Processo nº 900/2019 Data: 12.09.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.
SUMÁRIO
1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.
2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.
3. A liberdade condicional não é de conceder quando o percurso até ao momento experienciado pelo condenado não oferece ainda suficiente segurança para sustentar um “juízo positivo” acerca do seu comportamento futuro quando em meio livre.
4. A compatibilidade da libertação condicional com a defesa da ordem e da paz social não se reconduz à previsível ausência de expressões públicas de inconformismo, mas antes, (e mais latamente), à compatibilidade da libertação condicional com a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes, não sendo de se olvidar também que nos termos do art. 43°, n.° 2 do C.P.M.: “A execução da pena de prisão serve igualmente a defesa da sociedade, prevenindo o cometimento de crimes”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 900/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (B), com os restantes sinais dos autos e ora preso no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 80 a 99 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).
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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 101 a 102-v).
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação (cfr. fls.80 a 99 dos autos), o recorrente solicitou a revogação do douto despacho recorrido e a sua substituição pela decisão de deferir o pedido da liberdade condicional, assacando-lhe a violação do preceito no n.º1 do art.56º do Código Penal de Macau (CPM) e o erro notório na apreciação de prova.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na douta Resposta (vide. fls.101 a 102 vº dos autos).
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No dia de hoje, constitui jurisprudência firme que a concessão da liberdade condicional depende do preenchimento cumulativo de todos os pressupostos, quer formais quer substanciais, consignados no art.56º do CPM, bastando a não verificação de qualquer um para se negar o pedido da liberdade condicional (a título exemplificativo, Acórdão do TSI no Processo n.º195/2003).
Importa recordar que a liberdade condicional não é uma medida de clemência ou de recompensa por mera boa conduta prisional, e serve na política do C.P.M. um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o recluso possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º50/2002)
Daí decorre que se, não obstante um comportamento prisional adequado, pelo passado do recluso e perspectivas de reintegração se não se formula um juízo de prognose favorável a uma regeneração e se teme pelas razões de prevenção geral (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º225/2010). Ainda se inculca reiteradamente que cada situação deve ser observada caso a caso, num circunstancialismo de modo, tempo e lugar próprios, analisando de forma crítica a personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo se vai reinserir na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo ainda constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social. (cfr. Acórdãos do TSI nos Processos n.º225/2010 e n.º404/2011)
Envolvendo conceitos indeterminados de prognose, as alíneas a) e b) do n.º1 do art.56º dotam aos julgadores certa margem de livre apreciação na interpretação e na valorização, pelo que a convicção de não verificação dos pressupostos subjectivos só poderia ser neutralizado se houvesse uma exemplar e excelente evolução activa da personalidade do recluso durante a execução da prisão, e não um mero comportamento passivo cumpridor das regras básicas de conduta prisional. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º9/2002)
No caso sub judice, quanto à prevenção especial, o MMº Juiz a quo aponta prudentemente “綜上所述,法庭認為雖然被判刑人的獄中表現穩定,對職訓亦表現投入,但考慮到涉案的毒品罪行罪過程度嚴重,加上其在香港過往多次的入獄紀錄顯示其對法律的尊重有必要得到更重點加強,法庭認為其需要更長時間地在獄中進行改造、自省,方可在出獄後抵禦不法得益所帶來的誘惑及徹底地矯正其價值觀。基於此,法庭認為尚需更多時間的觀察,方能令法庭完全確信倘釋放被判刑人,其能以對社會負責任的方式生活及不再犯罪。目前為止,法庭認為被判刑人的狀況尚未符合《刑法典》第56條第1款a)項的規定。”
A nível da prevenção geral, lá lê-se que “考慮到本案中並無任何特殊情節可以降低一般預防的要求,故此,本法庭認為倘現時提前釋放觸犯毒品犯罪人士,將是對信賴法律、循規守紀的社會成員構成另一次傷害,同時亦會動搖法律的威懾力,更甚者,將對潛在的犯罪分子釋出錯誤訊息,令澳門成為毒品的集散地。因此,本法庭認為本案現階段尚未符合《刑法典》第56條第1款b)項的要件。”
Assim, não obstante se militarem, nos autos, umas circunstâncias favoráveis ao recorrente, mas, na esteia das persuasivas jurisprudências supra citadas, sufragamos, sem reserva, a prudente avaliação e a cristal preocupação do MMº Juiz a quo, no sentido de aquele ainda não preencher, por ora, os pressupostos consagrados no n.º1 do art.56º do CPM.
Com efeito, como bem observou o MMº Juiz a quo, existe ainda a séria dúvida de que o recorrente tenha já adquirido a estável capacidade de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem ir cometer crime; e prevê-se razoavelmente que a colocação dele em liberdade nesta altura não é compatível com a paz social e a prevenção geral.
De qualquer modo, importa ter presente que é generalizadamente consabido que em termos comparativos, as sanções penais do ordenamento jurídico da RAEM são muito mais benevolentes. Daí que os julgadores de Macau deve tentar esforços e providências necessárias para evitar a desastre de ser destino ou “paraíso” de delinquentes.
Nesta linha de perspectiva, não podemos deixar de entender que não tem cabimento o pedido da recorrente, e não merece censura alguma o douto despacho em escrutínio.
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe «quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
À luz da brilhante jurisprudência atrás citada, inclinamos a colher que o Acórdão in quaestio não padece do assacado erro notório na apreciação de prova e, em bom rigor, a invocação deste vício pelo recorrente não faz sentido. Com efeito, o que o MMº Juiz a quo carecia de fazer e ele fez na realidade é valorar e avaliar prognosticamente a evolução da personalidade do recorrente durante o cumprimento da pena de prisão.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 109 a 111).
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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):
– por Acórdão do T.J.B. de 06.06.2017, foi, B, ora recorrente, condenado pela prática como autor material de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
– o mesmo recorrente, deu entrada no E.P.C. em 21.07.2016, e em 21.07.2019, cumpriu dois terços da referida pena, vindo a expiar totalmente a mesma pena em 21.01.2021;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, irá viver com a sua família em Hong Kong, de onde é natural.
Do direito
3. Insurge-se o ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.
Vejamos.
— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:
“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).
Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).
“In casu”, atenta a pena que ao recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente preso desde 21.07.2016, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.
Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.
Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).
Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 20.06.2019, Proc. n.° 594/2019, de 11.07.2019, Proc. n.° 694/2019 e de 25.07.2019, Proc. n.° 759/2019, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 540/16).
Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.
Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?
Ponderando no tipo e circunstâncias do cometimento do crime em questão, e atento o que se deixou adiantado, temos para nós que de sentido negativo terá de ser a resposta.
De facto, inviável se nos mostra o necessário juízo de prognose favorável, pois que o ora recorrente tem antecedentes criminais, tendo antes sofrido outras 4 condenações, voltando, agora, a incorrer novamente na prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, revelando, assim, uma personalidade com tendência para a prática de ilícitos, (avessa ao direito), a que importa acautelar.
Como já tivemos oportunidade de considerar, a liberdade condicional não é de conceder quando o percurso até ao momento experienciado pelo condenado não oferece ainda suficiente segurança para sustentar um “juízo positivo” acerca do seu comportamento futuro quando em meio livre; (neste sentido, cfr., v.g., o recente Ac. da Rel. de Évora de 19.02.2019, Proc. n.° 13/16).
Por sua vez, e, como temos vindo a consignar, em sede de uma decisão como a dos presentes autos, importa também acautelar a repercussão do crime cometido na sociedade, o que equivale a dizer que não podem ser postergadas as exigências de tutela do ordenamento jurídico, (cfr., F. Dias in “Dto Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 528 e segs.), havendo igualmente que salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade no que toca à validade da norma violada através do “restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada”, impondo-se, também por isso, uma reafirmação social mais intensa da validade das normas jurídicas violadas; (cfr., F. Dias in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 106 e o Ac. da Rel. do Porto de 10.01.2018, Proc. n.° 417/15).
No caso, atentas as circunstâncias da prática do crime, (nomeadamente, sendo o recorrente um cidadão de Hong Kong que para aqui se deslocou expressamente para o efeito), atenta a parcela da pena que ainda falta cumprir, cremos que, por ora, não se mostra de considerar que a libertação do ora recorrente se apresenta compatível com as assinaladas razões de prevenção geral.
Como no Ac. do T.R. de Évora de 05.02.2019, (Proc. n.° 669/16), se considerou, importa ter em conta que “a compatibilidade da libertação condicional com a defesa da ordem e da paz social não se reconduz, restritivamente, à previsível ausência de expressões públicas de inconformismo, mas antes, mais latamente, à compatibilidade da libertação condicional com a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes”, não sendo de se olvidar também que nos termos do art. 43°, n.° 2 do C.P.M.: “A execução da pena de prisão serve igualmente a defesa da sociedade, prevenindo o cometimento de crimes”.
Assim, em face das expostas considerações, e sendo que verificados não estão os pressupostos do art. 56°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M., há que decidir em conformidade.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 12 de Setembro de 2019
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 900/2019 Pág. 4
Proc. 900/2019 Pág. 3