Processo n.º 898/2019 Data do acórdão: 2019-10-3
Assuntos:
– tráfico de estupefacientes
– alteração substancial dos factos acusados
– art.o 1.o, n.o 1, alínea f), do Código de Processo Penal
– comunicação do art.o 340.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– nulidade do acórdão condenatório
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, segundo a acusação, há dois grupos de traficantes em co-autoria pertencendo cada um dos dois arguidos nos respectivos grupos, enquanto de acordo com o facto dado por provado no acórdão recorrido, só há um grupo de traficantes em co-autoria, razões por que o 2.o arguido ora recorrido, inicialmente acusado da prática, em co-autoria, de um crime tentado de tráfico de estupefacientes, acabou por ser condenado, no entendimento do tribunal sentenciador, como co-autor do 1.o arguido na transportação, já consumada, da droga para Macau.
2. Tratou-se, aí, efectivamente, de uma “alteração substancial dos factos” descritos na acusação, com efeitos da agravação da moldura penal aplicável ao 2.o arguido (cfr. o art.o 1.o, n.o 1, alínea f), do Código de Processo Penal), nomeadamente porque passou a ser imputada a este a prática, em co-autoria, de um crime consumado de tráfico de estupefacientes.
3. Como dos elementos coligidos dos autos, resulta nítido que o tribunal sentenciador recorrido nunca chegou a comunicar previamente quais os factos acusados é que seriam objecto de alteração e quais os termos concretos dessa eventual alteração, sendo certo que o art.o 340.o, n.o 1, do Código de Processo Penal fala da comunicação dos factos em si, é de declarar nulo o acórdão condenatório recorrido, devendo o mesmo tribunal repetir o julgamento da causa.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 898/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (2.o arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 391 a 401v do Processo Comum Colectivo n.° CR2-19-0181-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 2.o arguido A ficou condenado como co-autor material, na forma consumada (e não na forma tentada, nos termos inicialmente acusados), de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos art.os 8.o, n.o 1, e 21.o, n.o 1, alínea 1), subalínea 7, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), em doze anos e seis meses de prisão, com pena acessória de proibição de entrada em Macau por um período de oito anos, enquanto o 1.o arguido B ficou condenado como co-autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos mesmos preceitos legais, com decidida atenuação especial da pena, em sete anos de prisão, com proibição de entrada em Macau por seis anos.
Inconformado, veio recorrer o 2.o arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), rogando, a título principal, a repetição do julgamento na Primeira Instância, por verificação da causa de nulidade daquela decisão condenatória cominada no art.o 360.o, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP), por verificação da alteração substancial dos factos acusados sem ter sido cumprido o art.o 340.o do mesmo Código.
Respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 503 a 509, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 531 a 532v, pugnando pelo provimento do recurso na parte respeitante à alteração substancial dos factos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Na acusação pública deduzida a fls. 189 a 192 dos autos, o 1.o arguido B foi acusado da prática de um crime consumado de tráfico de estupefacientes, em co-autoria material com outros dois indivíduos conhecidos apenas por “C” e “D”, por ter o próprio 1.o arguido, acusadamente, levado consigo substâncias estupefecientes para Macau em 13 de Novembro de 2018, previamente entregues a ele por aqueles dois (cfr. os factos acusados nomeadamente n.os 1, 2, 4, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 18 e 19), ao passo que o 2.o arguido A foi acusado da prática de um crime tentado de tráfico de estupefacientes, em co-autoria material com um indivíduo conhecido apenas por “E”, por ter o próprio 2.o arguido, acusadamente, ido tentar receber, sob instruções dadas por esse indivíduo “E”, a droga (trazida pelo 1.o arguido para Macau) com o fim de a transportar depois para Hong Kong (cfr. os factos acusados sobretudo n.os 9, 10, 15, 16, 17 e 20).
2. Por despacho proferido a fl. 227 pelo M.mo Juiz titular do presente processo penal em primeira instância, foi determinada a notificação do 2.o arguido para este poder adoptar medida tida por adequada quanto à eventual convolação do crime tentado acusado para um crime consumado de tráfico de estupefacientes, se os factos acusados a ele a título de co-autoria viessem a ser provados.
3. Na audiência de julgamento ulteriormente realizada, com teor da respectiva acta lavrada a fls. 388 a 390v, a M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo autor do acórdão ora recorrido comunicou à Acusação e à Defesa que se o Tribunal irá julgar que o 2.o arguido foi na forma consumada que praticou o crime por que vinha acusado, os factos acusados irão possivelmente sofrer alteração correspondente, pelo que o Tribunal deixa a Acusação e a Defesa a emitirem opinião sobre isso – cfr. o teor dessa comunicação no último parágrafo da página 5 da acta e no primeiro parágrafo da página seguinte, a fl. 390 a 390v.
4. Sobre essa comunicação, o Ministério Público e a Ilustre Pessoa Defensora do 1.o arguido disseram que não tinham nada a opinar, enquanto a Ilustre Pessoa Defensora do 2.o arguido disse que discordava da alteração da qualificação jurídica em causa, mas prescindia do prazo adicional para defesa – cfr. o teor dos 2.o e 3.o parágrafos da página 6 da mesma acta, a fl. 390v.
5. Afinal, foi proferido o acórdão condenatório ora recorrido pelo 2.o arguido, no qual este ficou condenado como co-autor material de um crime consumado de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos art.os 8.o, n.o 1, e 21.o, n.o 1, alínea 1, subalínea 7, da Lei n.o 17/2009, na redacção dada pela Lei n.o 10/2016 (em vez de co-autor material de um crime tentado de tráfico de estupefacientes).
6. Na fundamentação desse acórdão, descreveu-se (em chinês) como provado (cfr. o facto provado 19) que o 1.o arguido e o 2.o arguido, de modo livre, voluntário e consciente, em conluio com outrem, cooperando-se entre eles, de comum acordo e com divisão de tarefas, transportaram, sem autorização, as drogas em causa para Macau.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A argumentação tecida a título principal pelo 2.o arguido na sua motivação de recurso tem a ver com a questão de alegada autêntica alteração substancial dos factos acusados sem cumprimento, pelo Tribunal recorrido, do disposto no art.o 340.o do CPP.
No caso, o problema está no facto provado 19, que alterou o cenário fáctico acusado aos dois arguidos do processo.
Segundo a acusação, há dois grupos de traficantes em co-autoria, enquanto de acordo com esse facto provado 19, só há um grupo de traficantes em co-autoria, razões por que o 2.o arguido acabou por ser condenado, no entendimento do Tribunal recorrido, como co-autor do 1.o arguido na transportação, já consumada, da droga para Macau.
Trata-se, aí, efectivamente, de uma “alteração substancial dos factos” descritos na acusação, com efeitos da agravação da moldura penal aplicável ao 2.o arguido (cfr. o art.o 1.o, n.o 1, alínea f), do CPP).
E dos elementos coligidos dos autos e já acima referidos na parte II do presente acórdão de recurso, resulta nítido que o Tribunal recorrido nunca chegou a comunicar previamente quais os factos acusados é que seriam objecto de alteração e quais os termos concretos dessa eventual alteração, sendo certo que o termo genérico “alteração correspondente” então empregue não satisfaz a exigência legal do art.o 340.o, n.o 1, do CPP, pois este preceito fala da comunicação dos factos em si (veja-se a seguinte redacção desta norma: “Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos não descritos (…) na acusação (…), e que importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento comunica-os ao Ministério Público, valendo tal comunicação como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, os quais não podem ser tomados em conta para o efeito de condenação no julgamento em curso” (com sublinhado ora posto)).
E nem se diga que o facto de a Ilustre Pessoa Defensora do 2.o arguido ter dito na audiência de julgamento que prescindia do prazo adicional para defesa em relação àquela comunicação judicial (genérica) da “alteração correspondente” dos factos acusados já terá feito precludir o direito de o 2.o arguido vir levantar a questão da nulidade da decisão condenatória por condenação em factos não descritos na acusação sem prévio cumprimento do art.o 340.o do CPP. É que os termos genéricos pelos quais foi feita a comunicação judicial acima referida na audiência de julgamento, devido precisamente ao carácter genérico e abstracto dos próprios termos, só podem valer como comunicação prévia da possibilidade de qualficação jurídico-penal dos factos acusados, pelo que a postura ou reacção inclusivamente do 2.o arguido na audiência sobre isso não pode ser interpretada como equivalente à postura a ser assumida sob a égide dos n.os 2 e 3 do art.o 340.o do CPP se e só se perante uma comunicação judicial a ser feita nos termos próprios exigidos pelo n.o 1 deste artigo.
Em suma, no caso, é de concluir que na Primeira Instância, só foi feita materialmente a comunicação judicial prévia da possibilidade de condenação do 2.o arguido como co-autor de um crime consumado de tráfico de estupefacientes, e como tal nunca foi cumprida cabalmente a exigência legal do n.o 1 do art.o 340.o do CPP, pelo que procede a questão principal do recurso do 2.o arguido, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
É, pois, de declarar nulo o acórdão condenatório ora recorrido, devendo o mesmo Tribunal recorrido repetir o julgamento da causa relativamente aos dois arguidos (também relativamente ao 1.o arguido, só para evitar a eventual contradição de factos), não podendo, porém, as penas já aplicadas ao 1.o arguido no acórdão ora recorrido ser agravadas no julgamento a repetir (uma vez que o 1.o arguido, que não recorreu desse acórdão, não deve ver a sua posição prejudicada pela procedência do presente recurso).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, declarando nulo o acórdão condenatório da Primeira Instância, devendo o mesmo Tribunal a quo repetir o julgamento dos dois arguidos.
Sem custas no presente recurso.
Macau, 3 de Outubro de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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