打印全文
Processo nº 423/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 18 de Julho de 2019

ASSUNTO:
- Estado civil
- Registo predial
- Artº 8º do CRP
- Registo do divórcio

SUMÁRIO:
- O estado civil do titular da propriedade é simplesmente um facto complementar do registo predial, que se comprova pelo registo civil e não predial (artºs 3º e 4º do Código do Registo Civil).
- Não sendo o estado civil do titular da propriedade um facto comprovado pelo registo predial, não há lugar a aplicação do artº 8º do CRP.
- Tendo o estatuto de residente da RAEM, apesar não permanente, e pretendendo beneficiar dos efeitos jurídicos do estado civil tanto casado como divorciado em relação a terceiros, deve transcrever o seu casamento lavrado no exterior, bem como averbar o posterior divórcio ocorrido no exterior no registo civil da RAEM
- Não tendo a Autora registado/averbado o divórcio à data da penhora da fracção autónoma em referência, o reconhecimento da mesma como bem própria da Autora à data de aquisição é ineficaz em relação ao terceiro nos termos do nº 3 do artº 1644º do C.C..
O Relator

Processo n.º 423/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 18 de Julho de 2019
Recorrente: A (2º Réu)
Recorrida: B (Autora)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I – Relatório
  Por sentença de 14/01/2019, julgou-se procedente a acção e em consequência declarou-se que o direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção sobre a fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio denominado “C” sito em Macau, na Avenida do XX, XX, zona da XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2XXX5 e inscrito a favor da Autora B sob o nº 25XXX3G pertence apenas à Autora por o ter adquirido no estado de divorciada, julgando-se improcedente a excepção invocada pelo 2º Réu A de lhe ser inoponível o reconhecimento do direito supra.
Dessa decisão vem recorrer o 2º Réu, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
  (i)擴大事實事宜範圍
1. 原審法院在篩選事實事宜時,並沒有將答辯狀第二十九條事實增加到待證事實之中。
2. 然而,上指之事實對本案的審判來說是重要的,也是構成上訴人抗辯所依據的必要事實。這是由於有關的事實,對是否適用《民法典》第1644條第3款起關鍵作用。
3. 事實上,原審法院忽略了被上訴人持有澳門非永久性居民身份證這一重要的證據資料。
4. 被上訴人既然在澳門通常居住,那麼,根據《民事登記法典》第5條及第138條規定,至少自2013年8月15日開始,被上訴人便有條件申請轉錄與第一被告之婚姻,以及向中級法院聲請確認與第一被告與中國佛山禪城區所辦理的離婚協議,和將之轉錄在民事登記局內。
5. 登記作為負擔的一種,應由透過消弭負擔而得益的人去完成。然而,被上訴人並沒有作出任何行為。
6. 在沒有答辯狀第二十九條的事實事宜的情況下,原審法院所審理的事實範圍不足以查明事實真相。
7. 所以,上訴法院應該根據《民事訴訟法典》第629條第4款規定,撤銷原審法院作出的事實事宜裁判,並在待證事實中加入答辯狀第二十九條事實,以便原審法院對《民法典》第1644條第3款規定之適用問題進行審理。
(ii)判決無效--過度審理
8. 在起訴狀中,被上訴人其實並沒有根據《物業登記法典》第8條的規定,在請求中同時提出註銷其認為不正確的登記。因此,原審法院係不應該對被上訴人的請求進行判處。
9. 但是,原審法院卻作出了相反決定,並判處被上訴人請求理由成立,這樣,被上訴的判決無疑係違反了《物業登記法典》第8條及《民事訴訟法典》第3條第1款的規定。
10. 此外,上指的情況,亦屬《民事訴訟法典》第571條第1款d項下半部分所指的過度審理。所以,原審法院的判決應被宣告無效。
(iii)錯誤解釋及適用法律
11. 雖然中級法院審查及確認被上訴人與第一被告在國內的離婚協議是形式上的,但我們不可以就此得出結論認為兩人的離婚效力追溯至2012年5月8日。
12. 因為,根據《民法典》第1644條第1款規定,對於夫妻間之財產關係,離婚效力追溯至程序開始之日。
13. 被上訴人提起外地裁判之確認之訴訟的日期是2014年11月19日,所以,上訴人與第一被告的離婚效力,最多只可以追溯至此日。
14. 在上述日期前,即2014年5月30日,上訴人作為卷宗編號: CV2-13-0099-CEO內的執行人,已經對涉案單位作出查封登記。
15. 因此,即使宣告涉案單位係被上訴人以離婚狀況取得,也不可用來對抗上訴人。
16. 然而,原審法院卻作出了相反的裁定,這樣,便錯誤解釋及適用《民法典》第1644條第1款的規定。
17. 而且,作為第三人的上訴人,其對涉案單位查封登記之權利,不應受離婚的追溯效力所影響。換言之,上訴人對涉案單位查封登記之權利應予以保留。
*
A Autora respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 334 a 347v dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
a) A fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio denominado “C” sito em Macau, na Avenida do XX, XX, zona da XX, está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2XXX5 e inscrito a favor da Autora sob o nº 25XXX3G; (alínea a) dos factos assentes)
b) A Autora adquiriu a “IID4” mediante escritura pública de aquisição outorgada em 04.06.2013; (alínea b) dos factos assentes)
c) Na referida escritura pública de aquisição, a Autora declarou-se casada com o 1º Réu, no regime de comunhão de adquiridos, factos esse que veio a constar do respectivo registo predial, nomeadamente na referida inscrição nº 25XXX3G; (alínea c) dos factos assentes)
d) Antes da celebração da referida escritura pública referida em c), a Autora a título de promitente compradora celebrou em 15 de Agosto de 2007 com D Ltd. o contrato promessa que incide a fracção autónoma em causa; (alínea c-1) dos factos assentes)
e) A Autora casou-se com o 1º Réu em 24.05.1988 no Interior da China; (alínea c-2) dos factos assentes)
f) O 2º Réu é exequente dos autos CV2-13-0099-CEO; (alínea c-3) dos factos assentes)
g) O imóvel em causa foi penhorado naqueles autos; (alínea c-4) dos factos assentes)
h) A Autora e o 1º Réu divorciam-se na República Popular da China em 08.05.2012; (alínea d) dos factos assentes)
i) Em 19.11.2015 por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proferido no âmbito do proc. nº 770/2014, e transitado em julgado a 07.12.2015 a sentença do divórcio foi revista e confirmado na RAEM; (alínea e) dos factos assentes)
j) Relativamente à fracção autónoma referida em a) em 12.02.2015 foi inscrito no Registo Predial ter sido adquirido como bem próprio de B, aqui Autora;
k) Relativamente à fracção autónoma referida em a) em 30.05.2014 foi inscrito no Registo Predial ter sido penhorada nos autos de execução em que é Exequente o aqui 2º Réu.
*
III - Fundamentação
1. Da nulidade da sentença por excesso da pronúncia:
Para o 2º Réu, uma vez que a Autora não pediu simultaneamente o cancelamento do registo, o Tribunal a quo não pode conhecer do pedido da Autora no sentido de que o bem imóvel registado com bem comum do casal lhe pertence exclusivamente, o que viola o artº 8º do Código do Registo Predial (CRP), incorrendo assim no excesso da pronúncia, o que gera nulidade da sentença nos termos da al. d) do nº 1 do artº 571º do CPC.
Não se nos afigura que o Réu tenha razão.
Dispõe o artº 8º do CRP que:
1. Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em tribunal sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo.
2. Não terão seguimento, após os articulados, as acções em que não seja formulado o pedido de cancelamento previsto no número anterior.
Será o estado civil do titular da propriedade um facto comprovado pelo registo predial?
A resposta, por nós, não deixa de ser negativa.
Nos termos do artº 2º do CRP, estão sujeitos a registo predial:
a) Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão;
b) Os factos jurídicos confirmativos de convenções anuláveis ou resolúveis que tenham por objecto os direitos mencionados na alínea anterior;
c) O acto constitutivo da propriedade horizontal e, bem assim, as respectivas modificações;
d) A concessão de terrenos do domínio privado do Território e do uso privativo do domínio público hídrico e as suas transmissões ou alterações;
e) A mera posse;
f) A promessa de alienação ou oneração, os pactos de preferência e a disposição testamentária de preferência, bem como a cessão contratual emergente destes factos, se lhes tiver sido atribuída eficácia real;
g) A cessão de bens aos credores;
h) A hipoteca, a sua cessão ou modificação, a cessão do grau de prioridade do respectivo registo e a consignação de rendimentos;
i) A transmissão de créditos garantidos por hipoteca ou consignação de rendimentos, quando importe transmissão de garantia;
j) A afectação de imóveis e de créditos hipotecários ao caucionamento das provisões das seguradoras;
k) A locação financeira e as suas transmissões;
l) A penhora, o arresto, a apreensão em processo de falência ou insolvência e o arrolamento, bem como quaisquer outros actos ou providências que afectem a livre disposição de bens;
m) O penhor, a penhora, o arresto e o arrolamento de créditos garantidos por hipoteca ou consignação de rendimentos e quaisquer outros actos ou providências que incidam sobre os mesmos créditos;
n) A constituição do apanágio e as suas alterações;
o) Quaisquer outras restrições ao direito de propriedade e quaisquer outros encargos sujeitos, por lei, a registo;
p) Os factos jurídicos que importem a extinção de direitos, ónus ou encargos registados.
Por sua vez, o nº 2 do mesmo preceito estipula que “O disposto na alínea a) do número anterior não abrange a comunicabilidade de bens resultante do regime matrimonial”.
Como se vê, o estado civil do titular da propriedade é simplesmente um facto complementar do registo predial.
Por outro lado, nos termos do artº 7º do CRP, o registo predial só constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, pelo que nunca comprova o estado civil do titular inscrito.
O estado civil da pessoa comprova-se pelo registo civil e não registo predial (artºs 3º e 4º do Código do Registo Civil).
Não sendo o estado civil do titular da propriedade um facto comprovado pelo registo predial, não há lugar a aplicação do artº 8º do CRP.
Face ao expendido, é de julgar improvido o recurso nesta parte.
2. Da ampliação da matéria de facto:
O 2º Réu requereu a ampliação da seguinte matéria de facto, por si alegada no artº 29º da contestação, por entender que tal facto é relevante para a boa de decisão da causa, a saber:
29º
  Até 29/05/2014, quando se efectuou a penhora do imóvel em causa, não houve, na Conservatória do Registo Civil, qualquer registo de divórcio entre a Autora e o 1.º Réu.
Cremos que lhe assista razão, já que tal facto poderá influenciar eventualmente a decisão do mérito da causa, designadamente para efeitos da aplicação do nº 3 do artº 1644º do C.C.
Nesta conformidade, é de deferir a requerida ampliação.
Tratando-se de facto não impugnado, é considerado como assente, sem necessidade de baixar os autos para novo julgamento para o efeito.
Além do facto acima em referência, achamos que, para uma melhor compreensão dos factos e boa decisão do mérito da causa, deveria também acrescentar alguns factos alegados/confessados pela Autora, ora Recorrida, nas contra-alegações do recurso, bem como alegado/confessado no artº 30º da petição do recurso contencioso que correu termos neste Tribunal sob o nº 581/2015, no qual o Relator e o 1º Adjunto dos presentes autos foram, respectivamente, 1º e 2º Adjuntos (facto conhecido no exercício de funções).
a saber:
- A aquisição, pela Autora, da fracção autónoma designada por “IID4”, para habitação, do prédio denominado “C”, sito em Macau, na Avenida do XX, XX, zona da XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX5 e inscrito a favor da autora sob o n.º 25XXX3G, tinha como fito único o investimento imobiliário.
- Tendo sido por força e virtude desse investimento que tanto a Autora, como, posteriormente, o 1.º Réu, obtiveram a autorização de residência da RAEM, que depois vieram a perder.
- A Autora e o 1º Réu obtiveram autorização para residir na RAEM, através do despacho de 15/08/2008 do Exmº Sr. Secretário para a Economia e Finanças, que teve como fundamento o investimento imobiliário por si realizado, ao abrigo do artº 3º do Regulamento Administrativo nº 3/2005.
3. Do mérito da causa:
O Tribuna a quo entendeu que o nº 3 do artº 1644º do C.C. não se aplicava ao caso sub justice porque tanto a Autora como o 1º Réu não eram residentes da RAEM, pelo que não haveria lugar o registo do divórcio na RAEM.
Segundo a factualidade apurada, tanto a Autora como o 1º Réu, ex-marido da Autora, obtiverem o direito à residência na RAEM desde 15/08/2008, passando a ser assim residentes da RAEM, embora não permanentes.
Pergunta-se então, após adquirir o estatuto de residente da RAEM, apesar não permanente, e pretendendo beneficiar dos efeitos jurídicos do estado civil tanto casado como divorciado em relação a terceiros, não deverão transcrever o seu casamento lavrado no exterior, bem como averbar o posterior divórcio ocorrido no exterior no registo civil da RAEM?
A resposta, para nós, é afirmativa face ao disposto no artº 5º do Código do Registo Civil.
Assim, se conclui pela aplicabilidade do nº 3 do artº 1644º do C.C. ao caso em apreço, nos termos do qual “Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença ou decisão.”
Não tendo a Autora registado/averbado o divórcio à data da penhora da fracção autónoma em referência, o reconhecimento da mesma como bem própria da Autora à data de aquisição é ineficaz em relação ao 2º Réu.
Aliás, tendo em conta todo o circunstancialismo apurado, não temos qualquer margem de dúvida de que a Autora, no momento da celebração da escritura pública da compra e venda, declarou, de forma intencional, casada com o 1º Réu no regime de comunhão adquirido.
Pois, tendo a aquisição da fracção autónoma em referência como fito único o investimento imobiliário para obter a autorização da residência na RAEM, a Autora, ao declarar falsamente o seu estado civil na escritura pública, pretende ajudar o ex-marido manter a autorização de residência já obtida, visto que se declarasse como divorciada, o ex-marido perderia a referida autorização.
Não é aceitável a posição de que Autora não podia declarar de outra maneira porque a decisão do divórcio ainda não foi revista/confirmada na altura, já que o nº 2 do artº 6º do Código do Registo Civil prevê expressamente que “… não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada apenas como mera prova do estado civil perante os respectivos serviços” da RAEM.
Trata-se portanto duma situação fraudulenta criada pela livre vontade da própria Autora, de forma a ajudar o ex-marido obter um benefício ilegítimo.
*
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- ampliar a matéria de facto nos termos acima consignados;
- para o efeito, determinar a junção da certidão da petição inicial do Proc. nº 581/2015; e
- conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando a sentença recorrida na parte que julgou improcedente a excepção de ineficácia invocada pelo 2º Réu, passando a julgar procedente a dita excepção, declarando consequentemente que o reconhecimento da propriedade exclusiva da Autora sobre a fracção autónoma em referência é ineficaz em relação ao 2º Réu.
*
Custas pela Autora em ambas instâncias na matéria de excepção.
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 18 de Julho de 2019.

_________________________
Ho Wai Neng
_________________________
José Cândido de Pinho
_________________________
Tong Hio Fong
  
423/2019 12