Proc. nº 254/2019
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 26 de Setembro de 2019
Descritores:
- Factos novos
- Prova
SUMÁRIO:
I - Não pode ser feita no processo contencioso a prova de factos que podia e devia ter sido feita no procedimento de 1º grau.
II - A explicação para tal preclusão está na circunstância de vigorar também no procedimento administrativo o princípio da verdade material que, como corolário, implica que o órgão administrativo deve adequar a sua análise e respectiva decisão aos factos provados no contexto do procedimento administrativo, salvo se forem supervenientes ou supervenientemente conhecidos.
Proc. nº 254/2019
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, casado, com domicílio na XXXXXX, Coloane, em Macau, ---
Interpôs no Tribunal Administrativo (Proc. nº 1794/17-ADM TSI recurso contencioso ---
Do despacho do Senhor Presidente do Instituto Habitação da RAEM, datado de 12 de Outubro de 2016, que declarou a rescisão do contrato de arrendamento de habitação social sita na morada acima indicada e a restituição de abonos recebidos.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou o recurso contencioso improcedente.
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É contra essa decisão que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações A formula as seguintes conclusões:
“I. O Recorrente apresentou ao Instituto de Habitação um documento particular onde se declaram dívidas.
II. O Recorrente requereu a produção de prova testemunhal para prova da celebração do contrato de mútuo decorrente das dívidas contraídas.
III. O despacho sobre a produção de prova e a sentença que julgou não provado as dívidas e seus efeitos é contraditória.
IV. Na falta de impugnação ou arguição de falsidade de um documento particular pela parte a quem o documento é apresentado, deve este ser considerado verdadeiro e fazer prova plena quanto às declarações atribuídas aos autores.
V. O mútuo sobre qual as declarações versam, deverá ser considerado provado na medida que em este é um facto que desfavorece o Recorrente.
VI. Estando o Recorrente onerado com uma obrigação que se traduz num passivo do seu património líquido, esta deverá ser tomada em consideração no cálculo final a efectuar pela Entidade Recorrida.
Termos em que deve a sentença recorrida e proferida nestes autos de fls. 72 a 79, ser revogada na parte relativa ao reconhecimento dos efeitos do mútuo na esfera jurídica do Recorrente, e ser substituída por outra que julgue procedente os fundamentos invocados, com o que se fará JUSTIÇA.”
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Na resposta ao recurso, a entidade recorrida formulou as seguintes conclusões:
“1. A decisão recorrida deve ser mantida, uma vez que, tendo sido efectuada a apreciação necessária da factualidade relevante nos autos, não se verificou nenhum erro nos pressupostos de facto.
2. Em primeiro lugar, convém salientar que, no momento da tomada da decisão pela entidade recorrida, não há nos autos nenhum facto ou prova da existência de qualquer dívida do recorrente ou seu agregado familiar. Foi só mais tarde que o recorrente apresentou um documento particular, ou seja, o “recibo de empréstimo”, o que não podia, manifestamente, influenciar de forma alguma a decisão já feita pela entidade recorrida.
3. Acresce que, a assinatura constante do referido “recibo” ser ou não autêntica não afecta o juízo da entidade recorrida ou do Tribunal a quo sobre a força probatória desse documento.
4. O aludido “recibo” é um documento particular, cujo conteúdo não tem força probatória plena, pelo que não tem nada de errado a decisão da entidade recorrida de não o admitir e, como resultado, não dar como provada a existência da dívida alegada pelo recorrente.
5. Por outro lado, embora o Tribunal a quo não tenha ouvido a(s) testemunha(s) apresentada(s) pelo recorrente, tal não obstou a que o mesmo desse como assente o factualismo relevante conforme os dados constantes dos autos.
6. Ultimamente, conforme referido pela mulher do recorrente, todas as dívidas deste provieram do jogo. Portanto, mesmo que a dívida descrita no aludido recibo realmente existisse, tratar-se-ia apenas de obrigação natural, ou de obrigação oriunda da usura para jogo, que também é inválida. Seja como for, o empréstimo que o recorrente alega existir não pode ser considerado como débito deduzível no cômputo do património líquido do seu agregado familiar. Pelo que não faz nenhum sentido para o caso em apreço.
7. Concluindo, por o “recibo de empréstimo” que o recorrente tem vindo a sublinhar só ter sido apresentado após a tomada da decisão e não dispor de força probatória plena, este não foi admitido pela entidade recorrida; acresce que, tendo em conta a natureza da alegada dívida, a não consideração desta não tem nada de errado; razão pela qual, o Tribunal a quo entende que o acto recorrido deve ser mantido pela inexistência de erro nos pressupostos de facto.
Face ao que atrás se expendeu, pede que se negue provimento ao recurso em causa e se mantenha a sentença a quo, assim se fazendo JUSTIÇA!”
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“No âmbito do recurso contencioso de anulação n.º 1794117-ADM interposto no Tribunal Administrativo, em que era impugnado o despacho de 12 de Outubro de 2016, da autoria do Exm.º Presidente do Instituto da Habitação, foi proferida, em 14 de Novembro de 2018, a sentença de fls. 72 e seguintes, que negou provimento ao recurso.
É desta sentença que vem interposto o presente recurso jurisdicional, restrito à questão da força probatória do documento particular inserto a fls. 29 (doc. n.º 9) e também reproduzido no processo instrutor.
O tribunal apreciou livremente o documento, recusando-lhe valor probatório pleno.
O recorrente entende, em essência, que, estando em causa um documento por si firmado, que não foi impugnado e que é contrário aos seus interesses, haveria de lhe ser conferida prova plena, nos termos do artigo 370.º, n.º 2, do Código Civil.
Assim seria, cremos, se, na verdade, o conteúdo do documento fosse contrário aos interesses do declarante, o recorrente. Só que, na relação material controvertida de que aqui se cuida, os factos insertos na declaração revelam-se favoráveis ao interesse do declarante, pois a declaração confessória de dívida implica a redução, a favor das suas pretensões, do cômputo do seu património líquido na data que releva para o cálculo e para o acto de rescisão proferido pela Administração. De modo diferente se passariam as coisas se estivesse em causa um diferendo entre mutuante e mutuário quanto ao alcance da referida declaração. Neste caso, os factos compreendidos na declaração de dívida do mutuário, porque contrários aos interesses deste, considerar-se-iam provados.
Como se vê, e salvo melhor juízo, a sentença não incorreu em erro ao valorar livremente a força probatória do documento em análise.
Por outro lado, e quanto à circunstância de, a seu tempo, não ter sido admitida prova testemunhal que poderia dissipar dúvidas sobre a verdade dos factos narrados no documento, trata-se de um passo processual que foi objecto de despacho judicial, que se firmou em julgado, e cujo acerto ou desacerto não pode agora ser conhecido em sede de recurso da sentença.
Ante o exposto, e na improcedência dos fundamentos do recurso, deve ser-lhe negado provimento.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença impugnada deu por assente a seguinte factualidade (por nós numerada):
“1 - Em 2 de Julho de 2013, o recorrente apresentou junto do IH o boletim de candidatura para habitação social n.º XXXXXX. Segundo o boletim, o agregado familiar é composto por dois elementos, ou seja, o próprio recorrente e a sua mulher, e o total do património líquido por ele declarado foi de 20.000,00 patacas. O referido boletim foi posteriormente incluído na lista geral da candidatura (vd. fls. 6 a 8v do processo administrativo).
2 - Em 16 de Março de 2015, o recorrente entregou junto do IH o boletim de candidatura para o plano provisório de atribuição de abono de residência a agregados familiares da lista de candidatos a habitação social n.º XXXXXX. O Chefe do Departamento de Habitação Pública por despacho de 25 de Março de 2015 concordou com a atribuição mensal ao recorrente do abono de residência no valor de 1.650,00 patacas. A referida decisão foi mais tarde comunicada ao recorrente mediante ofício do IH (fls. 14 a 16v do processo administrativo)
3 - Em 22 de Abril de 2015, o total do património líquido do agregado familiar do recorrente foi de 367.547,44 patacas (fls. 28 do processo administrativo).
4 - Em 23 de Abril de 2015, o IH por ofício n.º 1504230014/DHS notificou o recorrente da sua selecção para o arrendamento de habitação social e solicitou-lhe a apresentação de dados e informações para a verificação da qualidade de candidatura do seu agregado familiar (fls. 17 do processo administrativo).
5 - Em 20 de Maio de 2015, o recorrente e a mulher B apresentaram ao IH a «declaração para confirmação dos dados, rendimento e património líquido dos elementos do agregado familiar», na qual declaram ter 20.000,00 patacas como o total do património líquido do seu agregado familiar (fls. 18 e v do processo administrativo).
6 - Em 18 de Julho de 2015, o recorrente celebrou com o IH o contrato de arrendamento da fracção habitacional social de Seac Pai Van sita no XXXXXX (fls. 22 a 23v do processo administrativo).
7 - Em 20 de Julho de 2016, o chefe da Divisão de Assuntos Jurídicos do IH por despacho decidiu realizar audiência escrita do recorrente por o total do património líquido do seu agregado familiar no acto da candidatura exceder o limite máximo legalmente estabelecido para o agregado familiar composto por dois elementos. No mesmo dia, por ofício n.º 1607190145/DAJ o recorrente foi notificado para apresentar justificação escrita e todas as provas (fls. 35 a 37v do processo administrativo).
8 - Em 5 de Agosto de 2016, o recorrente e a mulher B apresentaram respectivamente justificações escritas junto do IH (fls. 38 a 39 do processo administrativo).
9 - Em 12 de Outubro de 2016, a entidade recorrida por despacho de “concordo” exarado na Proposta n.º 0814/DAJ/2016 decidiu, por as declarações prestadas pelo recorrente no acto da candidatura não corresponderem aos pressupostos do arrendamento, rescindir o contrato de arrendamento de habitação social celebrado entre o IH e o recorrente nos termos do artigo 19.º, n.º 2, al. 1) e artigo 22.º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 25/2009 «Atribuição, Arrendamento e Administração de Habitação Social», e exigir-lhe a restituição do abono de residência recebido no período compreendido entre Maio e Julho de 2015, no total de 4.950,00 patacas, ao abrigo do disposto no artigo 8.º, n.º 1, al. 1) e n.º 3 do RA n.º 23/2008. A supramencionada decisão foi seguidamente comunicada ao recorrente no dia 17 de Outubro do mesmo mediante o ofício n.º 1610130016/DAJ do IH (fls. 52 a 58 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
10 - Em 27 de Outubro de 2016, o recorrente apresentou junto da entidade recorrida reclamação e os documentos pertinentes (fls. 59 a 60v do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
11 - Em 19 de Janeiro de 2017, a mandatária judicial constituída pelo recorrente interpôs para este Tribunal o presente recurso contencioso da decisão atrás referida.”
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III – O Direito
1 - Na petição inicial do recurso contencioso o recorrente suscitara a caducidade do direito de rescindir o contrato de arrendamento de habitação social celebrado entre si e o Instituto de Habitação, bem como o erro nos pressupostos de facto, concernente ao errado cálculo do valor do seu património.
A sentença concluiu que o direito de rescisão não estava caducado e que o acto administrativo não se tinha fundado em pressupostos de facto errados. Além disso, negou que o art. 19º, nº3, al. 2), do R.A. nº 25/2009 tivesse sido violado.
No presente recurso jurisdicional, o recorrente insurge-se contra a sentença na parte unicamente em que não reconheceu as dívidas contraídas com origem num contrato de mútuo.
Para si, deveria a sentença ter considerado a prova por si apresentada resultante de um documento por si assinado, em que reconheceu uma dívida de mútuo no valor total de 80.000,00 patacas, do qual já tinha pago o valor de 20.000,00 em 30/04/2015. Afirma que se tivesse sido relevado tal documento, a sentença constataria que em 22 de Abril de 2015 o seu património real era de MOP$ 287.547,44, inferior àquele que foi fixado pelo Despacho do Chefe do Executivo nº 179/2012, alterado pelo Despacho nº 1/2015 (MOP$ 312.400,00).
O recorrente acrescenta que deveria ter ficado provada a referida dívida, face à natureza do mútuo, que não está sujeito a forma especial. Por isso, por falta de impugnação da veracidade do referido documento particular, deveria ter ficado provada existência da dívida, com o consequente abaixamento do valor real do seu património.
Apreciemos.
O acto deu por assente que o valor do património líquido total do recorrente, em 22/04/2015, era de MOP$ 367.547,44, superior, portanto, ao limite máximo legalmente previsto, que era de MOP$ 312.400,00 (cfr. Despacho do Chefe do Executivo nº 1/2015).
Deveria a sentença ter tomado em consideração o documento de reconhecimento de dívida de mútuo, no valor de MOP$ 80.000,00, do qual apenas pagara MOP$ 20.000,00?
Cremos que não.
Em primeiro lugar, trata-se de um elemento inconsistente e irrelevante do ponto de vista substantivo. Com efeito, além de não identificar o credor (alegado mutuante), nem sequer está datado, aparentando ter todos os ingredientes de um elemento forjado.
Em segundo lugar, esses dados não foram levados ao procedimento administrativo durante a instrução, nem sequer no âmbito do direito de audiência. Ou seja, em momento algum antes da prática do acto essa questão (esse facto) foi invocada pelo ora recorrente.
O referido documento, alegadamente titulador da dívida, só foi levado ao procedimento já em sede de procedimento de segundo grau (reclamação apresentada em 27/10/2016), não tendo, então, merecido acolhimento pelo facto de ser um mero documento particular, sem assinaturas reconhecidas e sem conter sequer os dados do credor, nem a data da elaboração (fls. 61-64 do p.a.1).
Ora, se esse elemento é verdadeiro e já existia, deveria ter sido junto antes da decisão administrativa de 1º grau.
A circunstância de a entidade não ter acolhido a tese defendida na reclamação administrativa não torna viciado o acto impugnado. O acto administrativo sindicado nestes autos era anterior. Portanto, se o recorrente apenas obteve aquele elemento (documento) já depois do acto administrativo aqui objecto do recurso contencioso, então deveria ter impugnado contenciosamente o acto que decidiu a reclamação quanto a essa parte.
Resta, pois, concluir que a discussão que o recorrente traz para o processo a este respeito é tardia e inócua.
Na verdade, não pode ser feita no processo contencioso a prova de factos que podia e devia ter sido feita no procedimento (neste sentido, Ac. do TUI, de 2/06/2004, Proc. nº 17/2003 e de 31/07/2013, Proc. nº 39/2013; do TSI, de 25/10/2012, Proc. nº 23/2012). A explicação para esta preclusão está na circunstância de vigorar também no procedimento administrativo o princípio da verdade material que, como corolário, implica que o órgão administrativo deve adequar a sua análise e respectiva decisão aos factos provados no contexto do procedimento administrativo, salvo se forem supervenientes ou supervenientemente conhecidos.
Sendo assim, andou bem a sentença impugnada em dizer que se não verificava o vício imputado ao acto de erro sobre os pressupostos de facto.
E porque essa era a única questão a decidir, somos a concluir que o recurso não pode ser provido.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 6 UCs.
T.S.I., 26 de Setembro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
1 De qualquer maneira, não é essa decisão que constitui o objecto do recurso contencioso.
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254/2019 7