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Reclamação nº 6/2019/R


A Limited, B Limited, C Limited, D Limited, E Limited e F Limited, Autores no autos da Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual nº 358/19-RA, que correm os seus termos no Tribunal Administrativo, notificados e inconformados com o despacho que concedeu ao Ministério Público prorrogação do prazo para apresentar contestação, vieram interpor recurso jurisdicional para o Tribunal de Segunda Instância.

Por despacho do Exmº Juiz recorrido, o recurso não foi admitido com fundamento na irrecorribilidade.

Notificados do despacho da não admissão do recurso, vieram nos termos do disposto no artº 595º e s.s do CPC, formular a presente reclamação com os seguintes fundamentos:

I - ENQUADRAMENTO
1. Em 17 de Janeiro de 2019 as Reclamantes instauraram no Tribunal Administrativo contra a Região Administrativa Especial de Macau ("RAEM") uma acção de responsabilidade civil extracontratual da administração pública por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.
2. Em 25 de Fevereiro de 2019, o Ministério Público em representação da Ré - RAEM - pediu que, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 403.° do Código de Processo Civil (doravante "CPC") fosse concedida prorrogação do prazo para apresentar a contestação.
3. Para o efeito, o Ministério Público alegou: “鑒於未能取得所需之重要資料” ("não conseguir obter as informações necessárias" - tradução livre da língua chinesa para a língua portuguesa).
4. Em 25 de Fevereiro de 2019, o Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo proferiu um despacho de deferimento daquele pedido de prorrogação do prazo por 30 dias, nos termos do n.º 4 do artigo 403.º do CPC, aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 99.° do Código de Processo Administrativo Contencioso ("CPAC").
5. Em 4 de Março de 2019, as Reclamantes interpuseram junto do Tribunal Administrativo um recurso ordinário do despacho de deferimento do pedido de prorrogação apresentado pela Ré, argumentando em síntese que, não obstante o disposto no n.º 6 do artigo 403.º do CPC, do ponto de vista formal aquela decisão era susceptível de recurso.
6. Em 8 de Março de 2019, o Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo proferiu um despacho de não admissão do recurso ordinário onde se lê: "Considero que é aparentemente fundamentado o pedido de prorrogação do prazo para a contestação nos termos do art.º 403.º, n.º 4 do CPC, e que não se verificaram as outras situações ligadas aos aspectos formais da decisão que possam viabilizar o recurso.
Assim sendo, não se admite o recurso pela manifesta inadmissibilidade, nos termos do art.º 403.º, n.º 6 do CPC ex vi do art.º 99.º, n.º 1 do CPAC.
Custas do incidente pelas autoras." (sublinhado nosso)

II. DOS FUNDAMENTOS QUE JUSTIFICAM A ADMISSÃO E SUBIDA IMEDIATA DO RECURSO
1. Feito este intróito importa agora esclarecer a razão pela qual, entendem as Reclamantes que o despacho ora em crise, leia-se o despacho proferido a fls 1365 dos autos, incorreu numa errada interpretação do direito aplicável, máxime do comando jurídico contido no n.º 6 do artigo 403.° do CPC.
2. O preceito a que se fez alusão, e com base no qual foi rejeitado o recurso sobre o despacho de deferimento de prorrogação do prazo de contestação da Ré, carece de uma leitura e interpretação suficientemente cuidadas para permitir descortinar a sua verdadeira ratio legis.
3. Nestes termos, convém recordar que longe vão os tempos em que da articulação dos n.ºs 4 e 5 do artigo 403.° do CPC se retirava a conclusão de que o uso da expressão "ao Ministério Público é concedida prorrogação" (no caso do n.º 4) reflectia o exercício de um poder vinculado por parte do juiz, ao passo que o uso da expressão “pode (...) prorrogar” (no caso do n.º 5) espelhava já o exercício pelo julgador de um verdadeiro poder discricionário.
4. A configuração daquelas normas que surgiu com a aprovação do Código de Processo Civil português de 1939, foi envolta pelo papel exacerbado que, na época, era atribuído ao Ministério Público e apenas se mantém, conforme ensina LEBRE DE FREITAS por “inércia do legislador”.
5. É que conforme ensina o mesmo Professor, à luz do princípio da igualdade de armas no direito processual civil português, plasmado, entre nós, no artigo 4.° do CPC, nem sequer faria sentido que a uma parte representada pelo Ministério Público fosse concedido o injustificado privilégio processual de ver o seu prazo para contestar sistematicamente prorrogado em virtude de uma leitura nos termos da qual o juiz estaria vinculado a decidir nesse sentido.
6. Nestes termos, é hoje genericamente pacífico na doutrina o entendimento nos termos do qual independentemente do sujeito que dirige o pedido de prorrogação, cumpre ao juiz no exercício da sua discricionariedade, apreciar e cuidar pela presença de todos os requisitos legais.
7. É portanto, nesta sede, que a leitura do n.º 6 do artigo 403.° do CPC ganha maior acuidade.
8. Não se desconhece que ali está vertido o princípio geral de inimpugnabilidade dos despachos proferidos no exercício legal de um poder discricionário (consagrado, entre nós, no artigo 584.° do CPC).
9. Conforme ensinava ALBERTO DOS REIS no seu comentário ao Código de Processo Civil português de 1939 (nesta matéria semelhante ao CPC de Macau) a irrecorribilidade decorria do facto de se tratarem de "despachos banais, que não põem em causa interesses das partes, dignos de protecção, ou se trata de despachos que exprimem o exercício do livre poder jurisdicional”.
10. No entanto, o recurso deverá sempre ser admissível quando se pretenda impugnar a ilegalidade do uso de poderes discricionários, designadamente quando esta sobrevenha pela não verificação dos pressupostos previstos na lei.
11. Crêem as Reclamantes ser aqui que reside o busílis da questão, isto é, entendem que o douto tribunal, salvo o devido respeito, não cuidou suficientemente de um dos requisitos que se impunha ao Ministério Público, na qualidade de representante da Ré, observar para obter a almejada prorrogação do prazo para apresentar a contestação - a fundamentação.
12. Ora, é absolutamente manifesto que a simples citação de uma parcela do n.º 4 do artigo 403.° do CPC, rectius “鑒於未能取得所需之重要資料” jamais pode configurar o preenchimento do ónus de fundamentação.
13. É evidente que o legislador ao exigir expressamente na 2.a parte da norma acima referida que "o pedido deve ser fundamentado" não quis, de maneira nenhuma, que tal se bastasse com a mera citação da 1.ª parte daquela mesma norma.
14. Fundamentar implica integrar os conceitos e expor as razões pelas quais deve aquela norma atribuir aquele direito àquele sujeito.
15. ln casu, impunha-se ao Ministério Público, na qualidade de representante da Ré, e de forma a preencher aquele requisito legal do qual, como se disse, depende a prorrogação do prazo para apresentar a contestação, demonstrar quais as informações de que concretamente precisava, de quem esperava que as mesmas fossem fornecidas e quando as solicitou.
16. Na esteira do que se vem dizendo recorde-se o que diz o Professor LEBRE DE FREITAS na sua anotação ao n.º 4 do artigo 486.° do Código de Processo Civil Português de 1961 (em tudo semelhante ao n.º 4 do artigo 403.° do CPC de Macau): "o pedido de prorrogação do Ministério Público há-de ser fundamentado, o que significa que o juiz terá de apreciar a fundamentação concretamente aduzida (a integrar uma das duas situações previstas: informação que não possa ser obtida dentro do prazo, provenha ela dum serviço público ou seja colhida junto de particulares; resposta a consulta a instância superior, feita dentro da hierarquia do Ministério Público ou ao Ministro da Justiça, que não chegue dentro desse prazo) e, em face dela, decidir no prazo de 24 horas, sendo a decisão imediatamente notificada ao Ministério Público; não há, em princípio, possibilidade de recurso."
17. Como se vê, em caso algum, bastaria uma mera "aparência de fundamentação" conforme expressamente invocou o Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo no despacho em crise.
18. Pelo exposto, e com o devido e necessário respeito, a decisão do Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo em não admitir o recurso em apreço é ilegal pelo que não pode ser aceite pelas Reclamantes, devendo revogar-se aquela decisão e admitir o recurso seguindo-se os ulteriores termos.
  Termos em que,
  Requer que seja admitida a presente reclamação para o Venerando Juiz Presidente do Tribunal de Segunda Instância, relativamente ao douto despacho proferido pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo a 8 de Março de 2019, nos termos do qual não admitiu o recurso interposto pelas Reclamantes a 4 de Março de 2019, e consequentemente seja admitido o mesmo recurso para esse Venerando Tribunal de Segunda Instância, pelos fundamentos constantes da presente reclamação, para o que requer o douto suprimento de V. Exa. e seguindo-se os demais termos legais até final.


Devidamente autuada e tramitada, a presente reclamação foi feita subir a esta instância.

Passemos pois a apreciar a reclamação.

A única questão que nos importar resolver prende-se com a recorribilidade do despacho recorrido.

Vejamos.

Ora, como se sabe, o recurso ordinário, tal como sucede com os outros meios de impugnação, justifica-se pela falibilidade humana, realidade que não podemos negar.

Mais concretamente falando, é a possibilidade de ser errada ou injusta uma decisão judicial, por esta ser justamente produzida pela cabeça humana.

Face a esta realidade inegável, em regra, há que colocar à disposição dos interessados que se sintam prejudicados por uma decisão judicial instrumentos processuais tendo em vista a modificação ou até a eliminação da decisão errada ou injusta por forma a acautelar judicialmente os seus interesses, quer processuais quer substanciais.

Eis a razão de ser dos meios de impugnação consagrados na generalidade das leis processuais, nomeadamente o recurso ordinário.

Todavia, tal como sucede com a maioria , senão todos os princípios fundamentais, o princípio do duplo grau de jurisdição admite excepções, justificadas por razões atendíveis.

Se é certo que o recurso ordinário oferece em regra uma garantia reforçada do novo exame da questão por ser apreciado e decidido por um tribunal hierarquicamente superior, não é menos verdade que este meio de impugnação com efeito sempre devolutivo até suspensivo é susceptível de causar abrandamento na tramitação processual, até nas piores hipóteses, ser instrumentalizado pelos litigantes para, em vez de procurarem corrigir erros e repor a justiça, mas exclusivamente fazerem retardar a justiça.

Portanto, num lado da balança, temos o valor de justiça material reforçada, e noutro o da justiça célere.

Como se sabe, na matéria das acções regidas no CPAC, a lei manda seguir os termos do processo civil comum de declaração, na sua forma ordinária, com as especialidades constantes do artº 99º/2 a 4 do CPAC.

No caso em apreço, está em causa o despacho que, a pedido do Ministério Público, lhe concedeu a prorrogação do prazo para a apresentação da contestação.

Não se tratando da matéria abrangida no disposto no artº 99º/2 a 4 do CPAC, é de aplicar o artº 403º do CPC.

Reza o artº 403º do CPC que:

(Prazo para a contestação)

1. O réu pode contestar no prazo de 30 dias a contar da citação, começando o prazo a correr desde o termo da dilação, quando a esta haja lugar.

2. Quando termine em dias diferentes o prazo para a defesa por parte dos vários réus, a contestação de todos ou de cada um deles pode ser oferecida até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.

3. Se o autor desistir da instância ou do pedido relativamente a algum dos réus não citados, são os réus que ainda não contestaram notificados da desistência, contando-se a partir da data da notificação o prazo para a sua contestação.

4. Ao Ministério Público é concedida prorrogação do prazo, quando careça de informações que não possa obter dentro dele ou tenha de aguardar resposta a consulta feita a instância superior; o pedido deve ser fundamentado e a prorrogação não pode, em caso algum, ir além de 30 dias.

5. Quando o tribunal considere que ocorre motivo ponderoso que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário judicial a organização da defesa, pode, a requerimento deste e sem prévia audição da parte contrária, prorrogar o prazo da contestação, até ao limite máximo de 30 dias.

6. A apresentação do requerimento de prorrogação não suspende o prazo em curso; o juiz decide, sem possibilidade de recurso, no prazo de 24 horas e a secretaria notifica imediatamente ao requerente o despacho proferido, nos termos do n.º 4 do artigo 126.º e do artigo 127.º

O disposto nos seus nºs 4 e 6 evidencia que o nosso legislador outorga ao juiz de primeira instância o poder discricionário e confia definitivamente ao prudente arbítrio do juiz a decisão sobre a prorrogação do prazo para contestação, desde que a prorrogação não vá além de 30 dias – nesse sentido cf. Lopes de Rego, in Comentário ao CPC, I, 2ª edição, pág. 410.

In casu, o despacho recorrido concedeu a prorrogação do prazo por 30 dias, justamente dentro do limite fixado na lei – artº 408º/4 do CPC.

Ao decidir como decidiu, o Exmº Colega de primeira instância não excedeu os limites da discricionariedade fixados no nº 4, dentro dos quais pode decidir a prorrogação do prazo sem possibilidade de recurso, face ao disposto no nº 6 do citado artigo 408º.

Assim, face à irrecorribilidade expressamente prescrita na lei, não havendo portanto necessidade de mais considerações, indefiro a reclamação confirmando o despacho reclamado no sentido de não admissão do recurso do despacho proferido pelo Exmº Juiz a quo que concedeu ao Ministério Público a prorrogação do prazo por 30 dias para a apresentação da contestação.

Custas pelos reclamantes.

Fixo a taxa de justiça em 1/8.

Notifique.

Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC.

R.A.E.M., 29JUL2019


O presidente do TSI



Lai Kin Hong
Recl. 6/2019-9