Proc. nº 236/2019
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Setembro de 2019
Descritores:
- Execução
- Título executivo
- Cheques
- Prescrição da obrigação cartular
- Embargos de executado
SUMÁRIO:
Em caso de prescrição da obrigação cambiária, o cheque pode ainda constituir título executivo nas relações imediatas (relações devedor originário - credor originário), enquanto documento particular assinado pelo devedor (art. 677º, al. c), do CPC), sendo no entanto necessário que o exequente alegue a obrigação causal na petição executiva e possa vir a prová-la, na hipótese de embargos à execução, desde que ela não seja um negócio jurídico formal.
Proc. nº 236/2019
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
“A Lda”, (A有限公司), sociedade comercial registada na Conservatória de Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n. XXX(SO), com sede na Avenida XX, n.º XX, freguesia de XX, Taipa, Macau, ---
Deduziu no TJB (Proc. nº CV2-16-0177-CEO-A) ---
Embargos à execução contra si intentada por: ---
B, casada, de nacionalidade Chinesa, portadora do BIR n.º 1XXXXX0(7), com domicilio em Taipa em XX花園XX閣XX樓XX座; e ---
C, solteira, maior, de nacionalidade Chinesa, portadora do BIR n.º 5XXXXX7(2), com domicilio em Taipa, em XX花園XX閣XX樓XX座.
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A seu tempo, foi proferida sentença, que julgou improcedentes os embargos.
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Inconformada, a embargante apresentou o presente recurso jurisdicional, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
“A) Não se pode negar que quando o cheque, enquanto título específico de pagamento, vale como título executivo, devido à sua especialidade (título de pagamento dotado de abstracção), o exequente não precisa de invocar e provar qualquer relação jurídica subjacente para comprovar a existência da obrigação pecuniária.
B) Porém, o acórdão recorrido reconheceu que os cheques em causa se encontram prescritos (artigo 1263.º n.º 1 e artigo 1240.º n.º 1 do Código Comercial de Macau):
C) Pelo que, os cheques em causa, enquanto título específico de pagamento, já não podem valer como título executivo (artigo 1251.º do Código Comercial);
D) Porém, o acórdão recorrido entendeu que os cheques em causa estão em conformidade com o artigo 677.º alínea c) do Código de Processo Civil de Macau, podendo servir de base ao título executivo por serem “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”;
- E) O aludido entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido incorreu evidentemente em erro na aplicação da lei e na interpretação da lei, e também violou a lei;
F) Sendo como documento particular, o cheque não tem conteúdo que importa constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária; (cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de Macau no Processo n.º 338/2016)
G) Pelo que, no requerimento executivo inicial, as recorridas (exequentes/embargadas) devem invocar e comprovar que constitui a relação jurídica subjacente à obrigação, de forma a provar a existência da obrigação pecuniária, senão, deve ser indeferido o requerimento executivo; (cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de Macau n.º 338/2016)
H) No seu requerimento executivo inicial, as recorridas (exequentes/embargadas) confessaram enquanto a recorrente (embargante) aceitou expressamente no embargos ao abrigo dos artigos 80.º e 489.º do Código de Processo Civil de Macau que a obrigação peticionada nos autos de execução é as comissões que a D, Lda., promotora de jogos, devia receber mas ainda não recebeu.
I) O acórdão recorrido também reconheceu que a obrigação exequenda (quantias constantes dos cheques em causa) não é a obrigação entre a recorrente e as recorridas;
“Embargadas, não existiu qualquer relação de crédito que fez com a mesma emitisse ordens de pagamento a favor destas; que o valor de HKD13.112.724,00 constante do cheque junto a fls. 19 correspondia ao valor da comissão a que a D, Lda. tinha direito de receber junto da(s) concessionária(s) de exploração dos jogos de fortuna ou azar, actividade que a Embargante não exercia; e que o valor de HKD5.624.326,00 constante do cheque junto a fls. 20 correspondia a uma quantia emprestada pela 2.ª Embargada facultou a uma sala de jogo VIP não se tratando de qualquer dívida da Embargante”
J) Daí pode-se ver que as recorridas (exequentes/embargadas) não são credoras dos valores constantes dos cheques em causa (também não alegaram qualquer sub-rogação do credor ou alienação da posição) mas sim a “D, Lda.”, a recorrente (embargante) não é devedora dos valores constantes dos cheques em causa, não tendo essas direito (legitimidade activa) a pedir tal obrigação nem esta última é o sujeito passivo da referida relação obrigacional.
K) Daí pode-se ver que, sendo como documentos particulares, os cheques em causa não têm conteúdo que importa constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária;
L) Quando o cheque, enquanto título específico de pagamento, vale como título executivo, não cabe ao exequente o ónus da prova da relação obrigacional subjacente; quando o cheque, enquanto documento particular, vale como título executivo, o exequente tem o dever de alegar e provar a relação obrigacional subjacente;
M) Ao reconhecer o ónus da prova, o acórdão recorrido incorreu evidentemente em erro na interpretação da lei.
N) De qualquer maneira, já que no requerimento executivo inicial, as recorridas (exequentes/embargadas) não invocaram nem sequer comprovaram a relação jurídica subjacente (constituição da obrigação) com a recorrente (embargante), o requerimento executivo deve ser indeferido.
O) Sem base fáctica (causa de pedir), o acórdão recorrido concluiu imprudentemente que existe a relação obrigacional entre ambas as partes, o que, evidentemente, é uma decisão incorrecta.
P) Nestes termos, deve ser julgado procedente o presente recurso e declarado nulo ou revogado o acórdão recorrido.
Pelos acima expostos, solicita que os MM.ºs Juízes julguem procedente o recurso e:
A. Declarem nulo ou revogado o acórdão recorrido;
B. Julguem procedentes os embargos”.
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As embargadas responderam ao recurso, pugnando pelo seu improvimento.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“- 兩名異議人以主案卷宗第19至20頁的兩張文件作為執行名義,針對異議人提出執行之訴。(當中內容視為全部轉錄) (alínea A) dos factos assentes)
- A Executada é titular do hotel que denominava em Português “Hotel E”, em Chinês “E酒店” e em inglês “E Hotel” e denomina actualmente em Português “Hotel F”, em Chinês “F大飯店” e em inglês “F Hotel”, sito na Avenida XX, n.º XX, Taipa, Macau (fls. 18 dos autos principais)” (alínea B) dos factos assentes).
- A 1ª Exequente, B, é a única sócia e administradora da G一人有限公司, pessoa colectiva registada na Conservatória de Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 3XXX5(SO). (alínea C) dos factos assentes).
- A referida sociedade é titular da Licença n.º EXX3 de promotora de jogo emitida pela DICJ. (fls. 35 dos autos principais) (alínea D) dos factos assentes).
- Da operação mensal da sala VIP eram elaboradas listas de balanços das comissões (EG佣金收支總表) (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- O cheque n.º H001189, junto a fls. 19 dos autos de execução, com a data de 30 de Abril de 2013, foi emitido pela Embargante assinado e preenchido pela H, no valor de HKD13.112.724,00 (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
- A 2ª Embargada é filha da 1ª Embargada (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- Quando a 1ª Exequente fechou as contas com a Executada, a 2ª Exequente fez o mesmo (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- O cheque n.º H001190, junto a fls. 20 dos autos de execução, com a data de 30 de Abril de 2013, foi emitido pela Embargante, assinado e preenchido pela H, no valor de HKD5.624.326,00 (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- As Exequentes apresentaram os cheques referidos na resposta aos quesitos 5º e 9º a pagamento, no dia 17 de Dezembro de 2015 e no dia 25 de Julho de 2016, sendo todos eles devolvidos por falta de provisão (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- A Embargante não é concessionária de jogo de fortuna e azar em casino (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
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III – O Direito
1. O que se discute nos presentes é a natureza dos cheques dados à execução pelas embargadas e apresentados a pagamento (17/12/2015 e 25/07/2016) muito depois do prazo de 8 dias após a sua emissão (30/04/2013) a que se refere o art. 1240º, nº 1, do Código Comercial e mesmo após o prazo de 6 meses de prescrição a que se refere o art. 1263º, nº1, do mesmo Código.
A sentença considerou:
- Que os cheques, mesmo prescritos nesse caso, continuariam a valer como títulos executivos, nos termos do art. 677º, al. c), do CPC, por ter sido invocada no requerimento de execução os factos relativos à respectiva relação fundamental (o que teria sido o caso);
- Que, nos termos do art. 452º do CC se estabeleceu, na situação concreta dos autos, a presunção de que entre embargante/executada e embargadas/exequentes se firmaram certas relações jurídicas que justificaram a emissão das ordens de pagamento dirigidas ao banco sacado através dos referidos 2 cheques;
- Que, no entanto, uma vez que nada se sabe acerca dessas relações jurídicas, porque a embargante não conseguiu demonstrar que nenhuma relação existe por detrás da ordem de pagamento emitida com a assinatura dos 2 cheques, julgou improcedentes os embargos.
É contra essa decisão que a embargada/executada se indigna.
Vejamos.
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2. A sentença impugnada, servindo-se do disposto no art. 452º do CC, (cfr. tb. art. 343º, nº1, do mesmo Código), considerou que as credoras (exequentes/embargadas), por terem a seu favor a presunção emanada daquele preceito, escusavam de provar o facto subjacente à emissão do cheque (a relação obrigacional causal). Quem teria de afastar essa presunção, deveria ser a executada/embargante. O que para a sentença, na circunstância dos autos, não aconteceu.
Serviu-se, pois, a sentença de uma determinada corrente jurisprudencial e doutrinal, segundo a qual o exequente, enquanto credor, não tem que provar a relação causal, em virtude de o ónus de contrariar a aludida presunção incumbir ao devedor-embargante.
É a posição, v.g., do Ac. do STJ, de 22/01/2013, Proc. nº 376/08, segundo o qual “Nas situações enquadráveis no artº 458º do CC não há verdadeiramente a confissão dum facto desfavorável ao autor da declaração, mas uma mera confissão de dívida, presumindo-se até prova em contrário a existência da relação fundamental (causal); permite-se ao autor da declaração, portanto, que ilida a presunção (artº 350º, nº 2, CC) mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida”.
É também o caso, por exemplo, da posição de Pedro Pais de Vasconcelos, “…no que respeita à substância, é dispensada a invocação pelo credor da relação subjacente-causa cuja existência e licitude se presume ilidivel tantum iuris, pelo respectivo obrigado, que é admitido a invocar a sua falta ou qualquer outra excepção ex causa. Recai, todavia, sobre o ónus da prova das excepções causais que deduzir contra o devedor” (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Almedina, pág. 507).
Vejamos.
As espécies de títulos executivos estão previstas no art. 677º do CPC, com a seguinte redacção:
Artigo 677.º
(Espécies de títulos executivos)
À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Na alínea c) avultam, entre outros, os cheques, desde que formalizem a “constituição” de uma obrigação, isto é, sejam fonte de um direito de crédito ou que neles se “reconheça” a existência de uma obrigação anteriormente constituída. (sobre o assunto, ver, v.g., Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 2ª ed., pág. 94-95).
Ora, e independentemente da existência de alguma jurisprudência que nem sequer vê nos cheques a natureza de títulos executivos, o certo é que a maior parte da jurisprudência mantém-se fiel à posição tradicional que os toma como títulos executivos, desde que obedeçam aos requisitos e formalidades a que a sua emissão costuma andar associada (ver arts. 121º 2 sgs. do Código Comercial). Assim sucede, por exemplo, com o Ac. do TUI, de 16/11/2011, Proc. nº 51/2011, segundo o qual, o cheque é título de crédito “que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, dele devendo contar a assinatura de quem passa o cheque (o sacador), o nome de quem deve pagar (o sacado, um banco), a indicação do lugar do pagamento e da data e do lugar onde o cheque é passado (artigo 1212.º do Código Comercial).
O cheque representa uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, onde existem fundos providenciados por quem emite o título”.
E quanto aos cheques prescritos?
A questão agora é a de saber se, prescrita a obrigação cartular, ainda pode esta valer como título executivo da obrigação subjacente.
Há imensa jurisprudência sobre o assunto.
Segundo uma corrente, o cheque perde a natureza de título executivo, passando a ser mero documento quirógrafo, o que, por si só, não traduz o reconhecimento de qualquer dívida pecuniária, devendo o interessado (portador) fazer uso de uma acção declarativa se quiser obter o cumprimento da obrigação subjacente (v.g., no direito comparado, Ac. da RL, de 20/03/2007, Proc. nº 10779/2006; 23/02/2006, Proc. nº 323/2006).
Segundo outra, mesmo em caso de prescrição da obrigação cambiária, o cheque pode ainda constituir título executivo nas relações imediatas (relações devedor originário/credor originário), agora como documento particular assinado pelo devedor, sendo no entanto necessário que o exequente alegue na acção executiva (não na contestação de embargos à execução) e prove a obrigação causal, em caso de embargos, desde que se não esteja perante um negócio jurídico formal.
Neste sentido, podemos encontrar:
- Na RAEM: Ac. do TUI, de 15/04/2015, Proc. nº 49/2014;e do TSI, de 21/09/2006, Proc. nº 399/2006; Ac.do TSI, de 12/05/2011, Proc. nº 89/2009.
- No direito comparado, entre outros: Acs. do STJ, de 30/10/2003, Proc. nº 03B3056; de 19/01/2004, Proc. nº 03A3881; de 12/1/2012, Revista nº 395/10, de 20/02/2014, Proc. nº 22577/09; de 27/05/2014, Proc. nº 780/13; de 16/12/2004, Proc. nº 04B3004; de 4/05/2017, Proc. nº 440/13; da RL, de RP, de 13/02/2007, Proc. nº 0627123.
Esta segunda é, de facto, a mais representativa posição da jurisprudência (portuguesa, pelo menos), não faltando até uma variante dela que defende que o cheque nesse caso não perde a natureza de título executivo mesmo que o exequente/credor não alegue, nem prove a relação causal ou fundamental, por esta se presumir até prova em contrário, nos termos do art. 458º, do CC português (entre nós, art. 452º, do CC de Macau). É o caso, por exemplo, do Ac. da RC, de 12/06/2007, Proc. nº 22/06. E foi esta variante que o tribunal a quo parece ter acolhido.
Quanto a nós, porém, não vemos motivo para nos afastarmos da posição maioritária, na sua versão pura, diríamos, a qual, repete-se, continua a conferir ao cheque prescrito o valor de título executivo, desde que, nas relações imediatas, o portador/credor alegue na petição executiva a obrigação subjacente ou causal e a venha a provar nos embargos deduzidos pelo executado (neste sentido, de resto, ver o Ac. do TSI, de 21/09/2017, Proc. nº 320/2017). Isto é, não se aplica ao caso a presunção a que se refere o art. 452º do CC.
Face a este enquadramento, tendo em conta que as exequentes/embargadas não demonstraram a relação fundamental subjacente aos cheques dados à execução, fica claro que os embargos devem proceder, ao contrário do que a sentença sob escrutínio decidiu.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso.
Em consequência:
1. Revogam a sentença recorrida; e
2. Julgam procedentes os embargos e decretam a extinção da execução.
Custas pelas embargadas.
T.S.I., 19 de Setembro de 2019
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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