Processo nº 903/2019 Data: 26.09.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “auxílio”.
Erro notório na apreciação da prova.
Qualificação jurídica (número de crimes).
Agravação.
Tentativa.
Pena.
SUMÁRIO
1. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
Nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
2. Provado estando o “acordo”, mas não tendo o arguido recebido (efectivamente) o dinheiro como recompensa pela sua tarefa, evidente se apresenta que “consumado” não está o tipo de crime de “auxílio” previsto no n.° 2 do art. 14° da Lei n.° 6/2004.
3. Assim, e atenta a moldura penal prevista no art. 14°, n.° 1 para o crime de “auxílio (simples)”, (de 2 a 8 anos de prisão), e a que no n.° 2 cabe ao mesmo crime, mas agravado, e – no caso – na forma tentada, (1 a 5 anos e 4 meses de prisão), deve-se optar pela primeira que prevê sanção mais severa, melhor assegurando a protecção do bem jurídico tutelado.
O relator,
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Processo nº 903/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a final, a ser condenado pela prática como autor material e em concurso real de 2 crimes de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 162 a 167-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu, assacando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “errada aplicação de direito”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser condenado como autor do art. 14°, n.° 1 – e não art. 14°, n.° 2 – da Lei n.° 6/2004, considerando também excessiva a pena aplicada; (cfr., fls. 176 a 185).
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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso merece parcial provimento, admitindo uma alteração da “qualificação jurídico-penal”; (cfr., fls. 187 a 189-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação (cfr. fls.176 a 185 dos autos), o recorrente solicitou a revogação do Acórdão em escrutínio (cfr. fls.162 a 167v dos autos), bem como a redução da pena e a suspensão da execução, invocando os vícios previstos nas alíneas c) e a) do n.º2 do art.400º do CPP, a errada aplicação do preceito no art.14º da Lei n.º6/2004 e circunstâncias da atenuação especial.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações do ilustre Colega na douta Resposta (vide. fls.187 a 189 vº dos autos).
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O recorrente invocou a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação de prova, respectivamente consagrados nas alíneas a) e c) do n.º2 do art.400º do C.P.P., argumentando que o 1º facto provado se refere apenas à promessa de pagamento da recompensa, e na fundamentação de facto e de direito, o Tribunal a quo afirmou o pagamento efectivo da mesma (art.23º da Motivação)
Proclama a jurisprudência autorizada (a título exemplificativo, cfr. Acórdão do TUI no processo n.º12/2014): «Para que se verifique o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é necessário que a matéria de facto provada se apresente insuficiente, incompleta para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária a uma decisão de direito adequada, ou porque impede a decisão de direito ou porque sem ela não é possível chegar-se à conclusão de direito encontrada.»
E encontra consolidada no actual ordenamento jurídico de Macau a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, arestos do Venerando TUI nos Processos n.º17/2000, n.º16/2003, n.º46/2008, n.º22/2009, n.º52/2010, n.º29/2013 e n.º4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Assevera reiteradamente o Venerando TUI (vide. a título exemplificativo, o Acórdão no TUI no Processo n.º52/2010): A contradição insanável da fundamentação é um vício intrínseco da decisão, que consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada.
À luz das sensatas jurisprudências supra aludidas, parece-nos que o argumento do recorrente implica uma contradição insanável da fundamentação, em vez de germinar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou o erro notório na apreciação de prova. Pois bem, alegou o recorrente apenas a manifesta desconformidade entre o 1º facto provado e a afirmação (do Tribunal a quo) de ele já receber a recompensa (案發時嫌犯是在已收取涉嫌人報酬下而駕船 – cfr. pag.8 do Acórdão). E o que efectivamente acontece in casu é que a menção de “已收取報酬” é incompatível com o 1º facto provado que se refere apenas a promessa da recompensa.
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E entendemos, com toda a tranquilidade, ser prudente jurisprudência, segundo a qual a comprovação da circunstância de o arguido praticar o crime “para obter” a vantagem não dá para activar a aplicação do n.º2 do art.14º da Lei n.º6/2004. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º516/2017)
Em esteira, afigura-se-nos que o recorrente devia ser condenado na prática, em autoria material e forma consumada, dois crimes de auxílio simples p.p. pelo n.º1 do art.14º da Lei n.º6/2004, por in casu não haver factos provados da obtenção da vantagem patrimonial. O que significa que o Acórdão recorrido padece do erro de subsunção.
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Note-se que no actual ordenamento jurídico de Macau, a atenuação especial da pena é de aplicação excepcional, não sendo qualquer das circunstâncias previstas no n.°2 do art.66° do C.P. de Macau ou semelhantes logo capaz de accionar o regime de atenuação especial da pena, antes tem de apreciar todo o quadro da actuação do agente para se ponderar a atenuação especial e encontrar a medida concreta da pena.
Pois, «Para poder beneficiar da atenuação especial da pena prevista no art.66.° do Código Penal, é necessário que se verifica uma situação de diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, em resultado da existência de circunstâncias com essa virtualidade.» (A título exemplificativo, cfr. Acórdão do TUI no Processo n.°20/2004)
Não deve perder da vista que para efeitos de atenuação especial da pena, o arrependimento só é relevante se se traduzir em actos concretos demonstrativos de tal sentimento (cfr. Acórdão do TU1 no Processo n.º34/2010), e a confissão espontânea, tanto integral como parcial, é irrelevante para a descoberta da verdade dos factos, quando o arguido tiver sido acompanhado em flagrante delito ou já vigilado, ou ainda toda a actuação delituosa tem sido gravada por sistema de vigilância visual (cfr. arestos do TS1 nos Processos n.°203/2011, n.°530/2011, n.°416/2014, n.°789/2014, n.°49/2016 e n.°436/2016).
Em esteira, e considerando que o recorrente foi acompanhado em flagrante delito, acompanhamos a “上訴人非自首,而是在被發現協助他人偷渡時,在事實面前無可辯駁的情況下才承認犯罪事實,這種在事發後所表現出的認罪態度,純綷表示後悔及在本案中所能起到的減刑的作用僅屬一般,未能滿足到《刑法典》第66條第2款c項所規定可相當減輕其罪過的情節。”
Pese embora o sobredito erro de subsunção vá determinar decerto a procedência do presente recurso, todavia tal procedência não deriva da inocência do recorrente nem conduz à extinção da responsabilidade criminal dele. Sendo assim, e para efeitos da graduação da pena de acordo com o n.º1 do art.14º da Lei n.º6/2004, importa apontar que as circunstâncias arrogada pelo recorrente não tem virtude de atenuação especial.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência parcial do recurso em apreço”; (cfr., fls. 198 a 200).
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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 163 a 163-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar, cfr., fls. 164).
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou pela prática como autor material e em concurso real de 2 crimes de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
Afirma que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “errada aplicação de direito”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser condenado como autor do art. 14°, n.° 1 – e não art. 14°, n.° 2 – da Lei n.° 6/2004, considerando também excessiva a pena aplicada.
–– Vejamos, começando-se pela assacada “insuficiência”.
Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 06.09.2018, Proc. n.° 677/2018, de 10.01.2019, Proc. n.° 859/2018 e de 20.06.2019, Proc. n.° 499/2019, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).
Como decidiu o T.R. de Coimbra:
“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).
E, como igualmente também considerou o T.R. de Évora:
“A insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso”; (cfr., o Ac. de 26.09.2017, Proc. n.° 447/13).
“Só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).
“O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na falta de elementos fácticos que permitam a integração na previsão típica criminal, seja por falência de matéria integrante do seu tipo objectivo ou do subjectivo ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, considerada no caso. Em termos sintéticos, este vício ocorre quando, com a matéria de facto dada como assente na sentença, aquela condenação não poderia ter lugar ou, então, não poderia ter lugar naqueles termos”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 647/14).
Aliás, como no recente Ac. da Rel. de Coimbra de 12.09.2018, Proc. n.° 28/16, se decidiu, inexiste insuficiência da matéria de facto provada para a decisão “quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento”, sendo, como se verá, este o caso dos autos.
No caso, e como se deixou relatado, o Tribunal a quo emitiu pronúncia sobre toda a “matéria do processo”, dando como provada toda a matéria ínsita na acusação, nenhum facto ficando por provar.
E, (não tendo sequer havido contestação), tendo o Tribunal apurado, adequadamente, situação sócio-económica do arguido, e não havendo outra matéria (relevante) a apreciar, evidente é que inexiste qualquer “insuficiência”.
–– Continuemos, passando-se agora para o alegado “erro”.
De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018 e de 07.03.2019, Proc. n.° 93/2019).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018, de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 476/2019).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
E, também aqui claro é que nenhum “erro”, muito menos notório existe.
Basta ler-se a fundamentação pelo Tribunal exposta para se ver que a sua convicção assenta em elementos probatórios válidos e lógica e correctamente apreciados, impondo a decisão proferida.
Avancemos.
Resulta da factualidade dada como provada que “acordado” estava que pela sua tarefa em transportar os 2 imigrantes ilegais para Macau iria o arguido, ora recorrente, receber RMB¥100,00 e um bilhete de avião.
E, assim, provado estando o “acordo”, e igualmente provado estando que não chegou o arguido a receber (efectivamente) a referida “recompensa” pela sua tarefa, evidente se apresenta que “consumado” não está o tipo de crime previsto no n.° 2 do art. 14° da Lei n.° 6/2004, pelo qual foi condenada; (neste sentido, cfr., v.g., o recente Ac. de 19.09.2019, Proc. n.° 730/2019).
E, então, cabe decidir se deve o arguido ser punido como autor de 1 crime do art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004 na forma consumada, ou como autor de 1 crime do mesmo art. 14°, mas do n.° 2, e na “forma tentada”?
Ora, a pena prevista no n.° 1 do art. 14° é a de 2 a 8 anos de prisão.
Por sua vez, no caso de em causa estar o tipo de crime (agravado) do n.° 2 deste mesmo art. 14°, mas, como se viu, na forma tentada, especialmente atenuada é a pena aí prevista de 5 a 8 anos de prisão, pelo que, atento o estatuído no art. 67° do C.P.M., aplicável é então a de 1 a 5 anos e 4 meses de prisão.
Perante as referidas molduras penais, e sendo que o n.° 1 do art. 14° prevê “sanção mais severa”, mostra-se-nos pois que se deve optar por esta que assegura uma protecção mais perfeita do bem tutelado; (cfr., v.g., nesse sentido, a declaração de voto anexa ao Ac. deste T.S.I. de 18.09.2003, Proc. n.° 158/2003, e o Ac. do Vdo T.U.I. de 12.02.2014, Proc. n.° 83/2013 e F. Dias in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, pág. 1023 a 1027).
Nesta conformidade, atenta a moldura de 2 a 8 anos de prisão, nenhum motivo havendo para se proceder a uma “atenuação especial da pena”, (cfr., art. 66° do C.P.M.), e atentos os critérios dos art°s 40° e 65° do mesmo código, cremos que adequada é a pena de 3 anos de prisão para cada 1 dos 2 crimes pelo arguido cometidos, e, em cúmulo jurídico, atento o art. 71° do mesmo diploma legal, justo e adequado se nos apresenta uma pena única de 4 anos de prisão, havendo de, nesta exacta medida, alterar as penas parcelares e única pelo T.J.B. aplicadas.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso.
Pelo decaimento pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 26 de Setembro de 2019
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José Maria Dias Azedo
[Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, e como venho entendendo em situações análogas, considero que cometeu o recorrente 1 só crime de “auxílio” do art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004. Com efeito, atento o “bem jurídico” tutelado com o crime de “auxílio” – cfr., v.g., o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 06.06.2019, Proc. n.° 42/2019 – e ponderada a factualidade dada como provada – em que o recorrente “auxílio” (encaminha) 2 imigrantes ilegais a vir a nado para Macau – entendo que cometeu o arguido um (só) crime de “auxílio”; (cfr., v.g., declaração de voto que anexei aos Acs. de 20.07.2017, Proc. n.° 570/2017, de 31.01.2019, Proc. n.° 1083/2018 e de 28.02.2019, Proc. n.° 33/2019)].
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Chan Kuong Seng
_________________________
Tam Hio Wa
Proc. 903/2019 Pág. 24
Proc. 903/2019 Pág. 25