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Processo n.º 639/2018
(Autos de recurso cível)

Data: 26/Setembro/2019

Descritores: Negócio usurário
Modificação de negócio jurídico segundo juízos de equidade
Deficiência na resposta ao quesito

SUMÁRIO
Dispõe o n.º 2 do artigo 276.º Código Civil que uma vez requerida pelo lesado a anulação do negócio usurário nos termos permitidos pelo artigo 275.º, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do negócio segundo juízos de equidade, mediante a formulação de pedido reconvencional, ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 218.º do CPC.
Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Reapreciada e valorada a prova de acordo com o princípio da livre convicção, se não conseguir chegar à conclusão de que houve erro manifesto na apreciação da prova, o pedido de impugnação da matéria de facto terá de improceder.
Dispõe o artigo 567.º do Código de Processo Civil que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 5.º”.
Uma vez detectada deficiência na resposta a determinado quesito, cujo resultado poderá conduzir a interpretações jurídicas diferentes, no uso da faculdade concedida pelo n.º 4 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, há-de determinar a repetição do julgamento sobre determinado(s) ponto(s) da matéria quesitada e, feito o julgamento, que se aprecie de novo o aspecto jurídico da causa.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo n.º 639/2018
(Autos de recurso cível)

Data: 26/Setembro/2019

Recurso do despacho interlocutório e Recurso da decisão final
Recorrente:
- A (Ré)

Recorrido:
- B (Autor)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Inconformada com o despacho que não admitiu a reconvenção por si deduzida, recorreu a Ré A jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso da decisão plasmada a fls. 202 dos autos, que não admitiu a reconvenção deduzida pela Recorrente.
II. A Recorrente não se conforma com a Decisão Recorrida, que não tem suporte legal.
III. A Decisão Recorrida, não imputa à reconvenção da Recorrente a falta de verificação de qualquer um dos requisitos formais cumulativos, nem a falta de um dos requisitos de natureza objectiva, alternativos, plasmados no artigo 218º, n.º 2 do CPC, dos quais depende a admissibilidade legal de tal articulado.
IV. A Decisão Recorrida violou o disposto no artigo 218º, n.º 2, alínea a) do CPC – que determina a admissibilidade legal do referido articulado -, bem como violou o disposto no n.º 2 do artigo 276º do CC – norma de direito substantivo que confere à Recorrente a faculdade de deduzir o pedido reconvencional em apreço.
V. Veio o A., com fundamento no artigo 275º do CC, pedir a final da sua petição inicial, a anulação dos dois contratos de compra e venda sub judice que celebrou com a Recorrente.
VI. Conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 276º do CC, em alternativa ao Pedido de Anulação, poderia o A. ter formulado um pedido de modificação dos contratos de compra e venda supra referidos segundo juízos de equidade, caso em que o Tribunal a quo estaria autorizado, atento o disposto na alínea a) do artigo 3º do CC, a “resolver segundo a equidade”.
VII. Pedida pelo A. a anulação dos ditos contratos com o fundamento legal supra referido, confere o n.º 2 do artigo 276º do CC à R. a faculdade de formular pedido idêntico ao pedido alternativo – de modificação dos ditos contratos – que o legislador colocou ao dispor do A. no n.º 1 do mesmo artigo.
VIII. O efeito jurídico que a aqui Recorrente pretende obter com o pedido (reconvencional) sub judice não se reconduz ao do pedido típico formulado em sede de defesa por impugnação ou por excepção, de mera improcedência da acção.
IX. O efeito jurídico que o pedido (reconvencional) sub judice pretende obter é o da modificação dos ditos contratos segundo juízos de equidade, caso se verifique a condição de a pretensão do A. vir a proceder – no que não se concede e apenas por cautela de patrocínio se admite -, motivo pelo qual foi o referido pedido reconvencional deduzido a título subsidiário.
X. Não há óbice legal à dedução de um pedido reconvencional subsidiariamente à improcedência do pedido típico do R. – de improcedência dos pedidos formulados pelo A. – e, assim, condicionalmente à procedência do pedido do A.
XI. Conforme dispõe a segunda parte do número 1 do artigo 564º do CPC, a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir.
XII. Se a R. se tivesse limitado a deduzir o pedido típico de improcedência de acção, e consequente absolvição do pedido, estaria vedado ao tribunal a quo, por força do artigo 3º, alínea a), do CC e do artigo 564º, n.º 1, 2ª parte, do CPC, modificar os contratos (alegadamente) anuláveis segundo juízos de equidade, porquanto não pode julgar em objecto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade nos termos do disposto na alínea e), do n.º 1 do artigo 571º do CPC.
XIII. A reconvenção é admissível à luz do disposto no artigo 218º, n.º 2, alínea a), do CPC, porquanto o pedido reconvencional (subsidiário) emerge da mesma causa de pedir do Autor – da outorga de dois negócios jurídicos (alegadamente) usurários (no que não se concede e apenas subsidiariamente se admite) – almejando, porém, efeito jurídico distinto – a modificação dos ditos contratos – do pretendido pelo Autor – a anulação dos mesmos contratos – resultando expressamente da letra do n.º 2 do artigo 276º do CC o elemento de conexão entre ambos.
XIV. A Decisão Recorrida ao não admitir a reconvenção deduzida pela ora Recorrente violou o disposto nos artigos 218º, n.º 2, alínea a) do CPC e 276º, n.º 2 do CC, pelo que, caso não seja reparada pelo douto Tribunal a quo, como se espera, deve a mesma ser alterada por este Venerando Tribunal, admitindo-se o pedido reconvencional subsidiariamente deduzido pela ora Recorrente.
Termos em que, e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser alterada a Decisão Recorrida e admitida a reconvenção deduzida pela ora Recorrente.”
*
Ao recurso não respondeu o Autor ora recorrido.
*
Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, foi julgada procedente a acção.
Inconformada, interpôs a Ré recurso jurisdicional para este TSI, formulando as seguintes conclusões:
“I. O que resulta dos factos provados é que, depois do falecimento dos seus pais, o Autor geriu a sua vida sem auxílio de terceiros, procedendo à cobrança das rendas das Fracções, das quais, ainda hoje, retira o seu sustento.
II. Mais, foi o Autor quem outorgou, em vida dos pais, as três escrituras públicas através das quais adquiriu as Fracções e, ainda, uma terceira fracção, pelo que estava familiarizado com a solenidade do acto em questão e com os resultados que do mesmo advêm.
III. O Autor tem capacidade intelectual para praticar actos jurídicos como a outorga de procuração a favor de advogado, como aquela que se encontra junta aos autos com a petição inicial – facto notório que dispensa alegação ou prova, nos termos do artigo 434º do CPC Acresce que, conforme o alegado no artigo 58º da contestação apresentada pela Recorrente.
IV. O Recorrido, ainda em vida do pai, declarou o óbito da mãe (cfr. o assento de óbito de fls. 168), facto provado por documento com força probatória plena.
V. Apesar de dotado de um quociente de inteligência médio baixo, o Recorrido tomou decisões e praticou actos jurídicos ao longo da sua vida para os quais demonstrou ter discernimento e iniciativa.
VI. O Tribunal recorrido entende, sem fundamento para tanto, que a vida normal do Recorrido inclui contratos de compra e venda, quando este é o comprador, outorga de procurações forenses, declarações de óbito, cobrança de rendas, gestão de imóveis, mas já não comporta a outorga de contratos de compra e venda, na posição de vendedor.
VII. Não resulta demonstrada, da fundamentação da sentença ora recorrida, a diferença entre a capacidade do Recorrido para praticar uns e a incapacidade para praticar outros.
VIII. Nem resulta demonstrado em que medida é que os negócios ora em crise são mais abstractos e complexos do que os negócios jurídicos identificados nos autos como alguns dos anteriormente celebrados pelo Recorrido, máxime aqueles pelos quais adquiriu as três fracções que o Recorrido adquiriu no passado, que são da mesma natureza, têm idêntico teor e revestem a mesma solenidade, a outorga de escritura pública.
IX. Do baixo quociente de inteligência do Recorrido apenas e só não se pode retirar que se verifica, em relação a este, a inferioridade a que alude o artigo 275º do CC, nem tão-pouco se encontra na jurisprudência ou na doutrina consultadas, qualquer referência ao baixo quociente de inteligência do declarante como fundamento de qualquer uma das situações de inferioridade a que alude o artigo 275º do CC.
X. Sabendo-se, embora, que a enumeração do artigo 275º do CC não é taxativa, não se pode admitir a extensão de qualquer conceito de inferioridade a um quociente de inteligência baixo que não permite perceber conceitos abstractos ou complexos.
XI. Não só porque a compra e venda não é um acto complexo e, menos ainda, abstracto, mas também porque aceitando que o quociente de inteligência dos declarantes é causa de vício da sua vontade, passaria o quociente de inteligência dos contraentes a ser fundamento do exercício de um direito ao arrependimento que o ordenamento não prevê, desprotegendo-se os contraentes e a própria segurança jurídica.
XII. O Tribunal a quo reconduziu-se apenas e só à inferioridade intelectual do Recorrido para concluir pela sua incapacidade para perceber o teor das escrituras, apesar da sua tradução para a língua chinesa, mas não logrou demonstrar que a vontade declarada não era a do Recorrido.
XIII. Ainda que não tenha entendido o sentido da terminologia jurídica constante dos contratos de compra e venda, celebrados por outorga das aludidas escrituras, certo é que o Autor conhece o conceito de compra e venda, acto que já praticou pessoalmente, na modalidade da compra, por outorga das respectivas escrituras públicas, pelo menos, três vezes.
XIV. Pelo que, a inferioridade contida no preceito do artigo 275º CC, não se aplica ao caso do Recorrido.
XV. O Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da norma jurídica em causa, violando, assim o preceito do artigo 275º quanto a parte fundamental do seu elemento subjectivo.
XVI. O perfil psicológico do Recorrido traduz-se num quociente de inteligência médio baixo, que nunca o impediu de fazer a sua vida, sobretudo, desde a morte dos seus pais em 2007 e 2005, conforme os factos assentes em A) e B), respectivamente.
XVII. Nem o Autor logrou provar que, desde a morte dos seus pais, depende de terceiros.
XVIII. A Recorrente não tinha nem podia ter conhecimento quer do perfil psicológico do Recorrido, quer das suas reais capacidades.
XIX. O conhecimento de longa data entre os dois apenas permitiu concluir à Recorrente que, apesar de não ser uma pessoa tão inteligente como a maioria, o Recorrido sempre geriu e tomou decisões quanto ao seu património.
XX. Pelo que, a sentença recorrida, presumiu erradamente que a Recorrente tinha conhecimento de uma incapacidade do Recorrido para celebrar negócios de compra e venda que, de resto, inexiste.
XXI. O facto de a Recorrente ser amiga família do Autor há largos anos, não é por si só prova da consciência de uma incapacidade para praticar os negócios jurídicos ora em crise, que, de resto, não parecia verificar-se no passado do Recorrido.
XXII. Da fraca capacidade intelectual do Recorrido, não se pode inferir a necessária divergência entre a sua vontade e a declaração negocial que consta das escrituras públicas de 16 de Setembro de 2015, celebradas no Cartório da Notária Privada, G.
XXIII. Tal falta ou vício de vontade não se pode presumir em função de circunstâncias anteriores ou posteriores ao momento da declaração, a situação de inferioridade em sede de negócio usurário, há-de verificar-se e provar ter ocorrido no momento da sua celebração.
XXIV. A declaração do vendedor exarada em escritura pública faz prova plena da mesma, a menos que se alegue e prove a falsidade daquele documento autêntico ou se prove a falta da vontade ou vício de vontade que inquinaram a declaração constante desse documento.
XXV. Admitir a possibilidade de uma tal presunção colocaria em causa a segurança jurídica. O quociente intelectual dos declarantes – mormente o situado dentro da média, ainda que baixo, como resulta do único relatório médico constante dos autos – não é facto bastante para provar um vício da sua vontade.
XXVI. O Tribunal a quo entendeu, ainda que, o facto de a Recorrente conhecer o Recorrido desde criança, era bastante para concluir pela sua intenção de explorar a inferioridade deste, locupletando-se com a propriedade das Fracções gratuitamente.
XXVII. Com o devido respeito, ao contrário do expendido na sentença ora em crise, não se retira tal ilicitude dos factos apurados.
XXVIII. Não resultou provado – nem o Recorrido tentou provar -, que o preço acordado resultou num benefício excessivo para a Recorrente que esta tenha procurado obter à custa do Recorrido.
XXIX. Nem a Recorrente tive a intenção de adquirir as fracções gratuitamente, nem foi o que efectivamente aconteceu.
XXX. A Recorrente confessou-se imediatamente devedora do preço, apesar o Recorrido ter declarado por escritura pública que, no momento da sua celebração, já o havia recebido.
XXXI. O Recorrido evitou todas as tentativas de contacto da Recorrente, nunca a interpelou por qualquer via para o pagamento dos preços acordados e, um mês após a outorga das escrituras relativas às Fracções, intentou a presente acção.
XXXII. Citada que foi para os presentes autos, a Recorrente confessou-se devedora do preço acordado e procedeu à consignação em depósito do mesmo, tendo, ainda, pedido, em sede de reconvenção, a modificação do negócio segundo juízos de equidade, nos termos permitidos pelo n.º 1 do artigo 276º do CC, pedido esse cuja apreciação se encontra actualmente em fase de recurso nos presentes autos.
XXXIII. A Recorrente vinculou-se a uma obrigação contratual que quis cumprir e não o fez porque o Recorrido obstou deliberadamente ao seu cumprimento.
XXXIV. Mais, o Recorrido vivia e continua a viver na fracção C3, uma das Fracções, sem que a Recorrente alguma vez tenha pedido a tradição do Imóvel, bem como a receber as rendas que constituem, ainda hoje, o seu único sustento.
XXXV. De onde resulta, sem margem para quaisquer dúvidas, que a Recorrente não obteve e nunca teve qualquer intenção de obter benefício excessivo com a compra das Fracções.
XXXVI. O Tribunal a quo, fez errada interpretação da norma do artigo 275º do Código Civil, pois deu como provada toda a factualidade subsumível aos requisitos do referido preceito, apenas e só a partir de uma inferioridade ou estado mental do Recorrido que se traduz num quociente de inteligência médio baixo.
XXXVII. Não se pode extrair do quociente de inteligência médio baixo do Recorrente, de uma assentada só, todos os requisitos do negócio usurário: a consciência da inferioridade do Recorrido na relação negocial, a vontade da Recorrente de explorar o Recorrido e a consequente obtenção de um benefício excessivo e injustificado por parte daquela.
XXXVIII. Da factualidade apurada, não resultam provados, um a um, os requisitos de cuja verificação cumulativa depende a aplicação do previsto no artigo 275º do CC.
XXXIX. O Tribunal a quo limitou-se antes a presumir, face ao apuramento de um índice médio baixo de quociente de inteligência do Recorrido, (i) que este se encontra impossibilitado de conhecer os termos dos negócios que celebrou, (ii) que a Recorrente quis explorar essa situação e que (iii) esta obteve benefício manifestamente excessivo ou injustificado com a celebração dos negócios jurídicos em crise.
XL. O que é facto é que não só não resultaram provados os requisitos de inferioridade do Recorrido, a consciência e vontade de explorar da Recorrente, como ficou provado que esta não obteve qualquer benefício excessivo ou injustificado com os negócios ora em crise.
XLI. A Recorrente acordou um preço com o Recorrido, confessou-se devedora do mesmo, e não pediu a tradição das Fracções ao Recorrido.
XLII. Pelo que, os negócios de compra e venda celebrados por escritura pública entre o Autor e a Recorrente, no dia 16 de Setembro de 2015, no Cartório da Notária Privada, Dra G, são válidos e eficazes e inexiste qualquer vício que conduza à sua anulabilidade, devendo o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença ora em crise.
XLIII. Subsidiariamente, se assim não se entender, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, a Recorrente impugna, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 599º do CPC, a decisão de facto constante da decisão recorrida.
XLIV. Entende a Recorrente, que a decisão de facto recorrida padece de erro de julgamento quanto à resposta que nela foi dada aos quesitos 3º, 21º e 33º da base instrutória, que considera incorrectamente julgados, porquanto os meios de prova constantes dos autos, quer testemunhal – cuja reapreciação da prova gravada infra indicada se requer -, quer documental – designadamente com força probatória plena -, impunham decisão diversa da recorrida, no sentido de serem julgados os mesmos não provados.
XLV. Relativamente à resposta dada ao quesito 3º a 4ª testemunha, Sra C, afirmou que, depois da morte do pai do Autor de quem cuidou no último ano de vida, ninguém ficou a tomar conta do Autor.
XLVI. Ora, foi o Recorrido quem procedeu às declarações de óbito de ambos os progenitores, cfr. fls. 158 e de fls. 168, sendo que o da o óbito da sua mãe, foi declarado pelo Recorrido em vida do seu pai.
XLVII. Mais, a instâncias do advogado do Autor, que perguntou à 1ª testemunha “E agora perguntava-lhe, por exemplo, quando ele vai ao banco, ele vai sozinho, chega, tira o dinheiro, ou a Senhora ou alguém vai com ele?” esta respondeu: “Inicialmente era o pai dele que o levava. Por exemplo, quando pagava os condomínios, as despesas das fracções, era o pai que ía com ele. Mas, entretanto, o pai já não conseguia descer do prédio, ele pediu-me para o acompanhar duas vezes. Eu acompanhei-o duas vezes e ensinei-o a fazer isso.”
XLVIII. Por outro lado, as 1ª e 3ª testemunhas, D e F – mãe e filha, sendo que a primeira é inquilina do Autor e a segunda viveu cerca de sete anos na fracção arrendada ao Autor -, afirmaram que este cobra as rendas e passa recibos.
XLIX. A 2ª testemunha afirmou que o Recorrido quase de certeza que não compreende da primeira vez, tem de repetir, duas vezes, três vezes para ele compreender ter vendido o imóvel a terceiro, admitindo a possibilidade do entendimento por parte do Recorrido.
L. Acresce que o Recorrido conhece o conceito de compra e venda, acto que já praticou pessoalmente, por outorga das escrituras públicas através das quais adquiriu as Fracções e, ainda, a fracção 12, pelo menos, três vezes, seguida dos respectivos registos que também promoveu.
LI. Sabendo-se que o Autor havia praticado o mesmo acto em três outras ocasiões, apenas se pode concluir que o Autor tinha a experiência necessária para entender o conteúdo e alcance dos contratos.
LII. O Recorrido trabalhou pelo salário mensal de MOP$6.000,00 (seis mil patacas), na construção civil, quando tinha trinta e tal anos, tendo a 2ª testemunha declarado que o Autor percebia o conceito de salário e a quanto é que este correspondia.
LIII. Acrescentando, ainda, que o Autor tem a capacidade intelectual de uma pessoa com 15 ou 16 anos, com o 9º ano de escolaridade, uma “inteligência fraca” mas que pode ser colmatada pela “experiência de vida”.
LIV. O Autor soube recorrer e contar os factos alegados a advogado, em como entender o sentido da procuração forense que outorgou e juntou aos autos.
LV. O Autor sabe em que consistem, como se praticam e que consequências têm actos que já praticou no passado e alguns que continuou a praticar, e que vão muito para além dos assuntos correntes e corriqueiros do dia-a-dia, como as declarações de óbito de ambos os seus progenitores que assinou, as três escrituras de compra e venda e consequentes pedidos de registo na competente Conservatória, trabalho assalariado, recebimento de rendas, bem como, a emissão dos respectivos recibos, operações bancárias e pagamento de condomínios, sem que o Autor tenha provado que os praticou ou pratica com a ajuda de quem quer que fosse.
LVI. Acresce que, quando perguntado sobre a possibilidade de o Autor não compreender o teor das escrituras do dia 16 de Setembro de 2015, a 2ª testemunha, médico psiquiatra que avaliou o Autor numa única consulta, já no decurso da presente acção, respondeu, por mais do que uma vez, que, não conhecia o teor das mesmas.
LVII. Ora se não conhece o texto em causa, como pode afirmar que o Autor não o percebeu?
LVIII. O Autor comprou três fracções, outorgando, por si, as respectivas escrituras e promovendo o competente registo, o que representa experiência de vida que não se pode, nem deve, ignorar.
LIX. Pelo que, o Tribunal julgou incorrectamente o quesito 3º da matéria de facto.
LX. O Tribunal a quo julgou incorrectamente o quesito 21º.
LXI. Não cabe à Recorrente provar que o Autor percebeu o teor dos contratos, cabe ao Autor responder positivamente ao quesito, ou seja, “sim, o Autor não percebeu o teor dos documentos”, o que não aconteceu nem resultou da prova testemunhal produzida em audiência ou da prova documental junta aos autos.
LXII. O que resulta, em primeiro lugar, do teor das escrituras de fls. 41 a 48, nos termos das quais o Autor declarou ter percebido o seu teor e que este correspondia à vontade do mesmo.
LXIII. Lembre-se, a este propósito, o já referido acima que o que a 2ª testemunha disse foi que, se lhe fosse explicado de forma repetida ele (Autor) podia ter compreendido ter vendido o imóvel a terceiro, testemunha essa que, relembre-se, não conhece, nunca viu, uma escritura de compra e venda de imóvel em Macau.
LXIV. Importa sublinhar que, para além da 7ª testemunha, a Notária Privada, G, apenas as 5ª e 6ª testemunhas, estiveram presentes na outorga das escrituras de 16 de Setembro de 2015, pelo que apenas estas podem responder ao quesito em discussão.
LXV. Como referiu a 7ª testemunha, da experiência de 11 anos que tem como notária privada, em Macau – sendo que celebra mais de mil escrituras por ano -, quando inquirida quanto à incapacidade do Autor para perceber o alcance e conteúdo do teor das escrituras, respondeu que se tivesse tido qualquer dúvida quanto à incapacidade do Autor, teria recusado realizar o acto.
LXVI. Por sua vez, a 6ª testemunha afirmou que o Autor não deu qualquer sinal de se encontrar alheado da realidade do aludido acto ou de o não entender.
LXVII. As 5ª e 6ª testemunhas disseram em audiência, sem qualquer hesitação, que o Autor pediu esclarecimentos quanto aos termos do acordo, nomeadamente quis saber se podia continuar a residir na casa onde vivia e continuar a cobrar a renda da outra fracção.
LXVIII. So o Autor quis confirmar que permanecia na casa após a venda da mesma, é porque sabia que a consequência dessa venda poderia ser uma outra, bem diferente, o que revela conhecimento das consequências possíveis da celebração de uma escritura de compra e venda, isto é, o Autor conhecia o conteúdo e a alcance dos documentos que assinou.
LXIX. Pelo que, não se pode dar como provado o quesito 21º.
LXX. Quanto ao quesito 33º, não pode este ser dado como provado pois, em primeiro lugar, não se pode dizer que a Recorrente quis obter gratuitamente as Fracções.
LXXI. Entre a data da celebração das escrituras e da propositura da acção, cerca de um mês e meio, a Recorrente fez deslocar a Macau as 5ª e 6ª testemunhas, ambos seus empregados, para efectivar o pagamento em falta, tendo estas tentado encontrar o Autor, depois de terem confirmado com o Banco da China de Macau que o número de conta que lhes tinha sido facultado pelo Autor “não estava certo”.
LXXII. A 5ª testemunha disse em audiência que, quando veio a Macau para efectuar o aludido pagamento, “foi directamente para (…) o edifício onde ele (o Autor) residia, no entanto, não o encontrei lá”.
LXXIII. A 6ª testemunha, advogado da Recorrente em Hong Kong, disse que, quanto ao pagamento do preço acordado, que “o Sr. H (5ª testemunha) tentou ir ao Banco da China de Hong Kong para fazer a transferência só que no fim ele disse que não pode fazer a transferência e em Outubro, dia 10 ou depois, nós viemos novamente a Macau regressamos a Macau”, na tentativa de efectuar o pagamento.
LXXIV. De resto, quando foi citada para a presente acção, a Recorrente imediatamente reconheceu existir e confessou uma dívida que quis e quer pagar ao Autor, tendo, para tanto procedido ao depósito da totalidade do preço acordado, conforme se extrai dos autos de consignação que correm por apenso aos autos.
LXXV. A Recorrente não se quis aproveitar da condição mental do Autor.
LXXVI. A Recorrente quis proteger o Autor que manifestou a vontade de vender as propriedades registadas a seu favor, porque se queria casar, como referiu a 5ª testemunha e, como afirmou a 1ª testemunha.
LXXVII. A Recorrente nunca quis adquirir a propriedade das Fracções a título gratuito, mas apenas assegurar que o Autor mantinha a sua posse, por respeito ao irmão e à família do Autor que, conhecia desde que este, em criança, juntamente com os seus pais, a visitava em Hong Kong, de quem era amiga.
LXXVIII. O que resulta da prova testemunhal produzida, é que, no momento em que os celebrou, o Recorrente entendeu o teor dos contratos ora em crise.
LXXIX. O que seguramente não resulta, quer da prova testemunhal, quer da prova documental, é que o Recorrido, no momento em que vendeu as Fracções, não entendeu o que estava a fazer ou que essa venda não correspondia à sua vontade.
LXXX. O facto de o Recorrido ter uma inteligência média baixa, não pode ser, por si só, ser fundamento da usura dos referidos contratos.
LXXXI. Não ficaram provados, por não ser verdade, os pressupostos do negócio usurário que se traduzem no aproveitamento consciente da capacidade intelectual média baixa do Recorrido e a obtenção de um benefício injustificado ou manifestamente excessivo.
LXXXII. A prova documental e a prova testemunhal cuja reapreciação ora se requer, impunham ao Tribunal a quo que julgasse “Não Provada” a matéria de facto vertida nos quesitos 3º, 21º e 33º da base instrutória, porquanto o Recorrido não logrou provar, nem por via testemunhal, nem por via documental, que, em virtude do quociente de inteligência abaixo da média para a sua idade, não tem capacidade para tomar decisões de um modo autónomo, “senão quanto a assuntos correntes, de prática habitual e corriqueira no seu dia-a-dia e, mesmo quanto a estes, sempre com a ajuda de terceiros”; a consciência e intenção da Recorrente de aproveitar a suposta inferioridade do Autor; e, menos ainda, que a Recorrente tenha tirado benefício excessivo dos negócios jurídicos ora em crise.
LXXXIII. Assim sendo, e pertencendo ao Autor o ónus da prova relativamente aos factos por si alegados, nos termos do n.º 1 do artigo 335º do CC, deve dar-se por não provado que a Recorrente se aproveitou conscientemente da situação do Autor e que retirou benefício manifestamente excessivo ou injustificado da outorga das escrituras públicas de compra e venda das Fracções, realizada no dia 16 de Setembro de 2015.
LXXXIV. Pelo que, deve o Tribunal ad quem considerar incorrectamente julgados os quesitos 3º, 21º e 33º, nos termos expostos, e, em consequência, alterar a decisão recorrida de acordo com o disposto no artigo 599º, conjugado com as alíneas a) e b) do n.º 1 e com o n.º 2 do artigo 629º do CPC, no sentido de serem os mesmos dados como Não Provados.
LXXXV. Subsidiariamente, se assim não se entender, o que por mera cautela de patrocínio se concede, a Recorrente, impugna, ainda, a decisão da reclamação da Recorrente contra a selecção da matéria de facto, bem a decisão de facto.
LXXXVI. Da leitura do despacho saneador de fls. 201 a 205, retira-se facilmente que apenas foram levados à base instrutória os factos alegados pelo Autor, sendo a mesma praticamente omissa quanto aos factos relevantes alegados pela Recorrente na sua contestação, factos esses, demonstrativos, de que (i) a aquisição das fracções I2, C3 e A3 foi financiada pelo irmão do A., com fundos maioritariamente facultados a este pela R. atenta a amizade deste pela família do A.; (ii) o A. pediu por diversas vezes dinheiro à R., ao que a R. sempre acedeu; (iii) foi para ajudar e proteger o A. que a R. concordou em adquirir-lhe as fracções A3 e C3; (iv) o A. deu instruções precisas à R. para proceder ao pagamento do preço devido pela aquisição das Fracções C3 e A3, através de uma conta bancária que não existia; imotivo pelo qual não conseguiu proceder ao referido pagamento e que não lhe é imputável; e (v) o preço acordado por ambos foi o justo em face das circunstâncias do presente caso, designadamente em face da origem da maioria dos fundos utilizados pela família do Recorrida para a aquisição das Fracções.
LXXXVII. A Recorrente viu-se impedida de fazer a prova dos factos por si alegados que consubstanciam a sua versão dos acontecimentos e, bem assim, os que lhe permita fazer a prova dos factos supra enunciados, cuja relevância para a apreciação da causa é incontornável porque apta a determinar sorte diferente à presente acção.
LXXXVIII. Não obstante a Recorrente ter tido o direito de fazer a contraprova de todos os factos levados à base instrutória porquanto todos eles foram por si impugnados, é inegável que, por os factos acima não terem sido incluídos, como deviam, na base instrutória, foi vedada à Recorrente a possibilidade de demonstrar que nunca se aproveitou, nem quis agora aproveitar-se, dos problemas do Recorrido, pelo contrário, sempre o apoiou.
LXXXIX. A base instrutória devia, pois, ter acolhido a factualidade trazida ao processo pela Recorrente em sede de impugnação motivada.
XC. Tanto mais que, para que se verifique a usura, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa da inferioridade de outrem, sendo ainda necessário que exista uma exploração consciente dessa inferioridade.
XCI. Foi vedada à Recorrente fazer a contraprova de intenção de exploração que o Recorrido lhe atribui e cuja inexistência tem que se admitir face a tal factualidade, designadamente em face da alegação de que o preço acordado entre as partes – que se encontra totalmente depositado à ordem dos autos de consignação em depósito que correm por apenso aos presentes – só não foi pago em tempo por mora do Recorrido.
XCII. À Recorrente devia ter sido dada a possibilidade de fazer a impugnação motivada dos factos alegados pelo Recorrido, demonstrando que, (i) sendo conhecedora do perfil psicológico do Recorrido, não quis retirar vantagens, injustificadas ou não, desse conhecimento, pelo contrário, quis continuar a apoiá-lo e que, (ii) apesar de confessadamente não ter pago o preço acordado com o Recorrido, não adquiriu gratuitamente as Fracções por ter sido este quem colocou a Recorrente em situação indesejada de incumprimento.
XCIII. Pelo que, deviam ter sido desde logo incluídos na base instrutória os factos controvertidos alegados pela Recorrente nos artigos 28º, 30º, 31º, 32º, 33º, 35º, 36º, 37º, 38º, 40º, 41º, 42º, 45º, 51º, 68º, 69º, 70º e 8º a 10º (ex vi o artigo 89º) da sua contestação, a fls. 116 a 120, 122, 126 e 127, 110 e 111 (ex vi fls. 132), ou, pelo menos, deviam tê-lo sido em sede do despacho que decidiu da reclamação contra a matéria de facto conforme foi, em tempo, requerido pela Recorrente em sede de reclamação.
XCIV. Tendo o despacho da selecção da matéria de facto indeferido o pedido formulado pela Recorrente na sua reclamação, no sentido de ali serem levados os factos contravertidos alegados nos artigos da sua contestação supra identificados da sua contestação, violou o preceito da segunda parte do n.º 1 do artigo 430º do CPC, pelo que deve, pelos motivos supra indicados, proceder-se à sua revogação parcial no que a essa concreta decisão respeita, e proceder-se à ampliação da selecção da matéria de facto nos termos do n.º 4 do artigo 629º do CPC, mediante a inclusão dos mesmos na base instrutória.
XCV. Acresce que, em sede de reclamação, a Recorrente pugnou, no que releva para o presente recurso, pela eliminação do quesito 33º da base instrutória, porquanto este, na resposta à questão “A Ré bem conhecia e, não obstante, quis aproveitar-se da condição mental do Autor a fim de obter dele as duas fracções A3 e C3 gratuitamente?”, inclui todos os requisitos cumulativos estatuídos no artigo 275º do Código Civil.
XCVI. É evidente a correspondência das ideias contidas no aludido quesito com os requisitos do preceito do artigo 275º do CC, conforme abaixo se discrimina e identifica: que alguém se aproveite, conscientemente, (a Ré bem conhecia (…) quis aproveitar-se), da situação de estado mental, (da condição mental do Autor), para obter deste, para si ou para terceiro, (a fim de obter dele), a concessão de benefícios, (as duas fracções A3 e C3), que atendendo às circunstâncias do caso, (não obstante), sejam manifestamente excessivos ou injustificados, (gratuitamente), o que viola o entendimento consensual, tanto na doutrina como na jurisprudência que não se pode concentrar num único quesito a sorte de uma acção, pelo que, o quesito 33º é claramente inadmissível e deve ser eliminado da base instrutória.
XCVII. De resto, a formulação do quesito 33º reduz-se a uma expressão conclusiva, isto é, parece resultar da formulação do quesito que, conhecendo a Ré o perfil psicológico do Autor, outra coisa não se pode daí retirar senão que esta queria obter as duas fracções A3 e C3 gratuitamente, técnica que, como é consensual na doutrina e na jurisprudência, deve ser evitada.
XCVIII. Pelo que, o despacho que decidiu da Reclamação contra a selecção da matéria de facto apresentada pela Recorrente deve ser também revogado na parte que indeferiu o pedido de eliminação do quesito 33º, ordenando-se agora a eliminação deste.
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve:
1. Ser o presente recurso julgado procedente, sendo, em consequência, revogada a decisão de direito contida na sentença recorrida e substituída por outra que absolva a Ré, ora Recorrente, do pedido de anulação dos contratos de compra e venda, realizados por escritura pública, no Cartório da Notária Privada, G, no dia 16 de Setembro de 2015, relativos às fracções “C3” do 3º andar “C”, para habitação, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ****, a fls. 131 verso do livro B7 e “A3” do 3º andar “A”, para habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ****, a fls. 266 do livro B26.
2. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, no que não se concede, deve:
2.1 ser alterada a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 1º, 3º e 21º e, ainda, subsidiariamente – não sendo julgada procedente a sua remoção da base instrutória -, no quesito 33º, nos termos permitidos pelo n.º 1 do artigo 629º do CPC, e, consequentemente julgar-se improcedente a presente acção, por não resultar provado nos autos os factos que consubstanciam os requisitos cumulativos do artigo 275º do CC; e, se assim não se entender,
2.2 ser revogada a decisão que julgou improcedente a reclamação da matéria de facto, quanto à eliminação do quesito 33º, devendo este ser eliminado da base instrutória, com base em excesso, e quanto ao pedido de inclusão nos factos assentes dos pontos 37 a 65, identificados a fls. 229 a 231, reproduzidos sob o 90º parágrafo supra, com base na sua deficiência, devendo estes ser incluídos na base instrutória, procedendo-se à ampliação da matéria de facto e consequente repetição do julgamento, nos termos do n.º 4 do artigo 629º do CPC; e
3. E, finalmente, caso assim não se entenda, que seja apreciado o recurso da decisão de fls. 254 a 266, que rejeitou a reconvenção da ora Recorrente e, consequentemente, não conheceu do pedido de modificação do negócio jurídico aí formulado, por recurso à faculdade legal estatuída no artigo 276º do CC, que torna inoperante a anulação das escrituras públicas em apreço.”
*
Ao recurso respondeu o Autor nos seguintes termos conclusivos:
“I A sentença a quo não deve ser modificada quanto aos seus fundamentos de facto e de direito.
II A decisão recorrida, pelo acima exposto em sede de Resposta/Contra-Alegações, não deverá merecer qualquer censura ou alteração por parte do Tribunal de Segunda Instância.
Termos em que não deverão ser acolhidas e relevadas as alegações de recurso apresentadas pela ré/recorrente.”

Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade:
O pai do Autor, I (I), faleceu em 2007. (alínea A) dos factos assentes)
A mãe do Autor, J, faleceu em 21 de Março de 2005. (alínea B) dos factos assentes)
A Ré não fez qualquer pedido de entregado imóvel, nomeadamente através das respectivas chaves, permanecendo, pois, a mesma Fracção C3 na posse exclusiva do A. (alínea C) dos factos assentes)
O conhecimento entre a Ré e o Autor iniciou-se quando este, em criança, juntamente com os seus pais, a visitava em Hong Kong, sendo uma amiga da família. (alínea D) dos factos assentes)
O Autor tem dificuldades mentais de entendimento apenas conseguindo compreender o significado e alcance de ideias muito concretas, simples e directas. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
O Autor não tem capacidade de tomar decisões de um modo autónomo, senão quanto a assuntos correntes, de prática habitual e corriqueira no seu dia-a-dia. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
Em vida dos pais do Autor, eram estes quem o sustentavam, o assistiam e em tudo o mais ajudavam a reger a sua pessoa e património. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
Tendo por fim assegurar que após a sua morte o Autor não ficasse desprovido de rendimentos e património para se sustentar, os pais do Autor decidiram dar ao filho dois imóveis para que este, seguidamente, os arrendasse e auferisse futuramente as respectivas rendas como meio de sustento para o resto da sua vida. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
Estavam registados em nome do Autor as seguintes fracção autónoma:
i) Fracção autónoma “C3”, correspondente ao 3º andar “C” da Rua ......, nº ..., ......, Macau, para habitação, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ****, a fls. 131 v. do Livro B7, freguesia de Santo António, inscrito na Matriz Predial sob o artigo nº 3****;
ii) Fracção autónoma “A3”, correspondente ao 3º andar “A” do Pátio ......, nº..., ......, para habitação, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ****, a fls. 266 do Livro B26, freguesia de Santo António, inscrito na Matriz Predial sob o artigo nº7****. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
Além desses imóveis, o Autor e o seu pai adquiriram em 1978, sendo os únicos comproprietários, cada um com uma quota de 1/2, a Fracção autónoma “I2”, correspondente ao 2º andar “I” da Rua ......, nº ..., ......, Macau, para habitação, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº2****, inscrito na Matriz Predial sob o artigo nº3****. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
A partir do óbito do seu pai, o Autor apenas se tem sustentado com as rendas provenientes do arrendamento das Fracções A3 e I2. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
A Ré, ainda em vida dos pais do Autor, conhecia o perfil psicológico do Autor referido nas respostas dadas aos quesitos 1° e 3°. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
Em 16/09/2015, a Ré trouxe o Autor para Macau. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
O Autor foi, juntamente com a Ré, ao Cartório Notarial Privado da Dr.ª G, sito em Macau, na Avenida ......, nº ..., Edf. ......, ...º andar. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
Onde o Autor assinou uns documentos que lhe foram lidos em português e traduzidos para chinês. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
Apesar da tradução feia, o Autor não entendeu nem percebeu o respectivo conteúdo, alcance e a que se destinavam aqueles documentos que lhe tinham sido lidos. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
O Autor assinou então ambos os documentos. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
A fracção C3 era a casa onde vivia, desde antes da morte dos pais, até à presente data. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
O Autor não recebeu da Ré ou de quem quer que seja qualquer preço por essas duas pretensas transacções referenciadas nas duas escrituras públicas. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
A Ré quis aproveitar-se da condição mental do Autor para obter dele as duas fracções A3 e C3 gratuitamente. (resposta ao quesito 33º da base instrutória)
Provado o que consta das escrituras públicas outorgadas em 16/09/2015, cujo teor consta de fls. 41 a 48 dos autos. (resposta ao quesito 34º da base instrutória)
*
Mais está provado, de acordo com os dados estatísticos divulgados na página electrónica da Direcção dos Serviços de Finanças da RAEM1, o seguinte:
   - O preço médio das fracções autónomas destinadas à habitação e sitas na zona de Patane e São Paulo, referente à primeira quinzena do mês de Agosto de 2019, é de MOP75.017,00 por metro quadrado.
*
Começamos pelo recurso do despacho interlocutório.
Pediu a Ré ora recorrente em reconvenção a modificação dos negócios jurídicos de compra e venda referentes às fracções autónomas C3 e A3 segundo juízos de equidade, nos termos consentidos pelo n.º 2 do artigo 276.º do Código Civil.
No saneador, o Tribunal recorrido não admitiu o requerimento com fundamento de que o mesmo não consubstanciava um pedido reconvencional, antes constituía tão-só matéria de excepção, digamos peremptória, com a qual a Ré pretendia simplesmente manter a validade dos negócios jurídicos em causa, impedindo a procedência da acção intentada pelo Autor.
Vejamos.
Estatui o n.º 1 do artigo 218.º do Código de Processo Civil que o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor. Trata-se de uma contra-acção intentada pelo réu.
E diz a alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo que “A reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.”
Ao deduzir a reconvenção, o pedido do réu tem que ter por fundamento o acto ou facto, base da acção ou da defesa. O réu não se limita a defender-se da acção intentada pelo autor, antes vem assumir uma posição de ataque, intentando no mesmo processo outra acção contra o autor.
No caso vertente, o Autor pede a anulação dos contratos de compra e venda alegando estarem em causa negócios usurários.
Citada, vem a Ré exercer a faculdade prevista no n.º 2 do artigo 276.º do Código Civil
Dispõe o n.º 2 do artigo 276.º Código Civil que uma vez requerida pelo lesado a anulação do negócio usurário nos termos permitidos pelo artigo 275.º, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do negócio segundo juízos de equidade.
Em boa verdade, o efeito jurídico que a Ré pretende obter é a modificação dos referidos contratos segundo juízos de equidade, caso o pedido do Autor venha a ser julgado procedente.
Como observa José Alberto González2, “…qualquer das partes tem o direito potestativo de pedir a modificação (embora, naturalmente, só o lesado tenha também o direito de pedir a anulação – n.º 1 do artigo 287.º -, sujeitando-se, todavia, a que, em reconvenção, aquele que dele se aproveitou requeira a modificação).” – sublinhado nosso
No presente caso, estamos perante uma contra-acção da Ré contra o Autor, em que existe um pedido autónomo formulado por aquela contra este, fundando-se o pedido reconvencional na mesma causa de pedir alegada pelo Autor, pelo que é admissível a reconvenção ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 218.º do CPC.
Isto posto, há-de conceder provimento ao recurso, sendo admitido o pedido reconvencional deduzido pela Ré ora recorrente.
*
No tocante ao recurso da decisão final interposto pela Ré, a mesma vem impugnar a decisão sobre a matéria de facto provada nos quesitos 3º, 21º e 33º da base instrutória, com fundamento na suposta existência de erro na apreciação das provas.
O Tribunal recorrido respondeu aos referidos quesitos da seguinte forma:
Quesito 3º - “O Autor não tem capacidade de tomar decisões de um modo autónomo, senão quanto a assuntos correntes, de prática habitual e corriqueira no seu dia-a-dia e, mesmo quanto a estes, sempre com a ajuda de terceiros?”, e a resposta foi: “Provado que o Autor não tem capacidade de tomar decisões de um modo autónomo, senão quanto a assuntos correntes, de prática habitual e corriqueira no seu dia-a-dia.”
Quesito 21º - “Apesar da tradução feita, o Autor não entendeu nem percebeu o respectivo conteúdo, alcance e a que se destinavam aqueles documentos que lhe tinham sido lidos?”, e a resposta foi: “Provado.”
Quesito 33º - “A Ré bem conhecia e, não obstante, quis aproveitar-se da condição mental do Autor a fim de obter dele as duas fracções A34 e C3 gratuitamente?”, e a resposta foi: “Provado que a Ré quis aproveitar-se da condição mental do Aturo para obter dele as duas fracções A3 e C3 gratuitamente.”
Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º s 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
Na mesma senda, salienta-se ainda no Acórdão deste TSI, de 16.2.2017, no Processo n.º 670/2016 que: “Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC” e que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
Analisada a prova produzida na primeira instância, atento sobretudo o depoimento do médico, entendemos que não somos capazes de dar razão à recorrente.
Na verdade, sempre que uma versão de facto seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras, cabe ao tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, com recurso às regras da lógica e da experiência comum.
Ora bem, entre outras, coloca-se a questão de saber se o Autor tinha ou não capacidade de tomar decisões importantes e possuir ou não capacidade intelectual de compreender perfeitamente o conteúdo e o alcance dos documentos que assinou.
Conforme dito acima, o artigo 558.º, n.º 1 do CPC permite que o Tribunal forme a sua íntima convicção a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimentos gerais, salvo erro manifesto ou grosseiro.
No caso em apreço, e no que respeita à matéria posta em causa, o Tribunal recorrido logrou fundamentar devidamente a sua decisão sobre a matéria de facto controvertida, nos seguintes termos que se transcrevem:
“Em especial, relativamente à capacidade intelectual ou mental do Autor, as testemunhas D, F e C relataram que o Autor sofre da grave problema mental, não tendo ele capacidade de compreender nem de gerir por si próprio, comportando-se sempre como miúdo e, segundo a D, o Autor foi enganado pela Ré para assinar as escrituras públicas, enquanto as testemunhas 2ª e 3ª da Ré disseram o contrário, o Autor tem comportado como pessoa normal, não se achando que ele tem qualquer problema mental, as compras e vendas foram efectuadas sob a solicitação do próprio Autor e que este entendeu perfeitamente os negócios outorgados por escrituras públicas.
Segundo o relatório médico de fls. 250, complementado com o esclarecimento do Dr. K, o Autor, embora não tenha síndromas psiquiátricas, tem capacidade intelectual de nível baixo, o que significa que ele tem capacidade para tratar a vida quotidiana, mas não é capaz de compreender os assuntos complicados e que exigem raciocínio abstracto e complicado, especificando que não tem aptidão intelectual para compreender o que poderia derivar dos negócios de compra e venda dos imóveis, particularmente para calcular as vantagens e desvantagens advindas dos tais actos.
Em comparação do depoimento das testemunhas das partes quanto à conduta do Autor e o parecer do médico, resulta-se que do depoimento das testemunhas D, F e C é exagerado no que respeitante que ele não tenha capacidade para tratar a si próprio; no entanto, o estado mental não é tão normal como afirmaram as testemunhas da Ré. Perante à manifesta contradição do depoimento destas testemunhas, não é convencível o depoimento destas testemunhas.
O tribunal deu mais relevo o parecer emitido pelo Dr. K, por ser ele objectivo e isento dos interesses discutidos nos autos, e o mais essencial, possuindo os conhecimentos especiais, que nenhuma das outras testemunhas tem, para apreciar a personalidade e capacidade intelectual e mental do Autor. Com base no parecer dele, permite-se concluir que o Autor sofreu de incapacidade na tomada da decisão abstracta e complicada mas tal incapacidade não é de grau tão grave que a inibe de fazer a vida normal. Conclusão essa é compatível com o facto de o mesmo ter outorgado nas escrituras públicas da aquisição dos imóveis, enquanto os pais ainda estavam em vida e, ter declarado e assinado no tratamento dos assentos de óbito dos seus pais, que poderiam ser efeitos sob instrução ou auxílio de terceiro. Nestes termos, deram-se por provados os factos dos quesitos 1º e 3º e não se deu por provado o facto do quesito 2º. Por o Autor sofrer de limitação da capacidade intelectual, convencemos que o Autor não entendeu e percebeu o conteúdo a que se referem as duas escrituras públicas. Assim, deu-se por provado o facto do quesito 21º. Não se consideram, por consequência lógica, por provados os factos dos quesitos 30º e 32º.
(…)
Sobre se a Ré conhece o estado de limitação intelectual do Autor, a convicção do Tribunal resulta-se a) segundo o depoimento da testemunha H, a Ré conhece o Autor há mais de 30 anos, desde a morte dos seus pais, tem vindo a prestar apoio financeiro ao Autor, dada a relação que ela tem com o irmão/irmão adoptivo do Autor, tendo a Ré, por si própria, ou mediante terceiro, trazido dinheiro de Hong Kong para Macau para entregar ao Autor. Considerando que o Autor tem cerca de 54 anos, se ele não sofresse de qualquer problema, a Ré, não sendo familiar dele, não precisaria tomar conta da sua vida, mesmo que lhe desse o apoio financeiro, teria outra forma mais fácil e conveniente, em vez de vir entregar em mão o dinheiro ao Autor; b) segundo a experiência comum, um homem médio e normal, não iria consentir assinar os documentos para vender os patrimónios de cujo rendimento de que depende para a sobrevivência sem receber quaisquer preços como contrapartida.
Face a outorga das escrituras públicas para a venda dos dois imóveis para a Ré com a menção de recebimento dos preços por parte do Autor mas na realidade não houve e o facto de ter provado o conhecimento da limitação da capacidade do Autor, outra conclusão não poderá obter que a Ré quis aproveitar dessa situação do Autor. Assim, deu-se por provado o facto do quesito 33º.”
Em boa verdade, retira-se da prova produzida que o Autor tinha e continua a ter uma capacidade intelectual de compreensão baixa e estreita. Antes da morte do seu pai, foi este que ensinava e auxiliava o Autor a tratar dos assuntos importantes e gerir a sua vida quotidiana, incluindo os actos de outorga de escritura pública de compra e venda de imóveis.
Sendo assim, o facto de ter experiência prévia na celebração de escrituras públicas de compra e venda não significaria necessariamente que o Autor, por padecer de capacidade intelectual reduzida, compreendesse perfeitamente aquilo que fez.
Conforme referido pelo médico psiquiatra, para que o Autor possa compreender um determinado assunto, é necessário explicar-lhe várias vezes.
E não se diga que o médico só avaliou o Autor numa única consulta. Sendo médico especialista, este tem conhecimentos e habilidades para avaliar o estado mental do paciente.
E não obstante que a senhora notária respondeu em audiência que deu instruções à tradutora para traduzir de forma pausada e clara o conteúdo das escrituras, mas não disse que a intérprete-tradutora tinha explicado várias vezes o seu conteúdo ao outorgante ora Autor.
Cremos que o Autor não estava a compreender o teor das escrituras que assinou, e que dúvidas de maior não restam de que a Ré quis aproveitar da condição mental do Autor para obter interesses injustificados.
Conforme o teor das escrituras, o Autor confessou ter recebido a totalidade do preço das vendas, mas na realidade, a Ré não efectuou o pagamento de nenhum preço.
Em boa verdade, só quando a Ré foi citada para a presente acção, é que veio proceder ao depósito da totalidade dos preços acordados.
Disse a Ré que chegou a contactar o Autor para efectuar o pagamento mas não conseguiu encontrá-lo.
Independentemente de isso ser ou não verdade, não somos capazes de acreditar em que uma pessoa de diligência normal confessaria o recebimento do preço de imóveis se na realidade não tivesse recebido qualquer pagamento. Poderia isso acontecer nos negócios simulados, mas numa compra e venda normal, não vislumbramos justificação plausível.
Por outro lado, se a Ré não pretendesse aproveitar a condição mental do Autor para obter interesses injustificados, teria já efectuado o pagamento do preço dos imóveis logo no acto de outorga das escrituras, mas não, antes pelo contrário, aceitou a celebração das escrituras bem sabendo que o Autor nelas ter confessado o recebimento do preço das vendas que não foi pago ao vendedor.
Por tudo quanto deixou exposto, não se vislumbra qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do Tribunal recorrido na análise da prova nem na apreciação da matéria de facto controvertida, antes pelo contrário, os dados trazidos aos autos permitem chegar à mesma conclusão a que o Tribunal a quo chegou, pelo que improcedem as razões da recorrente nesta parte.
*
Alega ainda a recorrente que o Tribunal recorrido não fez incluir na base instrutória factos relevantes, a saber:
- a aquisição das fracções I2, C3 e A3 foi financiada pelo irmão do A., com fundos maioritariamente facultados a este pela R. atenta a amizade desta pela família do A.;
- o A. pediu por diversas vezes dinheiro à R. ao que a R. sempre acedeu;
- foi para ajudar e proteger o A. que a R. concordou em adquirir-lhe as fracções A3 e C3;
- o A. deu instruções precisas à R. para proceder ao pagamento do preço devido pela aquisição das fracções C3 e A3, através de uma conta bancária que não existia;
- motivo pelo qual não conseguiu proceder ao referido pagamento, o que não lhe é imputável;
- o preço acordado por ambos foi o justo em face das circunstâncias do presente caso, designadamente em face da origem da maioria dos fundos utilizados pela família do recorrido para a aquisição das fracções.
Ora bem, salvo o devido respeito por opinião contrária, somos a entender que a matéria acima exposta não é pertinente para o caso concreto.
A suposta relação de empréstimo entre o irmão do A. e a Ré não tem a ver com o Autor.
Quanto à questão de saber se a Ré era ou não conhecedora do perfil psicológico do Autor e que quis retirar vantagens injustificadas junto do mesmo, a matéria constante da base instrutória é já suficiente para o efeito.
Em boa verdade, cabe ao Autor a prova dos factos constitutivos do direito invocado, e por parte da Ré, compete apenas fazer a contraprova ou a prova dos factos modificativos e extintivos.
A matéria quesitada, nomeadamente no tocante ao estado mental do Autor, é que é o essencial, sendo que a matéria indicada pela recorrente mais não seja do que matéria de impugnação.
Improcede, pois, esta parte do recurso.
*
A recorrente assaca ainda à sentença recorrida erro de julgamento por errónea interpretação do artigo 275.º do Código Civil.
Está em causa a seguinte parte da sentença que a seguir se transcreve:
“Preceitua-se o art° 275° do C.C.
“É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inépcia, inexperiência, ligeireza, a relação de dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios que, atendendo às circunstâncias do caso, sejam manifestamente excessivos ou injustificados.”
Para que há negócio usurário, é necessário verificar-se os seguintes: a situação da inferioridade duma parte, a consciência da outra parte que está tirar proveito da inferioridade de outrem e os benefícios manifestamente excessivos ou injustificados.
Indagaremos se no presente caso concorrem os pressupostos normativos referidos.
Em relação ao primeiro requisito, a inferioridade de outrem poderá resultar dos vários estados psicológicos, a situação da necessidade, inépcia, inexperiência, ligeireza, a relação de dependência, estado mental ou fraqueza de carácter.
Conforme o factualismo apurado, o Autor tem dificuldades mentais de entendimento, apenas conseguindo compreender o significado e alcance de ideias muito concretas, simples e directas. Não tem capacidade de tomar decisões de um modo autónomo, senão quantos a assuntos correntes, de prática habitual e corriqueira no seu dia-a-dia.
Em vida dos pais, eram estes quem o sustentavam, assistiam e ajudavam a reger a sua pessoa e património.
Dessa factualidade se resulta que o Autor apenas de ser adulto com 56 anos, dotando da capacidade para tratar os assuntos quotidianos, compreendendo o significado de ideias concretas, no entanto, não tendo capacidade para tomar decisões sobre assuntos abstractos e complexos. Daí se reconduz que o Autor não está com deficiência mental grave que o iniba a gerir a si próprio. Mas, uma coisa não pode negar é que o Autor tem um estado mental abaixo de uma pessoa normal, com um grau inferior a nível geral.
Assim, entendemos que o estado mental do Autor preenche o conceito de inferioridade a que se refere o preceito acima referido.
No que respeita ao requisito da consciência dessa característica do Autor pela Ré, cremos que está demonstrado, visto que está provado que Ré conhecia o Autor quando este era criança, conhecendo também esse perfil psicológico do Autor, ainda em vida dos pais do Autor.
Por último, analisamos se no caso reunir o requisito de tirar proveito dessa situação do Autor para obter, para si, benefícios manifestamente excessivos ou injustiçados.
Os dois negócios jurídicos cuja validade foi posta em causa são dois negócios jurídicos de compra e venda sobre duas fracções autónomas de que o Autor era o proprietário.
Não obstante o que consta das duas escrituras públicas, vem comprovado o contrário, ou seja, o Autor não recebeu o preço da Ré assim como que a Ré quis obter as fracções autónomas “A3” e “C3” gratuitamente.
Através desses dois negócios jurídicos de compra e venda, a propriedade dessas duas fracções autónomas é transmitida para a Ré sem que esta pagasse qualquer preço ao Autor, porém, consta das respectivas escrituras pública que o Autor já recebeu o preço. O benefício que a Ré obtém por esses dois negócios jurídicos celebrados com o Autor é injustificado.
Apesar de ficar provado que a Ré não fez qualquer entrega dos imóveis e que o Autor mantém-se a posse exclusiva da fracção “C3”, não é menos verdade que o direito de propriedade sobre os imóveis já passa a ser registado em nome da Ré. Em termos jurídicos, é a Ré e não o Autor agora é proprietária dos dois imóveis. Sendo ela titular registado dos imóveis, tem o direito de reaver para a sua esfera jurídica a posse dos imóveis objectos dos negócios de compra e venda, em qualquer altura, no futuro.
A transmissão da propriedade dos imóveis pelo Autor à Ré aparecia como ser onerosa, mas, na substância, é gratuita. O benefício que a Ré obtém com os dois negócios jurídicos é total, ela tira todo o proveito dos negócios sem que necessite de sacrificar um avo em contrapartida, enquanto o Autor perdeu a propriedade dos imóveis sem receber nada. Daí é claro que a Ré obter benefícios, manifestamente, injustificados por os negócios celebrados.
Perante o acima exposto, é cristiano que os dois negócios jurídicos celebrados entre o Autor e a Ré preenchem os requisitos legais de negócios usurários.”
Louvamos a acertada decisão que antecede com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC, julgando, assim, procedente o recurso nesta parte.
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Quanto à reconvenção, pede a recorrente a modificação do negócio jurídico de compra e venda, segundo juízos de equidade, referentes às fracções autónomas C3 e A3, tituladas pelas escrituras públicas outorgadas em 16/9/2015, reservando o usufruto das mesmas para o vendedor ou, caso assim não se entenda, aumentando o preço acordado nas ditas escrituras, actualmente no valor global de HKD1.900.000,00, para valor global não superior a HKD2.900.000,00.
Dispõe o artigo 276.º do Código Civil o seguinte:
“1. Em lugar da anulação, o lesado pode requerer a modificação do negócio segundo juízos de equidade.
     2. Requerida a anulação, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do negócio nos termos do número anterior.”
Como observa Mota Pinto, “A anulabilidade, prescrita no artigo 282.º, pode, porém, a requerimento do necessitado ou da parte contrária, ser substituída (art. 283.º) pela modificação do negócio, segundo juízos de equidade (redutibilidade).”3
Também Pedro Pais de Vasconcelos, citado por Gil de Oliveira e Cândido de Pinho4, opina no sentido de que “por um lado, o lesado pode livremente optar pela anulação ou pela modificação, conforme quiser; por outro lado, o usurário, se for pedida a anulação, pode oferecer a modificação, não lhe assistindo a possibilidade de requerer a anulação. Tal assimetria faz sentido, pois só pode requerer a anulação a parte a favor da qual aquela invalidade foi estabelecida. Já a modificação, enquanto correctora da injustiça interna do negócio, estará de acordo com os princípios de equivalência e do favor negotii, sendo desejável para o Direito – vd. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2.ª ed., 2003, 465.”
Efectivamente, a recorrente, sendo ela usurária, tem a faculdade de requerer a modificação do negócio segundo juízos de equidade.
Tendo-se oposto à anulação e aceitado a modificação dos negócios jurídicos de compra e venda referentes às fracções autónomas C3 e A3, tituladas pelas escrituras públicas outorgadas em 16 de Setembro de 2015, há-de proceder, nesta parte, o pedido reconvencional da Ré, restando apenas determinar o preço daqueles dois negócios jurídicos, segundo juízos de equidade.
Decidiu-se no Acórdão do Tribunal Superior de Justiça, de 3 de Fevereiro de 2009, Processo n.º 08A3942, citado a título de direito comparado: “A equidade tem de ser justificada, sob pena de a atribuição de uma indemnização a esse título corresponder a uma indemnização arbitrária.”
Segundo as certidões do registo predial das fracções C3 e A3, estas têm, respectivamente, uma área útil de 43.59m2 e 24.09m2. Ambas as fracções situam-se na freguesia ......, uma na Rua ......, outra no Pátio ......, ou seja, na zona entre Patane e São Paulo.
De acordo com os dados estatísticos publicados pela Direcção dos Serviços de Finanças5, o preço médio das fracções autónomas destinadas à habitação e sitas na zona de Patane e São Paulo, referente à primeira quinzena do mês de Agosto de 2019, é de MOP75.017,00 por metro quadrado.
Recorrendo à equidade, entendemos justo, adequado e razoável calcular o preço devido pela Ré de acordo com aquele valor médio.
As fracções autónomas C3 e A3 têm, respectivamente, uma área útil de 43.59m2 e 24.09m2, sendo o preço de MOP75.017,00 por cada metro quadrado, pelo que se aceita a modificação dos negócios jurídicos de compra e venda referentes às fracções autónomas C3 e A3, titulados pelas escrituras públicas outorgadas em 16 de Setembro de 2015, no cartório da Notário Privada G e exaradas, nessa ordem, a fls. 130 e seguintes e a fls. 128 e seguintes do livro 276, mediante um aumento do preço acordado nas ditas escrituras, actualmente no valor de HKD1.200.000,00 e HKD700.000,00, respectivamente, para valor de MOP3.269.991,00 e MOP1.807.159,50.
Concede-se, assim, parcial provimento ao recurso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pela Ré A, sendo admitido o pedido reconvencional formulado pela mesma.
Mais acordam em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela Ré, revogando a sentença recorrida e, em consequência, julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional, aceitando-se a modificação dos negócios jurídicos de compra e venda referentes às fracções autónomas C3 e A3, titulados pelas escrituras públicas outorgadas em 16 de Setembro de 2015, no cartório da Notário Privada G e exaradas, nessa ordem, a fls. 130 e seguintes e a fls. 128 e seguintes do livro 276, mediante um aumento do preço acordado nas ditas escrituras, actualmente no valor de HKD1.200.000,00 e HKD700.000,00, respectivamente, para valor de MOP3.269.991,00 e MOP1.807.159,50.
Custas do recurso interlocutório pelo Autor.
Custas da acção e da reconvenção pela Ré e Autor, respectivamente.
Registe e notifique.
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RAEM, 26 de Setembro de 2019

(Relator) Tong Hio Fong

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

(Segundo Juiz-Adjunto) Fong Man Chong
1 https://eserv4.dsf.gov.mo/selostat/?lang=pt
2 Código Civil Anotado, Volume I, pág. 374
3 Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, pág. 537
4 Código Civil de Macau, Anotado e Comentado, Volume IV, 2018, pág. 255
5 Página electrónica das Finanças - https://eserv4.dsf.gov.mo/selostat/?lang=pt
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Recurso Cível 639/2018 Página 1