Processo n.º 59/2018 Data do acórdão: 2019-7-25
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– violação de domicílio
– pernoitar
– habitar
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, o tribunal a quo deu por provado que a assistente habitava ainda na fracção dos autos, e apesar disso, o arguido, em 12 de Maio de 2014, entrou nessa fracção, removendo os objectos pessoais da assistente para fora da fracção e ordenando a pessoa mestre de chaves a substituição já da fechadura da porta da fracção, o que fez com que à assistente não era possível reentrar na fracção. Desse circunstancialismo fáctico provado, visto por qualquer homem médio, resulta claro que o acto de substituição da fechadura da porta da fracção foi praticado sem consentimento da assistente na qualidade de ser ainda habitante na fracção.
2. Para qualquer homem médio colocado na situação concreta, “pernoitar” tem sentido diferente de “habitar”, pelo que a livre convicção do tribunal recorrido aquando da tomada da sua decisão, a nível do julgamento da matéria de facto, de considerar não provado que o arguido, em 12 de Maio de 2014, jamais habitou na fracção autónoma dos autos, fere as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações. Com efeito, se antes dessa data o arguido e a assistente já deixaram de ter relação como cônjuges, é patentemente desrazoável a decisão do tribunal recorrido de dar por não provado que o arguido, nessa data, jamais habitou na fracção autónoma dos autos.
3. É, pois, de reenviar o processo para novo julgamento, com fundamento na verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 59/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): B (B)
Recorrido (arguido): C (C)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 733 a 736 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-17-0108-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido C ficou absolvido da pronunciada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.o 184.o, n.o 1, do Código Penal (CP).
Inconformada, veio a ofendida já consitituída assistente B recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) na sua motivação de recurso apresentada a fls. 742 a 779 dos presentes autos correspondentes, que não concorda ela com a matéria de facto, dada por provada no acórdão recorrido, de o arguido pernoitar, de vez em quando, na fracção XX dos autos, que deve ser considerado provado o facto de o arguido acabar por abandonar a casa da morada de família em 3 de Outubro de 2013 e deixar ela sozinha a residir na fracção XX, que o modo como foi redigido o art.o 7.o do despacho de pronúncia já encerra por si a ideia de ter o arguido entrado na fracção XX sem consentimento dela, e que a circiunstância de o arguido deter a chave da fracção XX não quer dizer que a intimidade e a privacidade da própria recorrente possa ser desrespeitada ou violada, pelo que deve o arguido passar a ser condenado no crime por que vinha pronunciado, ou deve ser determinado o reenvio o processo para novo julgamento por verificação do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do Código de Processo Penal (CPP).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 792 a 795, no sentido de improcedência.
Respondeu também o arguido recorrido a fls. 796 a 804v, pugnando pela confirmação do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 816 a 817v, opinando que com base nos elementos probatórios produzidos não se pode tirar a conclusão (sem dúvida) de que para o arguido a fracção dos autos, à data dos factos, seja uma habitação alheia, pelo que o seu acto de se introduzir nessa fracção não constitui crime de violação de domicílio, isto apesar de o resultado de investigação a que chegou o Tribunal recorrido sobre a data concreta da separação entre o arguido e a recorrente não estar isento de quesitação.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O Tribunal recorrido, no seu acórdão proferido a fls. 733 a 736, deu por provado que:
– depois de casados, o arguido e a assistente passaram, em Abril de 2012, a viver na fracção XX dos autos como sendo casa de morada de família (cfr. os factos provados 1 e 2);
– por ruptura da relação entre o arguido e a assistente em data não apurada mas antes de 12 de Maio de 2014, o arguido e a assistente deixaram de ter relação como cônjuges, i.e., deixando de comer em conjunto e de dormir em conjunto, mas o arguido pernoitava na fracção de vez em quando (cfr. o facto provado 3);
– em 12 de Maio de 2014, o arguido entrou, através da chave que detinha, na fracção autónoma XX, tendo removido aí os objectos pessoais da assistente para fora da fracção e ordenado a pessoa mestre de chaves a substituição já da fechadura da porta da fracção (cfr. o facto provado 4);
– à assistente, por causa do acto do arguido, não foi possível reentrar na fracção em causa, e alguns objectos pessoais da assistente foram colocados pelo arguido na administração do edifício (cfr. o facto provado 5);
– agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, sabendo claramente da já ruptura da relação dele com a assistente, e mesmo assim praticou intencionalmente a conduta acima referida na situação em que a assistente se encontrava ainda a habitar na referida fracção, com o intuito de fazer com que a assistente saísse da fracção, para poder reaver o domínio sobre a fracção (cfr. o facto provado 6).
2. Ao mesmo tempo, o Tribunal recorrido deu inclusivamente por não provado que o arguido, em 12 de Maio de 2014, jamais habitou na fracção XX e por não provados também outros factos descritos no despacho de pronúncia que estivessem em desconformidade com a matéria de facto dada por provada.
3. O arguido foi pronunciado pelo Juízo de Instrução Criminal por prática de um crime de violação de domicílio, porque agiu “com o intuito de invadir (em chinês “侵入”) na residência da assistente para fazer com que a assistente saísse da fracção autónoma, para assim poder reaver o domínio sobre a fracção autónoma” (cfr. o teor do facto 7 descrito no despacho de pronúncia, proferido em chinês, inclusivamente a fls. 459 a 459).
4. Na fundamentação da decisão absolutória ora recorrida, o Tribunal recorrido afirmou (na página 6 do seu acórdão, a fl. 735v) que como no despacho de pronúncia inexiste factualidade sobre a circunstância de “sem consentimento” postulada no tipo legal do art.o 184.o, n.o 1, do CP, não pode dar por verificado esse elemento constitutivo do ilícito legal em causa, e afirmou também que como o arguido, à data dos factos, detinha chave da fracção autónoma dos autos, ele tinha direito de uso da fracção autónoma, pelo que o acto dele de entrar na fracção dos autos não basta para integrar o acto delitual penal de violação de domicílio de outrem.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A assistente ora recorrente apontou à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova.
Desde já, procede o argumento da assistente de que o verbo “invadir” empregue na redacção do facto pronunciado 7 encerra por si a ideia de o arguido entrar na fracção dos autos “sem consentimento” da própria assistente.
Há que decair, pois, o argumento principal sustentado pelo Tribunal recorrido para tomada da decisão absolutória do arguido do pronunciado crime de violação de domicílio.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido deu por provado que a assistente habitava ainda na fracção dos autos, e apesar disso, o arguido, em 12 de Maio de 2014, entrou nessa fracção, removendo os objectos pessoais da assistente para fora da fracção e ordenando a mestre de chaves a substituição já da fechadura da porta da fracção, o que fez com que à assistente não era possível reentrar na fracção.
Desse circunstancialismo fáctico provado, visto por qualquer homem médio colocado nessa situação concreta, resulta claro que o acto de substituição da fechadura da porta da fracção foi praticado sem consentimento da assistente na qualidade de ser ainda habitante na fracção.
Por outro lado, o facto provado de o arguido pernoitar de vez em quando na mesma fracção após a ruptura da relação conjugal com a assistente não equivale a que o arguido habite na mesma fracção no dia 12 de Maio de 2014 mesmo após a já ruptura da relação conjugal.
Ademais, para qualquer homem médio colocado na situação concreta dos factos, “pernoitar” tem sentido diferente de “habitar”, pelo que a livre convicção do Tribunal recorrido aquando da tomada da sua decisão, a nível do julgamento da matéria de facto, de considerar não provado que o arguido, em 12 de Maio de 2014, jamais habitou na fracção autónoma dos autos, fere as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações. Com efeito, se antes de 12 de Maio de 2014 o arguido e a assistente já deixaram de ter relação como cônjuges, é patentemente desrazoável a decisão do Tribunal recorrido de dar por não provado que o arguido, em 12 de Maio de 2014, jamais habitou na fracção autónoma dos autos.
Portanto, é de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, todo o objecto do processo para novo julgamento, por efectiva verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso da assistente, reenviando todo o objecto do processo para novo julgamento.
Custas do recurso pelo arguido, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 25 de Julho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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