suspensa na execução por três anos, sob condição de pagamento ao ofendido, dentro de um ano contado do trânsito em julgado dessa própria decisão condenatória, da quantia indemnizatória, aí arbitrada oficiosamente, de duzentas e sessenta mil patacas (com juros legais desde a data dessa própria decisão até integral e efectivo pagamento), veio o arguido A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a sua absolvição directa penal (com revogação também da decisão de arbitramento oficioso da indemnização civil), ou pelo menos o reenvio do processo para novo julgamento, por entender ele que a dita decisão final da Primeira Instância estava a padecer do erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) (cfr. em detalhes, o teor da sua motivação apresentada a fls. 336 a 348 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 363 a 368 dos presentes autos), no sentido de provimento parcial do recurso, com consequente absolvição do crime de burla do arguido.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 377 a 378v), pugnando pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 300 a 307v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que o arguido imputou à decisão condenatória recorrida o vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo teceu a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto nos últimos dois parágrafos da página 9, em toda a página 10 e nos dois primeiros parágrafos da página 11, todas do texto decisório ora recorrido, a fls. 304 a 305 dos autos, tendo explicado concretamente, a partir da linha 8 da página 10 do acórdão (a fl. 304v) até ao segundo parágrafo da página 11 do mesmo acórdão (a fl. 305), as razões por quê é que acreditou na versão fáctica da parte ofendida e não acreditou na versão fáctica do arguido.
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados e como tal referidos pelo Tribunal recorrido nessa fundamentação probatória do seu acórdão, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito por esse Tribunal, pelo que de toda a factualidade já apurada em primeira instância, resulta legalmente justa e correcta toda a decisão condenatória penal do arguido (com também correcta condenação deste no pagamento do montante, também certo, da indemnização a favor do ofendido).
Naufraga o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 11 de Julho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(Com declaração de voto por entender que por ser o crime de falsificação de documento crime instrumental do crime da burla, era de concurso aparente dos dois crimes.)
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