Processo n.º 36/2019
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
Data da conferência: 19 de Julho de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Assuntos: - Interdição de entrada na RAEM
- Fortes indícios
- Sentença absolutória penal
SUMÁRIO
1. Nos termos do art.º 12.º n.º 2, al. 1) da Lei n.º 6/2004, conjugado com o art.º 4.º n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003, pode ser decretada a interdição de entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes.
2. A absolvição do arguido no processo penal, ao abrigo do princípio in dúbio pro reo por insuficiência das provas para demonstrar, sem margem para dúvidas, e com certeza, que ele cometeu os crimes imputados, não implica necessariamente a inexistência de “fortes indícios” da sua intervenção nesses crimes, pressuposto da aplicação da medida de interdição de entrada.
3. A situação bem diferente é que o Tribunal deu como provado que o recorrente não praticou os factos criminosos.
4. Nos casos em que a absolvição do arguido se tiver fundado na falta de prova e no princípio in dúbio pro reo, não constitui a sentença absolutória a presunção prevista no art.º 579.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, de 12 de Janeiro de 2017, que indeferiu o seu recurso hierárquico interposto do despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que lhe tinha aplicado a medida de interdição de entrada na RAEM, por um período de 5 anos.
Por Acórdão proferido em 22 de Novembro de 2018, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo o acto impugnado.
Inconformado com a decisão, recorre A para o Tribunal de Última Instância, apresentando em síntese as seguintes conclusões:
- O Tribunal a quo somente citou o parecer do MP, apenas na parte afirmativa no sentido de que o acto administrativo “se deva ter por suficientemente fundamentado à luz do artigo 115.º do Código do Procedimento Administrativo. Pedir mais é extravasar as exigências preconizadas para os respectivos requisitos pelo já referido artigo 115.º ” para formular a conclusão, sem que tenha esclarecido suficiente e detalhadamente com que base factual e legal é que chegou a essa conclusão.
- Nos termos do art.º 1.º CPAC e com aplicação subsidiária do art.º 517.º (sic.), n.º 1, al. b) do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nestes termos o acórdão do Tribunal a quo padece do vício de nulidade.
- Após audiência de julgamento, o Tribunal Judicial de Base proferiu acórdão no dia 06/09/2018, que julgou improcedentes os dois crimes imputados ao recorrente pelo Ministério Público - 1 crime de associação criminosa p.p. pelo art.º 288.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal e 1 crime de burla informática p.p. pelo art.º 11.º, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 11/2009 – e decretou imediatamente a sua absolvição.
- Tal acórdão penal transitado em julgado no dia 26/09/2018.
- Constata-se no referido acórdão que, no decurso da audiência, tanto as provas testemunhais como documentais, em conjugação com as demais provas constantes nos autos, não conseguiram provar que o recorrente praticou os crimes imputados.
- Ao recorrente foi aplicada pela entidade recorrida a medida administrativa de proibição de entrada, por ter havido “fortes indícios” da prática, por si em co-autoria com outros, de 1 crime de burla informática.
- Mas a absolvição do recorrente decretada pelo referido acórdão transmite-nos claramente que os prossupostos de facto do objecto de recurso – “Fortes Indícios” da prática, por si em co-autoria com outros, de 1 crime de burla informática – já não subsistem.
- Tal como relata no acórdão do Tribunal a quo: 「o que significa que o quadro fáctico com base no qual foi tomada a respectiva decisão, objecto deste recurso, sofreu “alterações”.」
- Além disso, o recorrente entende que os pressupostos factuais que serviram de base do objecto de recurso foram julgados não provados pelo TJB.
- Salvo o devido respeito pela decisão do Tribunal a quo, o recorrente tem o seguinte entendimento diferente:
- Desde logo, o acórdão penal foi claro e nítido em dizer que os crimes acusados ao recorrente não foram provados (os crimes imputados ao recorrente na acusação não foram provados), além disso, os pressupostos factuais baseados foram apenas ter havido “fortes indícios” da prática criminosa, após audiência de julgamento, o facto criminoso foi dado como “não provado”.
- Obviamente que em termos de valor das provas, o efeito legal de “não ter provado” foi mais forte do que “fortes indícios”.
- A entidade recorrida aquando tomou decisão, os pressupostos factuais basearam-se nas provas constantes no processo penal, haver fortes indícios que o recorrente (em comparticipação com os outros) participou no facto criminoso.
- Todavia tais provas constantes no processo penal foram dadas como “não provadas” no julgamento.
- De resto, nos termos do art.º 1.º do CPAC em conjugação com o art.º 579.º, n.º 1 do CPC: “1. A decisão penal, transitada em julgado, que tenha absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.”
- Por outras palavras, o acórdão penal absolutório, transitado em julgado, conjugando o CPCA com o CPC, em termos legais presume-se inexistência dos factos, isto é, a existência de “fortes indícios” de o recorrente ter participado o crime de burla informática por transito em julgado do acórdão absolutório presume-se a inexistência dos factos.
- Em termos legais, o efeito da “inexistência” significa nunca ter acontecido, não produz qualquer efeito.
- O Tribunal recorrido devia considerar o acórdão penal apresentado pelo recorrente, julgar de novo os pressupostos factuais do objecto do recurso – as provas que constituíram “fortes indícios” de que o recorrente em co-autoria com os outros praticou 1 crime de burla informática são incompatíveis com as provas produzidas que conduziram à absolvição do recorrente.
- Mas o Tribunal a quo depois de apreciar as provas, manteve o reconhecimento de que o recorrente foi absolvido por falta de provas, a presunção da inexistência do crime não significa que o recorrente não participou absolutamente nos factos envolvidos, por isso entendeu que os pressupostos factuais mantêm-se procedentes.
- Por outras palavras, o Tribunal recorrido depois da apreciação das provas supracitadas entendeu que o recorrente (em comparticipação com os outros) participou no crime de burla informática é nitidamente incompatível e contraditório com o não provado no acórdão penal absolutório (transitado em julgado o acórdão penal absolutório constitui presunção da inexistência dos factos), isto revela que o Tribunal a quo cometeu erro notório na apreciação das respectivas provas.
- Com base nisto, o Tribunal a quo aquando valorizou as provas por ter violado o preceito legal de acórdão absolutório penal constitui presunção da inexistência dos factos, fez com que o acórdão padecesse do vício de erro notório na apreciação das provas.
- O acórdão recorrido indica que “o recorrente não conseguiu encontrar quaisquer provas para eliminar a sua relação com os factos”. Este é um facto conclusivo.
- Nos termos do art.º 579.º, n.º 1 do CPC, a presunção legal da inexistência dos factos pode ser ilidida através de contraprova absoluta.
- Por outras palavras, pode ser ilidida através de novas provas para comprovar que o recorrente participou (em comparticipação com os outros) no crime de burla informática.
- Nos termos do art.º 339.º do CC: “Salvo o disposto no artigo seguinte, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”
- Com base no exposto, conforme a disposição legal supracitada, a contraprova devia ser apresentada pela entidade recorrida supracitada, e não o recorrente a apresentar contraprova dos factos (isto é, o recorrente em comparticipação com os outros participou no crime de burla informática).
- O recorrente (em comparticipação com os outros) participou no crime de burla informática, que é um facto desfavorável a si próprio, portanto não se pode exigir que ele impute o crime a si mesmo.
- O acórdão absolutório penal constitui presunção da inexistência legal dos factos, nestes termos o recorrente não tem necessidade de apresentar evidências para provar que não participou nos factos, pelo que o Tribunal cometeu erro notório na apreciação da prova.
- Com base no exposto, o acórdão recorrido violou a disposição legal de a parte contrária dever apresentar contraprova, pelo que padece do vício de erro notório na apreciação da prova e deve ser revogado.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que não merece censura o acórdão recorrido, que deve ser mantido, negando-se provimento ao recurso jurisdicional.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.
2. Factos
Nos autos foram considerados assentes os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
- O despacho administrativo impugnado tem o seguinte teor:
DESPACHO
Assunto: Recurso hierárquico necessário
Interessado: A
O interessado interpôs recurso hierárquico necessário face à decisão do Exmº Comandante do CPSP com a qual se interditou a sua entrada em Macau pelo período de 5 anos.
Ponderada a análise feita pelo Exmº Comandante do CPSP em 06/12/2016 e o ofício n.º XXXXX/S/2016 emitido pela PJ, dado a existência de fortes indícios (designadamente, foi encontrado no local máquina de leitura de cartões alterada, bem como, a confissão de vários empregados que a actividade principal da companhia era ajudar os clientes sacar dinheiro através da máquina de leitura de cartões) onde indicam que o interessado em comparticipação com os outros praticou o crime de burla informática, constituindo perigo para a segurança e a ordem pública, pelo que decide, nos termos do art.º 161.º, n.º 1 do CPP, manter a decisão inicial de proibição de entrada.
Exmº Sr. Secretário para a Segurança
Wong Sio Chak
12/01/2017
- O Recorrente apresentou em 09/10/2018 aos autos uma cópia do acórdão penal proferido no Processo n.º CR3-17-0120-PCC pelo qual os arguidos foram absolvidos de todos os crimes que vinham acusados por não provados os factos essenciais (fls. 74 a 91), fazendo apelo ao princípio de in dubio pro reo.
- Segundo a informação colhida pelo funcionário deste TSI junta do TJB, constante da cota de fls. 111, tal acórdão transitou em julgado em 26/09/2018.
3. Direito
Cumpre apreciar as seguintes questões suscitadas pelo recorrente:
- Nulidade do acórdão recorrido; e
- Erros de julgamento decorrentes da violação dos art.ºs 579.º n.º 1 do CPC e 339.º do CC.
3.1. Na tese do recorrente, o acórdão recorrido não esclareceu suficiente e detalhadamente com que base factual e legal é que chegou à conclusão de que o ato administrativo impugnado se encontra suficientemente fundamentado à luz do art.º 115.º do CPA, pelo que padece do vício de nulidade nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC.
Ao abrigo de tal norma, é nula a sentença “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Ora, basta uma leitura simples do acórdão recorrido para concluir pela sem razão do recorrente.
Constata-se no acórdão que, para além de dizer que, ao manter o despacho hierarquicamente recorrido, da autoria do comandante do CPSP, e ao remeter para o parecer que procedeu e para a informação veiculada pelo ofício da Polícia Judiciária, o acto administrativo impugnado “incorporou os fundamentos constantes daqueles despacho e parecer e ofício”, o Tribunal recorrido citou ainda o parecer emitido pelo Ministério Público, que depois de uma exposição sucinta da situação concreta do caso, feita com base nos elementos constantes no parecer e na informação policiais e respeitante à existência de “fortes indícios” da prática pelo recorrente do crime de burla informática, cujas circunstâncias permitem prefigurar a entrada do recorrente em Macau como uma ameaça à ordem e segurança pública, o que levou a Autoridade a plicar a medida de interdição de entrada por 5 anos, conclui não ser razoável imputar ao acto administrativo o vício de forma arguido pelo recorrente, sendo evidente que um destinatário médio, em face do conteúdo do acto, fica a saber as razões de facto e de direito que levaram à aplicação da medida de interdição de entrada.
Com a transcrição do parecer do Ministério Público, o acórdão recorrido faz a sua fundamentação por remissão para o parecer do Ministério Público. Não se vê obstáculo para tal.
Não é verdade que o Tribunal recorrido citou o parecer do MP apenas na parte conclusiva que afirma que o acto administrativo “se deva ter por suficientemente fundamentado à luz do artigo 115.º do Código do Procedimento Administrativo. Pedir mais é extravasar as exigências preconizadas para os respectivos requisitos pelo já referido artigo 115.º ”.
Ora, apesar de ser uma fundamentação sucinta e por remissão para o parecer do Ministério Público, certo é que se dá para perceber os motivos que determinaram a aplicação da medida em causa, pelo que entendemos não verificada a nulidade do acórdão invocada pelo recorrente.
Improcede o recurso, nesta parte.
3.2. Alega ainda o recorrente erros de julgamento decorrentes da violação dos art.ºs 579.º n.º 1 do CPC e 339.º do CC.
É verdade que, após o julgamento realizado no TJB, o recorrente foi absolvido dos crimes que vinha acusado pelo Ministério Público. A respectiva sentença já transitou em julgado em 26 de Setembro de 2018, depois da prática do acto administrativo impugnado.
Será que os pressupostos de facto, que determinaram a interdição de entrada, deixaram de existir por causa da sentença absolutória? A nossa resposta é negativa.
Nos termos do art.º 12.º n.ºs 2, al. 1), 3 e 4 da Lei n.º 6/2004, conjugado com o art.º 4.º n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003, pode ser decretada a interdição de entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de “existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes”; a interdição de entrada por tal motivo deve fundar-se na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM e o período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam.
No caso vertente, decorre dos autos que a interdição de entrada do ora recorrente por um período de 5 anos foi determinada porque houve fortes indícios de que o recorrente praticou, em comparticipação com outros, o crime de burla informática, pondo em perigo a segurança e a ordem públicas.
E constata-se no acórdão absolutório que o Tribunal Colectivo do TJB decidiu absolver o ora recorrente (bem como os outros arguidos), uma vez que considerou não provados os factos essenciais da acusação por insuficiência das provas produzidas, fazendo apelo ao princípio in dubio pro reo.
Por outas palavras, e tal como afirma o acórdão recorrido, não é de todo em todo o recorrente não teve envolvimento nos factos criminosos, havendo dúvidas, que conduziram à sua absolvição por força do princípio in dubio pro reo.
A absolvição do recorrente no processo penal não implica necessariamente a inexistência de “fortes indícios” da sua intervenção nos crimes imputados, o que falta são provas suficientes para demonstrar, sem margem para dúvidas, e com certeza, que o recorrente cometeu os crimes.
Repare-se que o Tribunal não deu como provado que o recorrente não praticou os factos, o que é bem diferente.
Salientando, bastam “fortes indícios” da prática de quaisquer crimes para que a Administração possa decretar legalmente a interdição de entrada na RAEM.
É de concluir pela subsistência de pressupostos de facto (e de direito) que determinaram a aplicação ao recorrente da medida em causa.
Quanto à invocada violação dos art.ºs 579.º n.º 1 do CPC e 339.º do CC, também não parece assistir razão ao recorrente.
Nos termos do n.º 1 do art.º 579.º do CPC, “a decisão penal, transitada em julgado, que tenha absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidíveis mediante prova em contrário”.
Tal norma refere-se à decisão penal que tenha absolvido o arguido “com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados”, o que é manifestamente diferente da situação do recorrente.
Decorre claramente dessa norma que nem todas as decisões penais absolutórias constituem presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido.
Nos casos em que a absolvição do arguido se tiver fundado na falta de prova e no princípio in dúbio pro reo, não constitui a sentença absolutória a presunção em causa.
Daí a não aplicação dessa norma, e do art.º339.º do CC, ao caso concreto dos presentes autos.
É de julgar improcedente o recurso jurisdicional.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrido, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UC.
Macau, 19 de Julho de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1
Processo n.º 36/2019