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Processo nº 698/2019 Data: 12.09.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “sequestro”.
Crime de “usura para jogo”.
Crime de “gravações e fotografias ilícitas”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Autoria.
Cumplicidade.


SUMÁRIO

1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo.

Inexiste insuficiência da matéria de facto provada para a decisão quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento.

2. São requisitos essenciais para que ocorra “comparticipação criminosa” sob a forma de “co-autoria”, a existência de “decisão” e de “execução conjuntas”.

O “acordo” pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.

No que respeita à “execução”, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando, apenas, que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista.

No fundo, o que importa é que haja uma “actuação concertada” entre os agentes e que um deles fira o bem tutelado.

Por sua vez, é “cúmplice” aquele que tem uma actuação à margem do crime concretamente cometido, quedando-se em actos anteriores ou posteriores à sua efectivação. Na cumplicidade, há um mero auxílio ou facilitação da realização do acto assumido pelo autor e sem o qual o acto ter-se-ia realizado, mas em tempo, lugar ou circunstâncias diversas. Portanto, aqui, o cúmplice, fica fora do acto típico e só deixa de o ser, assumindo então o papel de co-autor, quando participa na execução, ainda que parcial, do projecto criminoso.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 698/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A e B, (1° e 2°) arguidos com os sinais dos autos, responderam em audiência Colectiva no T.J.B., vindo a ser condenados como co-autores materiais da prática em concurso real de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena (individual) de 7 meses de prisão, 1 outro de “sequestro”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena (individual) de 4 anos de prisão, e outro de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. pelo art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena (individual) de 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única (e individual) de 4 anos e 7 meses de prisão, e na pena acessória (individual) de proibição de entrada nas salas de jogo por 2 anos; (cfr., fls. 391 a 403-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados, os arguidos recorreram.

O (1°) arguido A, considerando que excessiva é a pena aplicada; (cfr., fls. 412 a 417).

O (2°) arguido B, afirmando que a decisão recorrida padece do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” quanto ao crime de “gravações e fotografias ilícitas”, devendo ser apenas condenado como “cúmplice” – e não, como “co-autor” – pedindo também a “atenuação especial ou redução da pena”; (cfr., fls. 418 a 433).

*

Respondendo, pugna o Ministério Público que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 440 a 442-v).

*

Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Recorrem A e B do acórdão exarado a fls. 391 e seguintes dos autos, que condenou cada um deles na pena conjunta de 4 anos e 7 meses de prisão, em resultado do cúmulo jurídico das penas parcelares de 7 meses, de 4 anos e de 7 meses, aplicadas respectivamente pelos crimes de usura para jogo, de sequestro e de filmagem ilícita, a que acresceu a condenação na pena acessória de interdição de entrada em salas de jogos por dois anos.
O primeiro recorrente entende que a pena padece de severidade excessiva, o que diz suceder porque, na sua determinação, não terão sido ponderados todos os factores que lhe eram favoráveis.
O segundo recorrente imputa ao acórdão o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a sua condenação pelo crime de filmagem ilícita, o que diz impor a sua absolvição, ou, quando muito, a condenação como cúmplice, e igualmente sustenta a excessividade da pena, entendendo que deveria ter sido considerada a atenuação especial prevista no artigo 66.°, n.° 2, alínea c), do Código Penal, não tendo o tribunal considerado a sua personalidade e as suas condições económicas.
Na sua minuta de resposta, o Ministério Público na primeira instância pronuncia-se pela improcedência dos recursos, rebatendo inteiramente os argumentos dos recorrentes, muito mais não havendo a acrescentar a quanto disse.
Vejamos, começando pelo recurso de A.
Em defesa do abaixamento da pena, este recorrente argumenta que o acórdão não valorou todas as circunstâncias que lhe eram favoráveis. E a propósito destas, fala na situação familiar, com esposa e filho recém-nascido a cargo, alude ao seu estado de saúde não favorável, foca a sua colaboração no esclarecimento dos factos, e invoca as suas condições pessoais…
Visto o acórdão, apura-se que foram valoradas todas as circunstâncias atendíveis, de acordo com aquilo que ficou provado quanto à matéria objecto do processo, e levando também em conta quanto o tribunal oficiosamente conseguiu apurar em termos de antecedentes e de situação sócio-económica e familiar do recorrente. Nomeadamente, ponderou-se a falta de antecedentes criminais, cuja importância se revela, aliás, diminuta, dada a pouca idade do recorrente; ponderou-se a existência de um filho a cargo e a ausência de rendimentos, que foi o declarado pelo recorrente; e foi tido em conta o seu grau de instrução. Quanto à alegação de que não foram tomadas em conta as suas condições pessoais e o seu estado de saúde não favorável, trata-se de asserções genéricas e conclusivas, que, por não terem sido invocadas e concretizadas em devido tempo, não podiam naturalmente ter sido ponderadas. E, por último, no que toca à invocada colaboração no esclarecimento dos factos, há que dizer que a sua importância é evidentemente reduzida, pois, além de se tratar de uma confissão parcial, que ocultou ou adulterou a versão prestada perante o juiz de instrução criminal em acto seguido à detenção, ela segue-se a uma detenção em flagrante delito, com a qual o crime principal ficou praticamente esclarecido. Ademais, impõe-se notar que as penas parcelares foram doseadas no patamar inferior das respectivas molduras abstractas, encontrando-se aliás a do sequestro muito próxima do limite mínimo, sendo que também o cúmulo jurídico se situa dentro dos limites previstos no artigo 71.°, n.° 2, do Código Penal. Ora, sabido que os crimes foram praticados por não residentes, a coberto da sua condição de turistas, e que atingem o círculo de valores ligado à principal actividade económica de Macau, onde são prementes as exigências de prevenção geral positiva, não podem considerar-se excessivas, quer as penas parcelares, quer a pena conjunta.
Improcedem os fundamentos deste recurso.
No que toca ao recurso do arguido B, começa ele por imputar ao acórdão a insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada, no tocante ao crime de filmagem ilícita. Mas se atentarmos no teor dos seus argumentos, verifica-se que, afinal, o que pretende pôr em xeque é a apreciação da prova, insurgindo-se contra a circunstância de haver sido considerado provado o facto 24 da matéria dada como provada. Pois bem, se atentarmos na versão dada pelos próprios recorrentes e a conjugarmos com a versão do ofendido, chegamos incontornavelmente à conclusão de que o ora recorrente B tomou parte directa e consciente na execução do ilícito de filmagem ilícita, sendo portanto co-autor, à luz do artigo 25.° do Código Penal. Não há, por isso, insuficiência da matéria de facto, nem há erro, muito menos o notório, na apreciação da prova.
Além disso, este recorrente entende que devia ter beneficiado de uma atenuação especial da pena, nos termos do artigo 66.°, n.° 2, alínea c), do Código Penal, por ter demonstrado sincero arrependimento. Não podemos concordar. Desde logo porque a confissão não constitui, por si só, uma evidência de arrependimento sincero, sobretudo quando é parcial, como sucede no caso. Depois porque, mesmo na hipótese de haver actos demonstrativos de arrependimento, daí não resulta uma automática atenuação especial. Como a jurisprudência vem entendendo, e o Tribunal de Última Instância relembrou, v.g. no seu acórdão de 30 de Maio de 2018, Processo 34/2018, para atenuação especial da pena, o importante é demonstrar-se a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, interessando para tal apurar se existem no caso concreto circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, conforme o comando do artigo 66.°, n.° 1, do Código Penal. Ora, no caso em análise, essa necessária diminuição, reportada à ilicitude, à culpa ou à necessidade da pena não ficou demonstrada, pelo que não se impunha a agora reclamada atenuação especial.
E, por fim, acha o recorrente que a pena se apresenta excessiva, já que o acórdão não teria considerado a sua personalidade e a sua condição económica. Também aqui não lhe assiste razão. Constata-se que foram valoradas todas as circunstâncias atendíveis, de acordo com aquilo que ficou provado relativamente à matéria objecto do processo e ao que ela representa quanto à personalidade do recorrente, e de harmonia com o que foi possível apurar quanto a antecedentes criminais e situação sócio-económica e familiar do recorrente. É, pois, insubsistente a crítica de que não foi ponderada a personalidade do recorrente e a sua condição económica. De resto, e como já se frisou supra, a propósito do recurso do arguido A, as penas parcelares situam-se no patamar inferior das respectivas molduras abstractas, encontrando-se a do sequestro muito próxima do limite mínimo, e também o cúmulo jurídico se situa dentro dos limites previstos no artigo 71.°, n.° 2, do Código Penal. Sabido que os crimes foram praticados por não residentes, a coberto da sua condição de turistas, e que atingem o círculo de valores ligado à principal actividade económica de Macau, onde são prementes as exigências de prevenção geral positiva, não podem considerar-se excessivas, quer as penas parcelares, quer a pena conjunta.
Improcedem igualmente os fundamentos deste recurso.
Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido de ser negado provimento aos recursos”; (cfr., fls. 548 a 550-v).

*

Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 394 a 396-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem os (1° e 2°) arguidos A e B recorrer do Acórdão que os condenou como co-autores materiais da prática em concurso real de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena (individual) de 7 meses de prisão, 1 outro de “sequestro”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena (individual) de 4 anos de prisão, e outro de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. pelo art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena (individual) de 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única (e individual) de 4 anos e 7 meses de prisão, e na pena acessória (individual) de proibição de entrada nas salas de jogo por 2 anos.

Entende o (1°) arguido A que excessiva é a pena aplicada.

O (2°) arguido B, é de opinião que a decisão recorrida padece do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” quanto ao crime de “gravações e fotografias ilícitas”, devendo ser apenas condenado como “cúmplice” – e não, como “co-autor” – pedindo também a “atenuação especial ou redução da pena”.

–– Sendo de se começar pela “decisão da matéria de facto”, vejamos do “recurso do (2°) arguido B” que lhe imputa o vício de “insuficiência”.

Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.06.2018, Proc. n.° 451/2018, de 06.09.2018, Proc. n.° 677/2018 e de 10.01.2019, Proc. n.° 859/2018, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).

Como decidiu o T.R. de Coimbra:

“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).

E, como igualmente também considerou o T.R. de Évora:

“A insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso”; (cfr., o Ac. de 26.09.2017, Proc. n.° 447/13).

“Só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

“O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na falta de elementos fácticos que permitam a integração na previsão típica criminal, seja por falência de matéria integrante do seu tipo objectivo ou do subjectivo ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, considerada no caso. Em termos sintéticos, este vício ocorre quando, com a matéria de facto dada como assente na sentença, aquela condenação não poderia ter lugar ou, então, não poderia ter lugar naqueles termos”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 647/14).

Aliás, como no recente Ac. da Rel. de Coimbra de 12.09.2018, Proc. n.° 28/16, se decidiu, inexiste insuficiência da matéria de facto provada para a decisão “quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento”, sendo, como se verá, este o caso dos autos.

No caso dos autos, o Colectivo a quo investigou e emitiu pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, elencando a que do julgamento resultou “provada”, explicitando, (quanto a nós), adequadamente, as razões desta sua decisão; (cfr., fls. 394 a 399-v).

E, nesta conformidade, evidente é que não incorreu o Tribunal recorrido no acusado vício de “insuficiência”, notando-se, também, que como adiante se irá expor, é a “factualidade provada” perfeitamente apta para uma segura aplicação do direito, (mais não se mostrando de aqui consignar sobre a questão, porque ocioso).

Continuemos.

–– Pretende também o arguido que a sua conduta seja considerada como a prática do crime do art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., como (mero) “cúmplice”, e não como “co-autor”, como decidido foi.

Pois bem, nos termos do art. 25° do C.P.M.:

“É punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Por sua vez, preceitua o art. 26° do mesmo código que:

“1. É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.
2. É aplicável ao cúmplice a pena prevista para o autor, especialmente atenuada”.

E tratando de idêntica questão teve já este T.S.I. oportunidade de consignar, (nomeadamente, no Ac. de 28.04.2011, Proc. n.° 415/2010, de 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015 e de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017, do ora relator), que são requisitos essenciais para que ocorra “comparticipação criminosa” sob a forma de “co-autoria”, a existência de “decisão” e de “execução conjuntas”.
O “acordo” pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.
No que respeita à “execução”, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando, apenas, que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista.
No fundo, o que importa é que haja uma “actuação concertada” entre os agentes e que um deles fira o bem tutelado; (cfr., também os Acs. deste T.S.I. de 23.01.2014, Proc. n.° 816/2013, de 24.07.2014, Proc. n.° 428/2014, e a Decisão Sumária de 06.09.2018, Proc. n.° 718/2018 e de 23.04.2019, Proc. n.° 359/2019).

Por sua vez, é “cúmplice” aquele que tem uma actuação à margem do crime concretamente cometido, quedando-se em actos anteriores ou posteriores à sua efectivação. Na cumplicidade, há um mero auxílio ou facilitação da realização do acto assumido pelo autor e sem o qual o acto ter-se-ia realizado, mas em tempo, lugar ou circunstâncias diversas. Portanto, aqui, o cúmplice, fica fora do acto típico e só deixa de o ser, assumindo então o papel de co-autor, quando participa na execução, ainda que parcial, do projecto criminoso.

Ora, da factualidade provada, resulta à saciedade que a “intervenção” do ora recorrente não se limita a aspectos (meramente) “acessórios”, “laterais”, ou quiçá, “menos relevantes”, bastando, para tal, atentar-se no que consta nos pontos da “matéria de facto provada” assinalados com os n°s 12° a 14°, sendo do notar que perante o decidido e exposto a título de fundamentação, evidente se nos apresenta que nenhuma censura merece o assim decidido.

E, perante esta facticidade, (que não padece de nenhum vício), evidente é que o seu “envolvimento” preenche todos os requisitos legais para, no ponto em questão, ser qualificado como a prática do dito crime na qualidade de “co-autor”.

–– Por fim, quanto ao “excesso de pena”.

Pois bem, ao crime de “usura para jogo”, cabe a pena de prisão até 3 anos, (cfr., art. 219°, n.° 1 do C.P.M.), e o crime de “sequestro” pelos arguidos cometido é punido com pena de 3 a 12 anos de prisão; (cfr., art. 152°, n.° 2 do C.P.M.).

Ao crime de “gravações e fotografias ilícitas”, (cfr., art. 191° do mesmo Código), a de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

Nos termos do art. 64° do C.P.M.:

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Ponderando nas condutas provadas dos ora arguidos, e nas fortes necessidades de prevenção, claro se nos apresenta que inviável é uma “pena de multa” pelo dito crime de “gravações e fotografias ilícitas”, claro se nos afigurando também que nenhuma censura merecem as penas parcelares e únicas fixadas.

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Antes de mais, importa considerar que, como temos repetidamente entendido:

“Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 21.02.2019, Proc. n.° 5/2019, de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019 e de 30.05.2019, Proc. n.° 453/2019).

Prescreve também o art. 66° do C.P.M.:

“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.

Tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

Como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 10.01.2019, Proc. n.° 1032/2018, de 21.02.2019, Proc. n.° 6/2019 e de 20.06.2019, Proc. n.° 499/2019).

Atenta a factualidade dada como provada, constata-se que a “imagem global do facto” não se apresenta de forma a “diminuir, de forma acentuada, a ilicitude do facto, da culpa dos arguidos ou da necessidade da pena”, não se vislumbrando – como se referiu – nenhum motivo para qualquer “atenuação especial”, não se vislumbrando como considerar a situação dos autos “especial”, “extraordinária” ou “excepcional” para se accionar o art. 66° do C.P.M..

E, dito isto, e atentas as molduras penais aplicáveis e as necessidades de prevenção criminal, nomeadamente, geral – vejam-se os diários locais do passado dia 04.09.2019, que citando um balanço pelas autoridades policiais apresentado, se afirma que “há uma média de quase um sequestro por dia…” – claro se nos apresenta que improcedente é a peticionada “redução” das penas que aos ora recorrentes foram aplicadas, pois que na sua fixação, respeitou, integralmente, o Tribunal a quo, todos os comandos legais que regulam esta matéria, a saber, os art°s 40°, 64° e 65° do C.P.M..

Por sua vez, é também sabido que com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais legalmente atendíveis; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014 e de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015).

Como decidiu o Tribunal da Relação de Évora:

“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 17.01.2019, Proc. n.° 1138/2018, de 28.03.2019, Proc. n.° 133/2019 e de 09.05.2019, Proc. n.° 403/2019).

No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).

E, como se tem igualmente decidido:

“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).

“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).

Nesta conformidade, à vista está a solução quanto à questão da(s) “medida(s) da(s) pena(s)” parcelares.

–– Quanto à “pena única” resultado do “cúmulo jurídico”, há que atentar no estatuído no art. 71° do C.P.M., que dispõe que:

“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”; (sub. nosso).

Abordando idêntica questão à ora em apreciação, e tendo em consideração o teor do n.° 1 do transcrito art. 71°, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 1160/2018 e de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019).

Atento ao que até aqui se deixou exposto, (e que é de manter), e certo sendo que, in casu, em causa está uma moldura penal com um “limite mínimo de 4 anos” e um “limite máximo de 5 anos e 2 meses de prisão”, nenhuma censura nos merece também a pena individual e única de 4 anos e 7 meses de prisão que aos ora recorrentes foi fixada que, em face da forte necessidade de prevenção criminal que, no caso, se impõe, de forma alguma pode ser considerada inflaccionada.

Tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos.

Pagará o (1°) arguido A a taxa de justiça de 4 UCs, e o (2°) arguido B a de 6 UCs.

Honorários aos Exmos. Defensores no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 12 de Setembro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 698/2019 Pág. 30

Proc. 698/2019 Pág. 31