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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 26 / 2007

Recorrente: A aliás A1
Recorrida: B






1. Relatório
   A aliás A1 instaurou perante o Tribunal Judicial de Base uma acção comum declarativa com processo ordinário n.º CV2-05-0041-CAO contra B e outras três rés com fundamento no incumprimento do contrato promessa verbal de compra e venda de um prédio por parte das rés, pedindo a condenação destas no pagamento ao autor do dobro do sinal e juros pagos por incumprimento culposo da 1ª ré, ou do sinal e juros pagos por nulidade da promessa ou enriquecimento sem causa.
   No despacho saneador, as 2ª a 4ª rés foram absolvidas da instância por ilegitimidade processual, decisão confirmada posteriormente pelo Tribunal de Segunda Instância em recurso interposto pelo autor.
   Por sentença de primeira instância, a acção foi julgada procedente, declarando nulo o contrato verbal celebrado entre o autor e a ré e a ré condenada a devolver ao autor o sinal e os juros pagos.
   Inconformada com a sentença, a ré recorreu para o Tribunal de Segunda Instância (processo n.º 577/2006) e conseguiu provimento do recurso, sendo a sentença de primeira instância revogada com a sua absolvição dos pedidos.
   Vem agora o autor recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O acórdão de que ora se recorre padece de nulidade por errada interpretação do regime do abuso de direito tendo, consequentemente, errado na subsunção da matéria de facto dada como provada àquele instituto;
   2. Nenhum dos três comportamento apontados para fundamentar a invocação do Abuso de Direito consubstanciam um venire contra factum proprium, não havendo assim lugar à aplicação do instituto do abuso de direito;
   3. A realidade dos factos dados como provados importa a revogação do acórdão de que ora se recorre;
   4. Em momento nenhum se considerou provado que o autor alguma vez tivesse abdicado ou recusado as formalidades previstas na lei para o contrato-promessa de compra e venda;
   5. Por acordo de ambas as partes a formalização do contrato-promessa foi sempre adiada;
   6. O autor manteve a intenção de celebrar o contrato de compra e venda do imóvel e manifestou tal intuito mediante a sucessiva entrega de quantias monetárias à ré, por conta desse mesmo interesse na compra;
   7. Apenas em 2003, perante a acentuada tendência do mercado imobiliário a ré, ora recorrida decidiu desconsiderar o interesse do autor;
   8. O escopo de regime previsto no art.º 410.º n.ºs 2 e 3 do Código Civil é proteger o promitente-comprador por ser este quem, na grande maioria dos casos, pode sair prejudicado pela não outorga do contrato definitivo, pela entrega de sinal para assegurar o seu interesse perante o promitente-vendedor;
   9. Precisamente porque o promitente-comprador está convencido da validade do negócio é que se comporta de forma consentânea, avançando, por exemplo, com o sinal. E precisamente por isso é que precisa da protecção, sob pena de se ver injustamente desembolsado das quantias entregues.
   10. Não se logrando fazer a prova da culpa exclusiva quanto ao vício, seja por parte do promitente-vendedor, seja por parte do promitente-comprador, a única forma de ver restituídos aqueles valores é invocar a nulidade do contrato com vista a formalizar a ilegitimidade da detenção dos mesmos por parte da promitente-vendedora;
   11. Não existe qualquer fundamento para a retenção, por parte da ré, dos valores que lhe foram pagos pelo autor;
   12. Pelo que, o autor é neste momento titular de um interesse que lhe confere o direito de invocar a nulidade do contrato-promessa por vício de forma, direito que não pode ser afastado pela figura do abuso de direito, posição que é sustentada por grande parte da doutrina;
   13. Contudo, caso assim não se considere, o que não se concede e apenas se admite por cautela de bom patrocínio, nenhum prejuízo se causa à ré com o exercício do direito à invocação da nulidade do contrato-promessa;
   14. Apenas excepcionalmente pode recorrer-se à figura do abuso de direito para obstar à invocação da nulidade por inobservância da forma legal do negócio celebrado, designadamente quando “a parte lesada pelo comportamento abusivo confiou no negócio e, com base nisso orientou a sua vida (...) provocando-lhe a declaração de nulidade danos irremovíveis através de outros meios jurídicos” – cfr. nota 101 do Código Civil Anotado, Abílio Neto, 9.ª Edição, 1995, Ediforum, Lisboa;
   15. Não foi invocado qualquer dano por parte da ré, ora recorrida porque de facto, apenas retirou vantagens (legalmente injustificáveis);
   16. Como bem defende Orlando de Carvalho naquela mesma obra (pág. 69), “(...) se bem que, como vimos, o abuso apenas seja verdadeiramente sancionável se se projecta negativamente na esfera jurídica de outrem (...).”;
   17. A Justiça é o fundamento da interpretação/aplicação do Direito! Face ao exposto, não soçobram fundamento para que o caso concreto seja enformado no instituto do abuso de direito sob a modalidade de venire contra factum próprium sob pena de o autor ficar injusta e irremediavelmente privado de todos os valores pagos à ré ao longo de todos estes anos, sofrendo um prejuízo injustificável sem que haja sido feita a prova suficiente da sua culpa;
   18. A manutenção da decisão de que ora se recorre com fundamento na figura do abuso de direito importa um enriquecimento, também injusto e injustificável, por parte da ré, uma vez que ficou feita a prova da sua culpa quanto aos factos que alega para invocar o instituto do abuso de direito;
   19. Há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (cfr. art.º 474.º do CC66).”
   Pedindo que o recurso seja julgado procedente com a revogação da decisão recorrida ou, no caso de não obter o provimento do recurso, a ré condenada a restituir ao autor os sinal e juros pagos que se locupletou à custa deste.
   
   Na resposta, a recorrida concluiu de seguinte forma:
   “1. É ilícito o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;
   2. O instituto do “abuso de direito” constitui uma “válvula de segurança” com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto redundaria o exercício de um direito conferido por lei;
   3. Consubstancia flagrante abuso de direito a conduta do titular do direito que contraria todo o seu anterior comportamento, ao longo de dez anos, que tornava justificada a confiança e expectativa de não pretender exercer esse direito, levando a recorrida a acreditar na validade do contrato e a actuar em conformidade com essa convicção;
   4. Por parte da recorrida existiu um verdadeiro investimento de confiança, que, do seu lado, se traduziu na vinculação aos termos do negócio aceite e dado como bom por ambas as partes, na sua actuação de boa fé ao aceitar todas as condições propostas pelo recorrente, nomeadamente, o pagamento de juros de mora e, ainda, no desinvestir na promoção da venda do imóvel, retirando o bem do mercado, durante anos;
   5. Importa ter presente que com a sua conduta desenvolvida ao longo de vários anos após o aludido acordo verbal, o recorrente criou na recorrida a natural e justificada convicção que entre os mesmos se tinha firmado um acordo válido e para se cumprir, pois que a inactividade daquele durante o período de tempo em causa, criou na recorrida uma expectativa fundada de que o mesmo não iria invocar a sua nulidade com base na natureza verbal do contrato;
   6. A invocação da invalidade do contrato verbal parte do recorrente, quando sempre da sua conduta resultou que não o iria fazer e sendo, para mais, quem provocou a nulidade formal, resulta num ilegítimo exercício de um direito e num flagrante atentado à boa fé, resultando tal prática num venire contra factum proprium;
   7. O enorme hiato de tempo decorrido para o exercício do direito deve desactivá-lo, pois o decurso dos anos criou uma fundada convicção de que não seria jamais exercido (Verwirkung), pelo que o exercício do direito resulta numa manifesta deslealdade e numa clamorosa ofensa à boa fé, à justiça e ao sentimento jurídico dominante;
   8. O recorrente não pode alegar a nulidade do contrato-promessa verbal, por preterição da formalidade do art.º 410.º, n.º 2 do Cód. Civil, quando intencional e propositadamente, adoptou um comportamento destinado a criar na promitente vendedora a justa convicção e confiança de que a sua irregularidade formal nunca seria invocada;
   9. As quantias prestadas pelo recorrente resultam dos termos do contrato em que as partes empenharam a sua palavra, deram como bom e se comprometeram a cumprir, pelo que o abuso de direito elimina os efeitos que o recorrente esperava obter como a declaração da nulidade que ele próprio provocou.”
   Pedindo que seja negado provimento ao recurso.
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Factos provados
   Foram considerados provados os seguintes factos pelas instâncias:
   “Da Matéria de Facto Assente:
   O prédio sito na [Endereço] encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, a fls. XXX do livro BXXK e inscrito a favor da ré, B, sob o n.° XXXXG pelo preço de HKD$60,000,000.00 (alínea A da Especificação).
   Em 1995, esse prédio estava inscrito a favor da C (alínea B da Especificação).
   Em 1995, o autor e D, em representação da ré, celebraram um acordo verbal que tem por objecto a transmissão do prédio a favor do autor pelo preço de HKD$60,000,000.00 (alínea C da Especificação).
   Com base nesse acordo, o autor entregou, no dia 26 de Junho de 1995, à ré, através da E, 10% do preço acordado, ou seja HKD$6,000,000.00, equivalente a MOP$6,180,000.00 (alínea D da Especificação).
   Tendo E assinado um recibo declarando por escrito que recebera o sinal, no valor de HKD$6,000,000.00, pela venda desse prédio (alínea E da Especificação).
   Posteriormente, foi preparada no escritório da Advogada, Dra. F, uma minuta do contrato-promessa de compra e venda, entre a C, a ré e o autor com a qual o autor e a ré concordaram (alínea F da Especificação).
   Nos termos da minuta, o autor adquiria formalmente à C o prédio pelo preço de HKD$60,000,000.00, equivalente a MOP$61,800,000.00, que deveria ser pago da seguinte forma:
- HKD$6,000,000.00 a título de sinal (que foi pago no dia 26 de Junho de 1995, mediante cheque n.° XXXXXX do Banco;
- HKD$10,000,000.00 a ser pagos no dia de assinatura do contrato-promessa como reforço do sinal;
- HKD$15,000,000.00 até seis meses depois da assinatura do contrato-promessa; e
- HKD$29,000,000.00 no dia da outorga da escritura pública (alínea G da Especificação).
   Posteriormente, o autor entregou sucessivamente as seguintes quantias à ré:
- Em 23/12/1995 - HKD$57,534.25, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00 relativo ao período decorrido entre 21/11/1995 e 20/12/1995;
- Em 5/2/1996 - HKD$59,452.05, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00 relativo ao período de 21/12/1995 a 20/1/1996;
- Em 28/2/1996 - HKD$59,452.05, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00, relativo ao período de 21/01/1996 a 20/02/1996;
- Em 26/3/1996 - HKD$55,616.44, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00 relativo ao período de 21/2/1996 a 20/3/1996;
- Em 21/5/1996 - HKD$116,986.30, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00 relativo ao período de 21/3/1996 a 20/5/1996;
- Em 26/6/1996 - HKD$59,452.05, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00 relativo ao período de 21/5/1996 a 20/6/1996;
- Em 20/12/1996 - HKD$612,739.73, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$10,000,000.00 relativo ao período de 21/6/1996 a 20/9/1996 e juros a título de juros de 7 % sobre o montante de HKD$25,000,000.00 relativo ao período de 21/9/1996 a 20/12/1996;
- Em 14/5/1997 - HKD$580,137.00, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$25,000,000.00 relativo ao período de 21/12/1996 a 20/4/1997;
- Em 13/10/1997 - MOP$877,397.28, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$25,000,000.00 relativo ao período de 21/4/1997 a 20/10/1997;
- Em 20/7/1998 - HKD$1,308,904.10, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$25,000,000.00 relativo ao período de 21/10/1997 a 20/7/1998;
- Em 20/12/1998 - HKD$733,561.64, a título de juros de 7% sobre o montante de HKD$25,000,000.00 relativo ao período de 21/7/1998 a 20/12/1998;
- Em 26/10/1999 - HKD$484,246.58, a título de juros de 7 % sobre o montante de HKD$25,000,000.00 relativo ao período de 21/12/1998 a 1/3/1999 (alínea H da Especificação).
   O contrato-promessa constante da minuta nunca foi assinado (alínea I da Especificação).
   Em 15 de Outubro de 1999, a ré adquiriu o prédio, através de escritura pública outorgada no Cartório da Notaria Privada, Dra. F (alínea J da Especificação).
   
   Da Base Instrutória:
   Nos termos do acordo referido em C) dos factos assentes, D, em representação da ré, B, comprometeu-se a adquirir o prédio referido em A) dos factos assentes junto da C para, posteriormente, transmiti-lo ao autor ou promover a transmissão do terreno ao autor pela C (Resposta ao quesito 1º).
   Parte da quantia referida em D) dos factos assentes era de um parceiro do autor com o qual este havia acordado a futura compra do prédio (Resposta ao quesito 2º).
   O parceiro do autor perdeu interesse na celebração da compra e venda por o mercado imobiliário ter caído bastante (Resposta ao quesito 3º).
   Mantendo o autor e a ré interesse na compra e venda, mantiveram-se vinculados nos termos que constam da minuta do referida G) dos factos assentes (Resposta ao quesito 4º).
   O autor não tinha liquidez necessária para suportar o preço (Resposta ao quesito 5º).
   Para demonstrar interesse na compra e venda e dar valor ao acordo verbal, o autor declarou que iria começar a pagar os juros de mora a partir de Dezembro de 1995. Por força disso, as quantias referidas em H) dos factos assentes foram sendo entregues (Resposta aos quesitos 6º, 22º e 23º).
   Os juros referidos em H) dos factos assentes foram entregues porque o autor sempre manteve o interesse na aquisição do prédio (Resposta ao quesito 7º).
   A ré recusa-se a fazê-lo (cfr. fls. 65) (Resposta ao quesito 12º).1
   No momento da propositura da acção, o autor não tem interesse na celebração do contrato de compra e venda (Resposta ao quesito 13º).
   O autor sabia que o prédio era para ser registada em nome da ré porque a C o dispôs a favor da ré (Resposta ao quesito 14º).
   No início do ano de 1995, o autor, alegando ter relações privilegiadas com empresários do ramo imobiliário e com a C, sugeriu à ré a realização de um negócio relativo ao prédio (Resposta ao quesito 15º).
   O autor referiu que iria procurar empresários interessados na aquisição do prédio e que iria ajudar a ré a vendê-lo (Resposta ao quesito 16º).
   Propondo que os termos e condições do contrato-promessa de compra e venda seguissem a minuta referida em F) dos factos assentes (Resposta ao quesito 17º).
   A minuta foi elaborada por um advogado (Resposta ao quesito 18º).
   A ré chegou a pedir ao autor para assinar o contrato-promessa constante da minuta (Resposta ao quesito 19º).
   O autor recusou-se a fazê-lo (Resposta ao quesito 20º).
   Explicando que continuava interessado na aquisição do prédio mas que vários problemas financeiros estavam a criar dificuldades para a sua finalização (Resposta ao quesito 21º).
   Em 15 de Outubro de 1999, o autor informou a ré de que os problemas financeiros não tinham sido ultrapassados (Resposta ao quesito 25º).
   Provado o que consta da carta de fls. 109 e 110 (Resposta aos quesitos 26º e 27º).
   Provado o que consta da carta de fls. 113 (Resposta ao quesito 28º).”
   
   
   2.2 Abuso do direito
   Refutando a decisão do Tribunal de Segunda Instância, o recorrente considera que os factos apontados no acórdão recorrido não consubstanciam um venire contra factum proprium, não justificando a aplicação do instituto do abuso do direito. E salienta que a culpa pela nulidade do contrato reparte-se igualmente pelas duas partes e em momento nenhum se ficou provado que o recorrente alguma vez tivesse abdicado ou recusado as formalidades previstas na lei para o contrato-promessa de compra e venda.
   
   Ora, da matéria apurada não resulta o que vem alegado pelo recorrente.
   Se é verdade que foram ambas as partes que contribuíram em 1995 para celebração do contrato-promessa em causa pela forma verbal, já não o é pelo menos a partir de Dezembro deste ano, momento em que o recorrente começou a pagar à recorrida juros de mora como forma de adiar a assinatura do contrato-promessa constante da minuta já elaborada, alegando vários problemas financeiros que estavam a criar dificuldades para a sua finalização, isto é, a manutenção do acordo verbal foi a pedido e por causa do recorrente.
   Este entendimento é ainda reforçado pois, antes da propositura da presente acção perante o Tribunal Judicial de Base, o recorrente até pediu à recorrida em 2003 uma oportunidade para a realização do negócio em causa, manifestando que mantinha interesse neste sentido.
   
   Vir agora o recorrente a alegar na acção que afinal perdeu interesse no negócio e invocar a nulidade do contrato-promessa verbal por vício de forma não pode deixar de ser um venire contra factum proprium, traduzido na adopção de uma conduta em contradição com uma posição jurídica anteriormente assumida pelo agente.
   
   
   O tribunal recorrido considera que a invocação pelo recorrente da nulidade do contrato-promessa por vício de forma constitui abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium que obsta aos efeitos pretendidos pelo mesmo.
   Por sua vez, o recorrente sustenta que o acordo em causa é nulo por inobservância da forma prevista no art.º 410.º, n.º 2 do Código Civil de 1966 (CC) e deverá ser restituído tudo o que tiver sido prestado, salientando que esta norma tem em vista proteger os promitentes compradores e não foi alegado dano pela outra parte, a recorrida, pelo que não se pode recorrer excepcionalmente à figura do abuso do direito para obstar à invocação da nulidade por inobservância da forma legal do negócio celebrado.
   
   Todos estão de acordo de que o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o recorrente e a recorrida, por revestir apenas a forma verbal, é nulo nos termos do art.º 220.º do CC por inobservância da forma escrita exigida pelo art.º 410.º, n.º 2 do mesmo Código.
   E tal como foi referido, também entendemos que as condutas do recorrente consubstancia um venire contra factum proprium.
   O venire contra factum proprium não é proibido genericamente por lei.
   No entanto, prescreve o art.º 334.º do CC (de conteúdo igual ao art.º 326.º do CC de 1999):
   “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
   Preenchidos estes requisitos, o venire contra factum proprium é integrável na figura do abuso do direito prevista na norma referida. Aquele que deu causa a uma nulidade de forma e a alegue cometeu um facto ilícito por agir contra o princípio da boa fé.
   Daí a questão da possibilidade de afastar a procedência de declaração de nulidade do negócio por vício de forma pedida por quem agiu com abuso do direito.
   
   Na doutrina conhece a tendência de admitir essa possibilidade.
   Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela mostraram a posição negativa ao considerar que o art.º 227.º do CC sobre a culpa na formação dos contratos é “aplicável ao caso de uma das partes induzir dolosamente a outra à inobservância da forma prescrita na lei para o contrato. Pretender aplicar ao caso a figura do abuso do direito é que parece expediente de todo o ponto inapropriado.”2
   
   Também o Professor Menezes Cordeiro entendia que “a doutrina encontra dificuldades para, em nome da boa fé, formular uma regra de restrição às nulidades formais.”3
   
   Outros autores pronunciam pelo sentido positivo.
   Ainda nos trabalhos preparatórios do CC de 1966, o Professor Rui de Alarcão deixou as observações em relação à norma que comina com nulidade uma declaração negocial que carece da forma legal (art.º 220.º do CC):
   “No tocante às consequências da inobservância da forma legalmente prescrita, importa ainda acentuar que, em virtude das regras sobre a culpa in contrahendo e dos princípios gerais da boa fé ou do abuso do direito, poderá em certos casos ter-se excluída a possibilidade de invocação da nulidade por vício de forma, ou, de todo o modo, reconhecer-se lugar a uma indemnização, ao menos pelo chamado interesse ou dano negativo ou da confiança.
   Deixaremos a resolução do problema entregue àquelas regras e princípios, abstendo-nos, neste lugar, de lhe fazer qualquer referência.”4
   
   Manuel de Andrade admite a aplicação do regime do abuso do direito para obstar certas regras legais, evitando situações de injustiça clamorosa:
   A doutrina geral do abuso de direito “torna-se imprescindível em qualquer sistema jurídico, para obstar a que as determinações abstractas da lei – incluindo as que apenas sancionam estipulações negociais – possam ser eficazmente invocadas até mesmo quando isso levaria, na espécie, a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar, se as tivesse vislumbrado.”
   “Assim, por exemplo, nos casos de nulidade por vício de forma, quando ocorrida (essa nulidade) em circunstâncias que tornam a sua arguição verdadeiramente escandalosa. Suponha-se, v.g., que a nulidade é arguida por um contratante que a provocou, fazendo como que falsificar por outrem a sua própria assinatura (foi outrem, de acordo com ele, que exarou no documento, em jeito de assinatura, o nome desse contratante), ou induzindo dolosamente a outra parte a não insistir pela formalização do negócio; ou que o mesmo contratante procedeu em termos de criar no outro a espectativa de que a nulidade jamais seria arguida – aceitando, v.g., públicos, reiterados e dispendiosos testemunhos de gratidão por uma liberalidade feita, aliás, sem a necessária documentação.”5
   
   Vaz Serra aponta a necessidade de ponderar os interesses subjacentes à forma legal e de combater o abuso do direito:
   “Um afastamento da imposição de forma é, de facto, justificado quando aquele que recusa o cumprimento de uma promessa alegando a inobservância da forma tinha impedido dolosamente a observância da forma. O princípio de que ninguém deve poder tirar da sua própria conduta dolosa uma vantagem jurídica tem aqui precedência sobre o princípio da forma. Além disso, devia-se prescindir da imposição de forma quando um contrato obrigacional bilateral foi cumprido no principal por ambas as partes.”6
   “Se a nulidade por falta de forma legal (Cód. Civil art.º 220.º) é de interesse e ordem pública, também o é a ilegitimidade do exercício do direito por abuso deste.
   Não parece, pois, que a nulidade formal de um negócio jurídico deva ter sempre prioridade sobre a ilegitimidade do exercício do direito em consequência de abuso.”7
   
   Mota Pinto entende igualmente que “o intérprete, desde que lealmente aceite como boa e valiosa para o comum dos casos a norma que prescreve a nulidade dos negócios feridos de vício de forma, está legitimado para, nos casos excepcionalíssimos do artigo 334.º, afastar a sua aplicação, tratando a hipótese como se o acto estivesse formalizado.”8
   
   Menezes Cordeiro chama inalegabilidade formal “à situação em que a nulidade derivada da falta de forma legal de determinado negócio não possa ser alegada sob pena de se verificar um ‘abuso do direito’, contrário à boa fé. A ocorrência paradigmática seria a de um venire contra factum proprium específico: o agente convence a contraparte a concluir um negócio nulo por falta de forma, prevalece-se dele e, depois, vem alegar a nulidade.”9
   O Professor admite hoje que as próprias normas formais cedam perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis, mas propondo certos requisitos para afastar as exigências de forma legal.
   “No actual estádio de avanço da Ciência do Direito, teremos de partir do modelo da tutela da confiança. A inalegabilidade aproxima-se, assim, do venire, requerendo, como ele:
   - a situação de confiança;
   - a justificação para a confiança;
   - o investimento de confiança;
   - A imputação de confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências.
   
   Todavia, tratando-se de inalegabilidades formais, teríamos de introduzir, ainda, três proposições:
   - devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca, também, os de terceiros de boa fé;
   - a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar;
   - o investimento de confiança apresentar-se-á sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via.”10
   
   Os quatros requisitos gerais são explicados na mesma obra a propósito da tutela da confiança:
   “A situação de confiança pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa fé subjectiva: a posição da pessoa que não adira à aparência ou que o faça com desrespeito de deveres de cuidado merece menos protecção.
   A justificação da confiança requer que esta se tenha alicerçado em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal.
   O investimento de confiança exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efectivo, desenvolvido toda uma actuação baseada na própria confiança, actuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis; isto é: uma confiança puramente interior, que não desse lugar a comportamentos, não requer protecção.
   A imputação da confiança implica a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa vai-se, em regra, onerar outra; isso implica que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada.”11
   
   Entendemos que é possível a invocação do abuso do direito para afastar as disposições legais sobre a forma desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que se torna válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.
   
   No presente caso, ficou provado que foi celebrado um acordo verbal entre o recorrente e a recorrida no ano 1995, tendo por objecto a transmissão do prédio a favor do recorrente;
   Com base neste acordo, o recorrente entregou à recorrida 10% do preço acordado em Junho de 1995;
   Foi preparada a minuta do contrato-promessa de compra e venda, mas o recorrente recusou a assiná-lo, invocando dificuldades financeiras. Para demonstrar interesse no negócio e dar valor ao acordo verbal, o recorrente começou a pagar 12 vezes de juros de mora à recorrida de Dezembro de 1995 a Outubro de 1999, altura em que o recorrente informou à recorrida de que os problemas financeiros não tinham sido ultrapassados;
   Em Outubro de 2003, o recorrente escreveu ainda uma carta à recorrida para pedir mais oportunidade a fim de comprar o terreno em causa;
   Em resposta a essa carta, a recorrida afirmou que esperava durante anos para o recorrente encontrara um comprador final, sem obter resposta da parte do recorrente.
   
   Da matéria fáctica apurada evidencia que existe uma situação de confiança por parte da recorrida de que o acordo verbal iria ser cumprido, face ao pagamento do sinal e juros de mora pelo recorrente e a sua manifestação de manter sempre interesse na conclusão do negócio, aguardando um comprador final a ser recomendado pelo recorrente à recorrida.
   Por seu lado, o recorrente realizou pagamentos durante quatro anos e manifestou interesse no cumprimento do acordo quatro anos depois do último pagamento, contribuiu essencialmente para a constituição da confiança da recorrida. Não há terceiros de boa fé relativos ao acordo.
   O contrato não foi reduzido a escrito por causa do recorrente. Com a propositura da presente acção, este afirmou que perdeu interesse do negócio e suscitou a nulidade do acordo por inobservância da forma legal, o que mostra que o recorrente foi cumprindo o estipulado no acordo quando lhe convinha o cumprimento e veio pedir a nulidade quando o cumprimento já não lhe interessa. Agiu assim o recorrente em manifesta violação do princípio da boa fé que consubstancia no abuso do direito, determinante da inalegabilidade do vício formal do acordo.
   
   
   2.3 Enriquecimento sem causa
   O recorrente considera que, a manter a decisão recorrida por abuso do direito, importa um enriquecimento por parte da recorrida e há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.
   
   Sobre o enriquecimento sem causa, prescrevia o art.º 473.º do CC:
   “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
   2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”
   
   Perante esta norma é evidente o fracasso da tese do recorrente.
   O acordo verbal em causa, embora ferido do vício formal conduzível à sua nulidade, mantém-se válido por ter sido excluída a possibilidade de suscitar a nulidade por parte do recorrente. Aqui, a inalegabilidade da nulidade por abuso do direito representaria, na realidade, uma forma genérica de confirmação forçada do negócio nulo.
   O recebimento pela recorrida dos pagamentos feitos pelo recorrente tem por fundamento o acordo entre ambos. Sendo válido o acordo, não se verifica o requisito de falta de causa justificativa e consequentemente não há enriquecimento sem causa por parte da recorrida.
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
   Custas pelo recorrente.

   Aos 27 de Junho de 2008.


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 De acordo com o conteúdo do quesito 11°, esta resposta significa que a ré recusa-se a devolver as quantias entregues pelo autor.
2 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 216. Em sentido semelhante, Antunes Varela, anotação na RLJ, n.º 129, p. 381.
3 Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, p. 785 a 796.
4 Rui de Alarcão, Forma dos Negócios Jurídicos, em BMJ, n.º 86, p. 184-185.
5 Manuel de Andrade, Sobre a Validade das Cláusulas de Liquidação de Partes Sociais pelo Último Balanço, em RLJ, n.º 87, p. 307 e 308.
6 Vaz Serra, anotação em RLJ, n.º 103, p. 451
7 Vaz Serra, anotação em RLJ, n.º 115, p. 187.
8 Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1990, p. 439.
9 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, Parte Geral, tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 299.
10 António Menezes Cordeiro, obra citada, p. 311.
11 António Menezes Cordeiro, obra citada, p. 292 e 293.
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Processo n.° 26 / 2007 1