Processo n.º 1000/2018 Data do acórdão: 2019-7-25
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1000/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 750 a 765v do Processo Comum Colectivo n.° CR1-17-0370-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido B, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.o 11.o, n.o 1, alínea 1), da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, em três anos e três meses de prisão.
Inconformado, veio recorrer esse arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) na sua motivação de recurso apresentada a fls. 803 a 807v dos presentes autos correspondentes, que aquela decisão condenatória padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova aludidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do Código de Processo Penal (CPP), para rogar, por força do princípio de in dubio pro reo, a sua absolvição penal, por sobretudo, no seu entender, não se poder dar por provados os factos descritos como provados sob os n.os 10 a 13 no texto do acórdão recorrido.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 859 a 861, no sentido de improcedência manifesta da pretensão do arguido.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 892 a 893v, pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido consta de fls. 750 a 765v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. Sobre a matéria de facto descrita na acusação pública de fls. 470 a 475, o arguido ora recorrente, na sua contestação escrita apresentada a fl. 532, não chegou a alegar outros factos em sua defesa, mas sim pediu ao Tribunal que se fizesse justiça ao caso, com ponderação de todas as provas e circunstâncias a si favoráveis.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido ora recorrente apontou à decisão recorrida, no tocante aos factos aí descritos como dados por provados sobre ele, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, a argumentação concretamente tecida por ele para sustentar a verificação daquele primeiro vício não tem a ver propriamente com o vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim com o referido na alínea c) do n.o 2 desse mesmo artigo, visto que ao fim e ao cabo ele anda a assacar à decisão condenatória a violação do princípio de in dubio pro reo.
A verdadeira insuficiência para a decisão da matéria de facto só se dá quando houver alguma lacuna no apuramento ou investigação, por parte do Tribunal sentenciador, do objecto probando do processo. No caso dos autos, não tendo o recorrente invocado, na contestação então apresentada, outros factos para a sua defesa, todo o objecto probando do processo a ele respeitante já se encontrou delimitado na matéria de facto imputada na acusação pública. E do teor da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, vê-se que o Tribunal a quo já indicou quais os factos provados e referiu materialmente quais os não provados. Daí que nunca pode ter ocorrido o vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Voltando ao cerne do recurso, em torno do suscitado vício de erro notório na apreciação da prova:
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo já teceu no texto do acórdão recorrido a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto (cfr. em especial o teor do 3.o parágrafo da página 21 do aresto recorrido, a fl. 760).
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados e como tal referidos pelo Tribunal recorrido nessa fundamentação probatória do seu acórdão, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito por esse Tribunal nomeadamente na parte respeitante ao ora recorrente, não podendo, pois, ter havido violação, por esse Tribunal, do princípio de in dubio pro reo, sendo de observar que as considerações tecidas naquele parágrafo da fundamentação probatória da decisão de factos já rebateu materialmente a tese sustentada pelo recorrente na sua motivação.
Improcede, pois, o recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com duas UC de taxa de justiça.
Macau, 25 de Julho de 2019.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 1000/2018 Pág. 1/9