Processo nº 730/2019 Data: 19.09.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “auxílio”.
Erro notório na apreciação da prova.
Qualificação jurídica (número de crimes).
Agravação.
Tentativa.
Pena.
SUMÁRIO
1. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
Nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
2. Provado estando o “acordo”, mas não tendo o arguido recebido (efectivamente) o dinheiro como recompensa pela sua tarefa, evidente se apresenta que “consumado” não está o tipo de crime de “auxílio” previsto no n.° 2 do art. 14° da Lei n.° 6/2004.
3. Assim, e atenta a moldura penal prevista no art. 14°, n.° 1 para o crime de “auxílio (simples)”, (de 2 a 8 anos de prisão), e a que no n.° 2 cabe ao mesmo crime, mas agravado, e – no caso – na forma tentada, (1 a 5 anos e 4 meses de prisão), deve-se optar pela primeira que prevê sanção mais severa, melhor assegurando a protecção do bem jurídico tutelado.
O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo
Processo nº 730/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a final, a ser condenado como co-autor da prática em concurso real de 2 crimes de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos de prisão; (cfr., fls. 247 a 251-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado, o arguido recorreu.
Na sua motivação de recurso e em sede das suas conclusões assaca ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser condenado como autor de 1 só crime do art. 14°, n.° 1 – e não art. 14°, n.° 2 – da Lei n.° 6/2004, ou o de “auxílio” (agravado) na forma tentada e continuada, considerando também excessiva a pena aplicada; (cfr., fls. 276 a 291).
*
Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso merece parcial provimento, devendo-se alterar a qualificação jurídica operada para a prática de 2 crimes de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004; (cfr., fls. 313 a 321-v).
*
Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Recorre B do acórdão de 17 de Maio de 2019, proferido no âmbito do processo comum colectivo CR1-18-0355-PCC, que o condenou na pena conjunta de prisão de 6 anos pela prática de dois crimes de auxílio à imigração ilegal da previsão do artigo 14.°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004, pena essa resultante do cúmulo jurídico das duas penas parcelares, cada uma delas computada em 5 anos e 3 meses de prisão.
Na motivação e respectivas conclusões traz o recorrente à consideração do tribunal de recurso o vício de erro notório na apreciação da prova e as questões da existência de crime continuado e da medida da pena, esta por si considerada excessiva, impetrando do tribunal de recurso, em essência, a sua absolvição ou a alteração da pena para 2 anos e 3 meses de prisão, com suspensão da sua execução.
Esta motivação conta com a oposição genérica da resposta do Ministério Público em primeira instância, com excepção da parte relativa ao erro atinente à cobrança das despesas referida no ponto 12 dos factos provados, concedendo o Ministério Público que, nesta matéria, se impõe a condenação pelo tipo simples do crime de auxílio à imigração clandestina.
Vejamos quanto ao alegado erro notório.
Acha o recorrente que os factos 1, 6, 7, 8 e 12 devem ser dados como não provados, pois a conclusão a que chegou o acórdão, ao dá-los como provados, enferma de erro notório na apreciação da prova.
O recorrente traça a sua própria leitura da prova, externando uma visão típica de quem tem interesse directo no desfecho do caso e que, por isso, quer sobrepor a sua versão dos factos à versão que as testemunhas ouvidas deram desses mesmos factos, no que concerne às respostas aos factos 1, 6, 7 e 8. No entanto, estas estão devidamente respaldadas nas versões dadas pelas três testemunhas que depuseram, não padecendo os respectivos depoimentos de contradições, inverosimilhança ou outros vícios impedientes de uma valoração conducente às respostas positivas dadas àqueles factos. A versão contrária do recorrente, essa sim, atenta contra as regras normais da experiência, como o tribunal recorrido bem ponderou.
Não se detecta, em suma, qualquer erro na apreciação da prova, no que concerne aos factos 1, 6, 7 e 8 julgados provados.
O mesmo não poderá dizer-se, cremos, quanto ao facto, considerado provado, segundo o qual além disso, o arguido cobrou as despesas aos indivíduos (imigrantes ilegais) constante do ponto 12.
Na verdade, ninguém afirmou ou admitiu isso, e nenhuma prova foi produzida nesse sentido. Pelo contrário, o que resulta dos depoimentos das testemunhas ouvidas para memória futura é que não chegou a haver qualquer pagamento, o qual apenas teria lugar, via WeChat, após a chegada bem sucedida a Macau.
Crê-se, pois, que, nessa parte, o ponto 12 da matéria provada enferma de erro, havendo que considerar não provada a cobrança de qualquer pagamento, o que importa a convolação do crime qualificado de auxílio previsto e punível pelo artigo 14.°, n.° 2, da Lei 6/2004, pelo qual o arguido vem condenado, para o crime de auxílio simples, previsto e punível pelo artigo 14.°, n.° 1, da Lei 6/2004.
Quanto à questão do crime continuado, é manifesta a sem razão do recorrente, pela circunstância evidente de não se estar perante uma realização plúrima de crimes, conforme exigência do artigo 29.° do Código Penal. Houve apenas uma acção, pelo que, como bem salienta o Ministério Público na sua resposta, não há espaço para a figura do crime continuado, improcedendo este fundamento do recurso.
Todavia, e entrando já na questão da medida da pena, não podemos sufragar o douto acórdão impugnado, no que toca ao número de crimes que considerou preenchidos pela conduta do recorrente. Neste aspecto, os factos relevantes dizem-nos que o recorrente ajudou dois imigrantes a entrar em Macau, à revelia dos postos de migração, na mesma ocasião e por uma única vez.
Em matéria de concurso de infracções rege o artigo 29.°, n.° 1, do Código Penal, que estatui no sentido de que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
É sabido que esta norma adopta o critério teleológico na destrinça entre unidade e pluralidade de infracções, devendo o número destas aferir-se pelo juízo de censurabilidade, sendo cometidas tantas infracções quantas as vezes que a conduta seja susceptível de reprovação. No caso, deparamos com uma única resolução criminosa, que não perde unidade enquanto se prolonga a execução da conduta, sendo que o bem. jurídico protegido pela norma incriminadora atingida é apenas um, o da segurança interna, que reclama o controlo efectivo das entradas na RAEM. O facto de estarem envolvidos na operação dois imigrantes, relevando obviamente ao nível das consequências da conduta e, logicamente, na determinação da pena, em nada altera o que vimos dizendo quanto à unidade infraccional. Além disso, não estão em causa nem foram atingidos pela conduta delituosa do recorrente bens jurídicos pessoais, de forma a poder sustentar-se que à ofensa de cada um desses bens corresponde uma infracção, acontecendo até que os dois imigrantes são os beneficiários da conduta delituosa.
Em conclusão, há apenas um juízo de reprovação a dirigir à conduta do arguido, pelo que não se vê razão para falar de concurso de crimes, muito menos de concurso real.
Na sequência desta linha de raciocínio, e considerando também quanto ficou dito supra acerca da convolação para o tipo de ilícito de auxílio simples à imigração ilegal, haverá, a nosso ver, que alterar a pena a que chegou o douto acórdão.
Afigura-se que, adentro da moldura penal de 2 a 8 anos prevista para a infracção, jogando com os critérios que o tribunal recorrido ponderou, aos quais se impõe acrescentar a acentuada gravidade das consequências da conduta, traduzida na introdução simultânea de dois imigrantes ilegais no Território, será razoável a imposição de uma pena de cerca de 3 anos de prisão, a qual não deverá ser suspensa na sua execução, mesmo que o seu quantum o permita, já que a tanto se opõem razões de prevenção geral de integração.
Assim, e na procedência parcial do recurso, vai neste sentido o meu parecer”; (cfr., fls. 422 a 424).
*
Nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 248 a 249, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como co-autor da prática em concurso real de 2 crimes de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos de prisão.
É de opinião que incorreu o Tribunal a quo no vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser condenado como autor de 1 só crime do art. 14°, n.° 1 – e não art. 14°, n.° 2 – da Lei n.° 6/2004, ou o de “auxílio” (agravado) na forma tentada e continuada, considerando também excessiva a pena aplicada.
Vejamos, começando-se pelo assacado “erro notório”.
–– De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018 e de 07.03.2019, Proc. n.° 93/2019).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018, de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 476/2019).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
No caso dos autos, e como bem nota o Ministério Público na sua Resposta e Parecer, evidente é que nenhum “erro” existe, pois que, como se consignou, nada impede que o Tribunal dê prevalência a determinado meio de prova em detrimento de outro.
Foi o que, no caso, sucedeu: o Colectivo deu crédito aos depoimentos das duas testemunhas, não acolhendo a versão do arguido que nega os factos que lhe são imputados; (cfr., fundamentação exposta a fls. 249 a 249-v).
Dest’arte, e mais não fazendo o recorrente que afrontar a livre convicção do Tribunal, limitando-se a negar os factos, vista está a solução para a questão.
–– No que toca ao “erro de direito”, diz o ora recorrente que face à “redacção do comando legal do art. 14° da Lei n.° 6/2004” e atento o “bem jurídico” com o mesmo tutelado, errada é a sua condenação pela prática como autor da prática em concurso real de 2 crimes de “auxílio”, devendo ser apenas condenado por 1 (só) crime.
Vejamos.
Estatui o dito art. 14° da Lei n.° 6/2004 que:
“1. Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. Se o agente obtiver, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou benefício material, para si ou para terceiro, como recompensa ou pagamento pela prática do crime referido no número anterior, é punido com pena de prisão de 5 a 8 anos”.
E, perante o assim preceituado, que dizer?
Ora, a questão não é “nova”, e tem sido objecto de consideração e decisão deste T.S.I., tendo-se entendido – maioritariamente – que o “número de crimes” se determina “de acordo com o número de imigrantes clandestinos em questão, (auxiliados)”; (cfr., v.g., o Ac. de 07.12.2016, Proc. n.° 871/2016, de 06.07.2017, Proc. n.° 262/2016, de 08.02.2018, Proc. n.° 791/2017, de 30.07.2018, Proc. n.° 679/2018, de 20.09.2018, Proc. n.° 795/2018 e 17.01.2019, Proc. n.° 1160/2018).
Assim, e em causa estando “2 imigrantes clandestinos”, mais não é preciso dizer para se concluir que adequada foi a decisão no sentido de que com a sua conduta, cometeu o arguido, em concurso real, 2 crimes de “auxílio”, tal como condenado foi pelo T.J.B..
–– Resulta da factualidade dada como provada que “acordado” estava que pela sua tarefa em transportar os 2 imigrantes ilegais para Macau iria o arguido receber RMB¥8.000,00.
E, assim, provado estando o “acordo”, mas não tendo o arguido recebido (efectivamente) o referido dinheiro como recompensa pela sua tarefa, evidente se apresenta que “consumado” não está o tipo de crime previsto no n.° 2 do art. 14° da Lei n.° 6/2004, pelo qual foi condenado.
E, então, cabe decidir se deve o arguido ser punido como autor de 2 crimes do art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004 na forma consumada, ou como autor de 2 crimes do mesmo art. 14°, mas do n.° 2, e na “forma tentada”?
Ora, a pena prevista no n.° 1 do art. 14° é a de 2 a 8 anos de prisão.
Por sua vez, no caso de em causa estar o tipo de crime (agravado) do n.° 2 deste mesmo art. 14°, mas na forma tentada, especialmente atenuada é a pena aí prevista de 5 a 8 anos de prisão, pelo que, atento o estatuído no art. 67° do C.P.M., aplicável é então a de 1 a 5 anos e 4 meses de prisão.
Perante as referidas molduras penais, e sendo que o n.° 1 do art. 14° prevê “sanção mais severa”, mostra-se-nos pois que se deve optar por esta que assegura uma protecção mais perfeita do bem tutelado; (cfr., v.g., nesse sentido, a declaração de voto anexa ao Ac. de 18.09.2003, Proc. n.° 158/2003, e, o Ac. do Vdo T.U.I. de 12.02.2014, Proc. n.° 83/2013 e F. Dias in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, pág. 1023 a 1027).
Nesta conformidade, atenta a moldura de 2 a 8 anos de prisão, nenhum motivo havendo para se proceder a uma “atenuação especial da pena”, (cfr., art. 66° do C.P.M.), e atentos os critérios dos art°s 40° e 65° do mesmo código, cremos que adequada é a pena de 3 anos de prisão para cada 1 dos 2 crimes pelo arguido cometidos, e, em cúmulo jurídico, atento o art. 71° do mesmo diploma legal, justo e adequado se nos apresenta uma pena única de 4 anos de prisão, havendo de, nesta exacta medida, alterar as penas parcelares e única pelo T.J.B. aplicadas.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso.
Pelo decaimento pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 19 de Setembro de 2019
(Relator)
José Maria Dias Azedo [Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, e como venho entendendo em situações análogas, considero que cometeu o recorrente 1 só crime de “auxílio” do art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004. Com efeito, atento o “bem jurídico” tutelado com o crime de “auxílio” – cfr., v.g., o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 06.06.2019, Proc. n.° 42/2019 – e ponderada a factualidade dada como provada – em que o recorrente “auxílio” (encaminha) 2 imigrantes ilegais a vir a nado para Macau – entendo que cometeu o arguido um (só) crime de “auxílio”; (cfr., v.g., declaração de voto que anexei aos Acs. de 20.07.2017, Proc. n.° 570/2017, de 31.01.2019, Proc. n.° 1083/2018 e de 28.02.2019, Proc. n.° 33/2019)].
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 730/2019 Pág. 4
Proc. 730/2019 Pág. 3