Reclamação nº 6/2018/R
A, B, Limitada e C, 1º, 2º e 3º réus no autos da Acção Declarativa de Condenação com Processo Ordinário nº CV2-15-0085-CAO, que correm os seus termos no 2º Juízo Civil do Tribunal Judicial de Base, notificados e inconformados com o despacho que julgou improcedente a recusa de um perito e decidiu manter a sua nomeação, vieram interpor recurso jurisdicional para o Tribunal de Segunda Instância.
Por despacho do Exmº Juiz recorrido, o recurso não foi admitido com fundamento na irrecorribilidade.
Notificados do despacho da não admissão do recurso, vieram nos termos do disposto no artº 595º e s.s do CPC formular a presente reclamação com os seguinte fundamentos:
(1) A, (2) B, LIMITADA e (3) C, 1º, 2a e 3º Réus/ora Reclamantes melhor identificados nos autos à margem epigrafados, notificados do despacho de fls. 7407 dos autos que não admitiu o recurso por aqueles interposto quanto ao despacho de fls. 7344, vêm deduzir a presente reclamação contra o indeferimento do recurso para o Presidente do Tribunal de Segunda Instância, nos termos permitidos pelos artigos 595º n.º 1 e 596º do Código de Processo Civil (adiante abreviadamente “CPC”) e 42º - 13) da Lei de Bases da Organização Judiciária, com os seguintes fundamentos:
Exmo. Senhor Juiz Presidente do
Tribunal de Segunda Instância da
R.A.E.M.
I. Dos fundamentos da decisão recorrida
1. Os ora Reclamantes interpuseram recurso da decisão de fls. 7344 que deliberou manter D, perito nomeado em representação de todos os Réus e melhor identificado nos autos epigrafados, por considerarem que aquele:
(i) não respeitou a injunção expressa do Ilustre Tribunal constante do despacho de fls. 5182 a 5185 que o exortou a não utilizar quaisquer meios da sua empresa para afastar a suspeição sobre si suscitada;
(ii) reuniu, sem qualquer justificação legalmente admissível ou autorização judicial prévia, com o mandatário da 6ª Ré nos presentes autos, pretendendo cobrar aos demais Réus honorários pela aludida reunião, conforme requerido pelo perito a fls. 6128 a 6129 e documentos juntos a fls. 6201 a 6220,
violando, destarte, as suas obrigações legais no desempenho da sua função, mormente a execução isenta e imparcial do múnus profissional como solenemente assumiu no juramento de aceitação do cargo perante o Tribunal.
2. O referido recurso foi rejeitado pelo douto Tribunal a fls. 7407 dos autos, que sustentou a decisão, invocando a irrecorribilidade estatuída no artigo 493º n.º 3 do CPC que determina que “das decisões proferidas sobre os obstáculos à nomeação dos peritos não cabe recurso”.
3. Salvo o devido respeito, tal aresto carece de fundamento legal, pois o aludido despacho recorrido não tem por objecto quaisquer obstáculos à nomeação do perito, como infra se procurará demonstrar.
II. Dos factos
4. Para melhor compreensão do objecto da reclamação vertente, vejamos a cronologia relevante dos factos:
a) Em 18/10/2016, os ora Reclamantes foram notificados do despacho de fls. 4864 e 4873, através do qual tomaram conhecimento que a maioria dos restantes Réus, na falta de consenso, houvera nomeado peritos que (bem sabiam) se encontravam impedidos, designadamente o Sr. E, por se ter pronunciado anteriormente sobre questões sub judice através de relatório junto aos autos pela mão da 6ª Ré, não aceitando, consequentemente, o douto Tribunal a nomeação proposta e ordenando a notificação apenas dos 4° a 7° Réus e intervenientes chamadas para nomearem novos peritos, à revelia do disposto no art. 494º CPC;
b) Nesta sequência, por despacho datado de 7/11/2016, de fls. 4927 a 4931, o Ilustre Tribunal aceitou a nova nomeação proposta pela maioria dos Réus, o Sr. D, e agendou de imediato diligência de compromisso de honra, factos que os ora Reclamantes vieram a tomar conhecimento apenas em 11/11/2016, juntamente com o curriculum vitae do perito em apreço;
c) Ora, em 22/11/2016 os três peritos nomeados para integrar a perícia colegial, incluindo D, prestaram e assumiram solenemente o compromisso de honra perante o Tribunal, que foi lavrado por escrito a fls. 4942 a 4943 e reduzida a auto;
d) Nesse auto, e nos termos do art. 502º do CPC, os peritos juraram, sob compromisso de honra, desempenhar conscienciosamente e com seriedade as tarefas que lhes foram cometidas;
e) À necessidade de apoio logístico reclamada pelos peritos durante a sessão de compromisso de honra, o Ilustre Juiz a quo ordenou em despacho que, além da logística e meios das suas próprias empresas, os peritos poderiam socorrer-se de outras entidades;
f) Interrogado sobre os honorários, respondeu o perito D que os apresentaria “depois de perguntar à sua companhia” (tradução e sublinhado nossos);
g) Em resposta à nomeação comunicada aos Reclamantes em 11/11/2016, os aqui Reclamantes, por requerimento de 24/11/2016, impugnando a nomeação, solicitaram ao Tribunal a remoção do perito D e nova nomeação pelo Tribunal (em representação dos Réus), nos termos do art. 494º do CPC;
h) Alegaram então os Reclamantes que, de acordo com o curriculum vitae apresentado, bem como a certidão comercial junta ao requerimento apresentado em 06/02/2017, o perito era/é administrador e sócio da sociedade “F Limited”, exactamente a mesma sociedade a que pertence E, anteriormente rejeitado pelo Tribunal por motivos de impedimento, por se ter pronunciado anteriormente nos autos, sendo ademais irmão deste;
i) Por despacho de fls. 4961 e 4962, notificado aos Reclamantes em 29/11/2016, o Ilustre Tribunal notificou as restantes partes para se pronunciarem sobre os argumentos expendidos no requerimento supra citado, ordenando que o perito visado, apesar de já ajuramentado, respondesse às seguintes questões: “a) 撰寫卷宗第2293至2403頁的報告的E是否其兄弟;b) E在撰寫報告、調口及研究該個案期間是否使用 “F”的名義及資源以完成有關工作;c) 鑑定人本人有否在E撰寫報告、調口及研究該個案期間給予任何協助及/或發表意見;d) 就本案所討論的個案,鑑定人有否曾向E或其他人表達其意見或立場”
j) Inteiraram-se os ora Reclamantes por notificação de 16/12/2016 (fls 5060), quer da resposta do perito que confirmou a relação de parentesco com E, quer da posição dos demais Réus e da Autora;
k) Face aos esclarecimentos prestados pelo perito, reagiram novamente os Reclamantes em requerimento apresentado em 04/01/2017, reiterando o pedido de remoção do perito, dada a existência de impedimento nos termos conjugados dos arts 492º e 311º n.º 1 alínea d) e, “com as necessárias adaptações”, alínea c) do CPC;
l) Pese embora os argumentos aduzidos pelos Reclamantes e a própria Autora a fls. 4973 e verso dos autos ter referido que: “3)但無論如何,倘若確定鑑定人D與 E 屬於同一公司,我們意見認為至少存在令人懷疑前者是否能公正履行其鑑定人職責的合理疑問,這是因為,其兩者可能於存在上下等級關係,而且,兩者對外均屬同一公司的人員(不論是僱員還是機關據位人,難以就同一事件先後存在不同甚至互相對立的意見,此可能會影響所屬公司對客口的公信力從而對鑑定人D履行鑑定職有不利影響或傾向,在這前提下,原告認為,倘若確定人D與E屬於同一公司,第一至三名被提出鑑定人D的迴避聲請理由成立,且不反對委任卷宗第4961背頁批示第3點所指的後補人士擔任新的鑑定人”, o Tribunal não encontrou qualquer impedimento que obstasse à nomeação do perito em apreço, mantendo a sua nomeação como se comprova pelo despacho de fls. 5182 a 5185;
m) Todavia, nesse mesmo despacho o douto Tribunal, inflectindo o sentido da decisão expressa a fls. 4942 a 4943 (vide ponto e) supra), advertiu o perito D para “考慮到第一至第三被告針對D提出的質疑,本院認為在鑑定中,不適宜使用 F 及 G Limited 的任何人事及後勤輔助,因此,三名鑑定人在進行鑑定時,不得使用 F 及 G Limited 的任何人事及後勤輔助” (vide fls 5185);
n) Mais tarde, em 3/04/2017, os Reclamantes foram notificados do relatório pericial dos peritos, juntamente com a nota detalhada de honorários apresentada pelo perito D, como melhor consta a fls. 6128 a 6129 bem como da nota de honorários revista a fls. 6201 a 6220, onde constataram que o predito perito utilizou o endereço e meios da sociedade “F Ltd;
o) Além disso, perante o pedido de honorários formulado pelo perito relativo a uma reunião de 30 minutos no dia 22/11/2016 “com advogado constituído no processo” (tradução nossa), os Reclamantes solicitaram imediatamente ao Tribunal que o perito fosse notificado para esclarecer por que motivo usou o endereço da sociedade e explicar a razão da reunião e qual o advogado com quem reuniu (fls. 6253 e ss);
p) Na sequência do ordenado pelo Ilustre Tribunal a fls. 6258, os esclarecimentos foram notificados apenas em 13/02/2018, a fls. 7273 a 7275, dizendo o perito, em síntese, que apesar de receber a correspondência na morada da sociedade, não utilizou a logística daquela e que a reunião tida com o mandatário da 6a Ré foi apenas para saber a opinião jurídica do advogado sobre se a a relação de parentesco com o irmão afectava ou não o seu cargo de perito;
q) Perante o exposto, em 2/03/2018, os aqui Reclamantes dirigiram ao Ilustre Tribunal um requerimento solicitando decisão em conformidade com o ordenado no despacho de fls. 5182 a 5185 e, nesse sentido, dando cumprimento ao compromisso de honra assumido pelo perito na execução das tarefas no decurso da perícia;
r) Em resposta, a fls. 7344, incompreensivelmente, o douto Tribunal reclamado decidiu manter o perito D em funções, considerando que o comportamento do perito não violou qualquer norma e que não existia fundamento, nos termos dos artigos 311º, 315º e 316º do CPC, para o afastar;
s) Inconformados, os Reclamantes interpuseram recurso da decisão por considerarem que, atentos todos os factos supra expendidos, o aresto infringe o disposto nos artigos 491º nº 1 e 2, 502º e 504º do CPC;
t) Por despacho de fls. 7407, o douto Tribunal rejeitou o recurso, decisão de que ora se reclama.
III. Da alegada irrecorribilidade da decisão impugnada
5. Compulsados os factos relevantes, evidente se torna que o despacho recorrido não decidiu sobre matéria atinente aos obstáculos à nomeação de perito estipulada nos arts 492º e 493º do CPC.
6. A decisão sobre a nomeação do perito D já havia sido tomada e mantida antes, por despacho de fls. 5182 a 5185 (vide ponto 1. supra).
7. Esse despacho sim, decidiu sobre a (in)existência de obstáculos à nomeação do perito, questão levantada, à data, pelos ora Reclamantes que requereram a imediata remoção do perito, mas viram ignorados os seus argumentos, sem possibilidade de recurso.
8. De facto, a irrecorribilidade aplicável via art. 493º n.º 3 do CPC existiu em relação ao despacho de fls. 5182 a 5185.
9. Da factualidade sumariada, resulta com meridiana clareza, que os factos que os ora Reclamantes submeteram à apreciação do Tribunal foram praticados pelo perito no exercício de funções e em contravenção de uma injunção do próprio Tribunal reclamado.
10. Na verdade, a apreciação judicial de tais factos passa necessariamente pela verificação dos pressuspostos estabelecidos nos artigos 491º n.º 1 e 2, 502º e 504º n.º 1 do CPC.
11. Sendo certo, como resulta da sequência fáctica supra elencada, que a relação de parentesco com o irmão, E e a ligação à empresa de ambos, foram, desde o momento da nomeação, factos de enorme suspeição apontados pelos aqui Reclamantes, com potencial para comprometer a necessária imparcialidade, isenção e objectividade do juízo técnico a proferir.
12. Essa foi a razão pela qual os Reclamantes, como explicaram no requerimento de 03/04/2018, invocaram os artigos 311º e 315º, ex vi art. 492º n.º 1, todos do CPC, cuja ratio legis é delimitar ab initio, isto é, desde o momento da nomeação, os parâmetros da imperiosa idoneidade e imparcialidade do perito que hão-de observar-se durante o exercício da respectiva função.
13. Aliás, tributária do mesmo entendimento foi a decisão do Ilustre Juiz titular dos vertentes autos que, ao ordenar ao perito D que não utilizasse os meios da empresa de que é sócio e administrador juntamente com o irmão, visou justamente estabelecer o limite das suspeições sobre si apontadas.
14. Sucede que o perito não só não acatou a ordem judicial, como ademais revelou ter reunido com o mandatário de uma das partes Ré no processo, por coincidência (a 6ª) Ré que juntou aos autos um relatório subscrito pelo irmão, tudo no mais flagrante repúdio do compromisso assumido e da obrigação de executar de forma diligente, isenta e conscienciosa a função enquanto perito.
15. Esta é, com efeito, a factualidade conhecida pelo Tribunal reclamado e sobre a qual devia ter recaído decisão devidamente fundamentada.
16. O Ilustre Tribunal entendeu, porém, que tais factos não constituem qualquer violação das obrigações legais do perito, nem contendem com os mínimos de idoneidade, isenção e seriedade que o cargo em apreço impõe.
17. Ora, os Reclamantes têm de poder reagir contra uma decisão que, ao aceitar um elemento de prova produzido sob fortes dúvida e suspeição de parcialidade, limita o basilar princípio da descoberta da verdade material, comprometendo irremediavelmente a apreciação de um elemento de prova nuclear nos presentes autos.
18. E mesmo que venha invocar-se o princípio da livre apreciação da prova, nos termos permitidos pelo artigo 558° do CPC ou da livre apreciação das perícias efectuada pelo Tribunal, nos termos do art. 521°, in fine, do CPC, não pode, escamotear-se a decisiva relevância do juízo técnico científico que o douto tribunal não possui, para a derradeira resolução do litígio em apreço.
19. Desconsiderar tudo isto, significa, mesmo que reflexamente, comprometer os interesses e direitos das partes, in casu, das partes reclamantes.
20. Em suma, trata-se simplesmente de permitir o acesso ao Direito e aos Tribunais, consagrado no art. 36º da Lei Básica da RAEM, através do exercício do direito ao recurso de que a regra da recorribilidade das decisões judiciais é subsidiária (art. 581º n.º 1 e 583º do CPC).
IV. Da recorribilidade nos termos do art. 584º do CPC, a contrario
21. Por outro lado, na categoria das decisões irrecorríveis estão os despachos de mero expediente e os proferidos no exercício de um poder discricionário, como apertis verbis diz o art. 584º do CPC, por serem “despachos que, pela sua própria natureza, não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros” (Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pag.249).
22. Ora, a decisão recorrida não consubstancia nenhuma das situações. Senão vejamos:
23. Refere o art. 106º n.º 4, in fine do CPC, que são despachos de mero expediente “os que se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”.
24. Como ensina Castro Mendes (In Recursos, 1980-40), os despachos de mero expediente “são despachos de carácter meramente interno, que dizem respeito às relações hierárquicas entre o juiz e a secretaria (p. ex., o despacho que ordena a conclusão do processo ao juiz); ou em qualquer caso são despachos que dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes (ex: o despacho que marca dia para julgamento). Estes despachos são, em princípio irrecorriveis, só o sendo no caso de desarmonia com a lei”.
25. Nas palavras de Alberto dos Reis (Ob. Cit. reimpressão, 1981, pág. 250): “despachos de mero expediente são os que o juiz profere para assegurar o andamento regular do processo. 1º Por meio deles, o juiz provê ao andamento regular do processo; 2º Não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros”.
26. Ora, o despacho recorrido decide sobre se um dos meios de prova requeridos é produzido respeitando ou não a lei aplicável.
27. Com efeito, apreciar nestes termos a perícia, que é prova de magna importância no presente processo, como supra se enfatizou, é matéria cuja errada apreciação pode comprometer seriamente os interesses das partes e a justa composição do litígio.
28. O despacho que decide manter um perito que não observa ordens judiciais, que não respeita o compromisso de honra e os deveres de execução diligente e conscienciosa das suas tarefas, reunindo com partes do processo sem autorização judicial, não é, obviamente, despacho de mero expediente já que interfere ou pode interferir indubitavelmente no conflito de interesses e direitos das partes.
29. Também não se diga que o despacho cujo recurso foi rejeitado foi proferido no exercício de um poder discricionário.
30. A lei determina no art. 106º n.º 4 do CPC que se “consideram proferidos no exercício de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do juiz”.
31. Falamos em poder discricionário quando estamos perante decisões que dependem da iniciativa funcional do juiz, isto é, quando este tem livre determinação e decide orientado por padrões de conveniência e oportunidade.
32. Mas não pode confundir-se poder discricionário com simples arbitrariedade, como se enfatiza no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 05/12/2006 (vide. Proc. 0622827 in www.dgsi.pt). “pois mesmo o uso do poder discricionário é sempre reconhecido em vista à satisfação de determinado fim, que justifica a concessão daquele poder, limita a liberdade que é inerente à discricionariedade de tal modo que a sua falta (...) afecta a validade do respectivo acto”.
33. Mas se essa livre determinação estiver sujeita a limites ou condicionalismos o juiz exerce antes um poder vinculado, inspirado em critérios de legalidade estrita.
34. Rodrigues Bastos explica bem a diferença in Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, págs. 272-4: “são actos praticados no uso de poder discricionário aqueles relativamente aos quais a lei atribui à entidade competente a livre escolha quer da oportunidade da prática, quer da solução a dar ao caso concreto. É o contrário do que acontece no exercício de poderes vinculados, em que se trata de aplicar a um caso concreto a vontade objectivada na lei ...”.
35. Regressando ao caso vertente, quando a lei estabelece que o perito tem de se comprometer a desempenhar conscienciosamente a tarefa que lhe é cometida (art. 502º do CPC), que é obrigado a desempenhar com diligência as funções para que foi nomeado, sob pena de ser condenado em multa ou ser destituído pelo Tribunal, não parece ter querido deixar ao prudente arbítrio do julgador a oportunidade ou solução a dar ao caso, sem limites ou condicionalismos.
36. Nesta matéria de decisiva relevância instrutória, a lei estabelece os pressupostos que, uma vez verificados, obrigam o juiz a actuar, pese embora a lei lhe confira a iniciativa na apreciação. O juiz “pode” aplicar a multa e “pode” destituir o perito do cargo. Trata-se de um poder-dever, conquanto se verifique a violação dos deveres no desempenho da função de perito.
37. Aceitar-se a irrecorribilidade de despachos que não decidam ou decidam ignorando as regras e princípios legalmente estabelecidos para o exercício das funções do pento, sena atentar contra o pnncipio geral de acesso ao Direito e aos Tribunais de que a regra da recorribilidade consagrada no ordenamento jurídico da RAEM é corolário (art. 583° do CPC), em conformidade com o estabelecido, conjugadamente, na Lei Básica, Lei de Bases de Organização Judiciária e na Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais.
38. Aceita-se que, apesar de largamente debatida, a questão possa ser de resolução melindrosa, consoante as circunstâncias do caso concreto. Mas até nessas situações, como se conclui no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 28/02/2005, do Proc. 209/05-2 in www.dgsi.pt: “a decisão assim proferida não deve vincular o Tribunal superior, devendo seguir-se, em sede de admissibilidade de recursos, a orientação mais favorável ao recorrente, para dar ensejo a que a questão seja apreciada e decidida no tribunal superior. A interpretação exposta impõe-se em homenagem ao princípio de que, na dúvida, devem os recursos ser admitidos”(sublinhado nosso).
39. Dito isto, sempre respeitando diverso entendimento, deverá o despacho reclamado ser revogado e admitido o recurso ordinário interposto para este venerando Tribunal.
Devidamente autuada e tramitada, a presente reclamação foi feita subir a esta instância.
Passemos pois a apreciar a reclamação.
A única questão que nos importar resolver prende-se com a recorribilidade do despacho recorrido.
Vejamos.
Ora, como se sabe, o recurso ordinário, tal como sucede com os outros meios de impugnação, justifica-se pela falibilidade humana, realidade que não podemos negar.
Mais concretamente falando, é a possibilidade de ser errada ou injusta uma decisão judicial, por esta ser justamente produzida pela cabeça humana.
Face a esta realidade inegável, há que colocar à disposição dos interessados que se sintam prejudicados por uma decisão judicial instrumentos processuais tendo em vista a modificação ou até a eliminação da decisão errada ou injusta por forma a acautelar judicialmente os seus interesses, quer processuais quer substanciais.
Eis a razão de ser dos meios de impugnação consagrados na generalidade das leis processuais, nomeadamente o recurso ordinário.
Todavia, tal como sucede com todos os princípios fundamentais, o princípio do duplo grau de jurisdição admite excepções, justificadas por razões atendíveis.
Se é certo que o recurso ordinário oferece em regra uma garantia reforçada do novo exame da questão por ser apreciado e decidido por um tribunal hierarquicamente superior, não é menos verdade que este meio de impugnação com efeito sempre devolutivo até suspensivo é susceptível de causar abrandamento na tramitação processual, até nas piores hipóteses, ser instrumentalizado pelos litigantes para, em vez de procurarem corrigir erros e repor a justiça, mas exclusivamente fazerem retardar a justiça.
Portanto, num lado da balança, temos o valor de justiça material reforçada, e noutro o da justiça célere.
No caso em apreço, está em causa a recusa de um perito nomeado suscitada pelos 1º, e 2º 3º Réus, com fundamento de que a sua nomeação, aos olhos das partes recusantes, ora reclamantes, não oferece as necessárias garantias de isenção ou imparcialidade requeridas do perito, por virtude de este ser irmão do autor de um relatório junto aos autos pela 6º Réu sobre a matéria objecto da perícia para a qual foi nomeado, e ser administrador e sócio da sociedade F Limited, a que pertence o seu referido irmão seu, assim como o seu contacto pessoal com o advogado mandatário de um dos co-réus.
Reza o artº 493º/3 que das decisões proferidas sobre os obstáculos à nomeação dos peritos não cabe recurso.
Ou seja, o nosso legislador confia exclusivamente ao juiz de primeira instância a decisão sobre as causas de impedimentos, escusas e recusas de perito.
Trata-se de uma regra já consagrada pelo menos desde o Código de 1939 (vide o artº 591º do CPC de 1939), e mantida nos códigos sucessores, assim como no CPC de Macau.
Não sendo certamente precipitada a opção do legislador pelo carácter definitivo das decisões proferidas sobre a recusa de um perito nomeado, mas sim, cremos nós, necessariamente precedida duma cautelosa e prudente ponderação sobre os valores de justiça material e justiça célere, que estão em jogo, e resultante de uma concordância práticas destes valores em si conflituantes.
Além de ser opção prudente do nosso legislador, a irrecorribilidade das decisões sobre impedimentos, escusas e recusas, justifica-se também pela simplicidade da matéria e a relativa urgência das diligências probatórias – cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 591 e 592.
Cremos portanto que o nosso legislador optou deliberadamente pelo carácter definitivo dessas decisões, excluindo a viabilidade da sua impugnação por via de recurso ordinário.
Face à irrecorribilidade expressamente prescrita na lei, não havendo portanto necessidade de mais considerações, indefiro a reclamação confirmando o despacho reclamado no sentido de não admissão do recurso do despacho proferido pelo Exmº Juiz a quo que indeferiu o pedido de recusa do perito formulado pelos 1º, 2º e 3º Réus, ora reclamantes.
Custas pelos reclamantes.
Fixo a taxa de justiça em 1/8.
Notifique.
Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC.
R.A.E.M., 26JUL2019
O presidente do TSI
Lai Kin Hong
Recl. 6/2018-14