--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). --------------
--- Data: 25/10/2019 --------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Chan Kong Seng------------------------------------------------------------------------
Processo n.º 834/2019
(Recurso em processo penal)
Recorrente arguido: A
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Por acórdão proferido a fls. 283 a 290v do ora subjacente Processo Comum Colectivo n.º CR4-18-0380-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material de um crime consumado de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 4, alínea b), do Código Penal (CP), em dois anos e nove meses de prisão, e no pagamento de dois milhões de dólares de Hong Kong como quantia indemnizatória, arbitrada oficiosamente, à entidade ofendida, com juros legais contados a partir da data desse acórdão até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no seu essencial, e rogando o seguinte na sua motivação de fls. 312 a 340 dos presentes autos correspondentes:
– houve erro notório, por parte do Tribunal sentenciador, na apreciação da prova (porquanto diversamente do entendido por esse Tribunal, os elementos dos autos dariam para afastar a intenção do próprio arguido de se apropriar do montante de dois milhões dólares de Hong Kong, já que ele entregou efectivamente esse montante a um cliente), sendo certo que o próprio arguido também é ofendido no caso dos autos, pelo que deveria ser ele absolvido do crime por que vinha condenado em primeira instância, por força do princípio in dubio pro reo, e como tal também absolvido do pagamento da indemnização civil;
– e subsidiariamente falando, ante nomeadamente as condições pessoais e familiares do próprio arguido, que é um delinquente primário, não deveria o Tribunal recorrido não ter decretado a suspensão da execução da pena de prisão.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 342 a 345v dos autos, no sentido de manutenção do julgado.
Subido o recurso, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 360 a 362, pugnando também pela manutenção da decisão recorrida.
Cumpre decidir, nos termos permitidos pelo art.o 407.o, n.o 6, alínea b), do CPP.
2. Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– o texto do acórdão ora recorrido consta de fls. 283 a 290v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido;
– o Tribunal recorrido chegou a expor aí as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos (cfr. o teor do aresto recorrido, a partir do antepenúltimo parágrafo da sua página 5 até ao terceiro parágrafo da página 9, a fls. 285 a 287).
3. Nota-se, de antemão, que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Decidindo nesses parâmetros, e no tocante à questão, esgrimida pelo arguido ao Tribunal sentenciador recorrido, de erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP):
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, vistos todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente que o resultado de julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo tenha sido obtido com violação de quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, havendo, pois, que naufragar o pedido de absolvição do crime por que vinha o recorrente condenado em primeira instância, tendo-se o recorrente limitado a tentar fazer impor o seu ponto de vista sobre a factualidade provada, ao arrepio, assim, do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP.
Com efeito, o Tribunal recorrido já explicou concretamente, com congruência lógica, por quê é que não acreditou na versão fáctica sustentada pelo arguido (cfr. o teor da fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, especialmente nos segundo e terceiro parágrafos da página 9 do acórdão recorrido, a fl. 287).
Em face da factualidade assim dada por provada sem erro notório na apreciação da prova, foi também acertada, por legal e justa, a decisão do Tribunal sentenciador de arbitramento oficioso da indemnização, feita nos termos do art.o 74.o do CPP.
Por fim, quanto ao subsidiário pedido de suspensão da execução da pena de prisão: estando em causa o avultado montante de dois milhões de dólares de Hong Kong, o que reclama naturalmente elevadas exigências da prevenção geral do tipo-de-ilícito praticado pelo arguido, entende-se, em sede de ponderação do critério material vertido no art.o 48.o, n.o 1, do CP, que a mera censura dos factos e a ameaça da execução da pena de prisão não dão para prosseguir as finalidades da punição, sobretudo a nível da prevenção geral de crime falando, pelo que naufraga o pedido de suspensão da pena, a despeito de ser o arguido um delinquente primário.
É, pois, de louvar mesmo toda a decisão recorrida.
Há que rejeitar o recurso, nos termos dos art.os 407.º, n.º 6, alínea b), e 410.º, n.º 1, do CPP, sem mais indagação por desnecessária, atento o espírito do n.º 2 desse art.º 410.º deste diploma.
4. Nos termos expostos, decide-se em rejeitar o recurso.
Pagará o arguido as custas do recurso, com três UC de taxa de justiça e quatro UC de sanção pecuniária individual (pela rejeição do recurso), e duas mil patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Macau, 25 de Outubro de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator do processo)
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