Processo nº 1152/2018
Data do Acórdão: 10OUT2019
Assuntos:
Posse
Anulação oficiosa da decisão de facto
Repetição de julgamento de facto
Usucapião
Constituição de propriedade horizontal
SUMÁRIO
1. Posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real; e
2. Ficou provado que o rés-do-chão e o 1º andar do prédio são unidades prediais autónomas e independentes, com a mesma área, com acessos independentes e directos à via pública e com contadores de água, luz, gás e telefone também independentes e que o 1º andar é sempre tido como uma fracção que funciona bem em termos das utilidades que proporciona e do seu aproveitamento para fins habitacionais, o simples facto de o prédio não ter sido ainda constituído em propriedade horizontal não deve ser impeditivo de declarar, nos termos permitidos nos artºs 1315º/1 e 1317º/1, ambos do CC, os possuidores do 1º andar e o possuidor do rés-do-chão, como proprietários do 1º andar e do rés-do-chão do prédio, respectivamente, enquanto fracção autónoma a constituir em sede da execução da sentença onde se procederá à constituição judicial da propriedade horizontal nos termos do CC.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 1152/2018
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos da acção declarativa ordinária, registada com o nº CV1-12-0059-CAO e correu os seus termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, de que são Autor A, e Réus B, ora ausente em parte incerta e o Ministério Público, e oponentes C, D e E, todos devidamente identificados nos autos, foi afinal proferida a seguinte sentença julgando improcedentes todos os pedidos formulados, quer os pelo Autor quer os pelos Oponentes:
A, casado, de nacionalidade chinesa, portador do BIRM nº ... e residente em Macau na Taipa, Rua..., nº 15,
Vem instaurar a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra,
B, ausente em parte incerta1;
E na qual são oponentes:
C, promitente vendedora do prédio sito em Macau, na Rua..., nº 15, na Ilha da Taipa;
D, casado com F no regime de comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº ... e residente em Macau….;
e
E, casado com G no regime de comunhão de adquiridos, titular do BIRM nº ... e residente em Macau
…..
Na sua p.i. alegava o Autor que há mais de 22 anos que tem a posse do prédio a que se reportam os autos a qual adquiriu no ano de 1990 através de um contrato de promessa de compra e venda, tendo desde essa altura passado a residir com a sua esposa e filhos no 1º andar do referido prédio, explorando no R/c do mesmo um estabelecimento de Pastelaria, o que tem vindo a fazer até ao presente de forma pública e pacífica.
Concluindo pede que a acção seja julgada procedente, por provada, e, em consequência proferida sentença nos termos da qual seja reconhecida a posse pacífica, pública e de boa-fé do Autor por mais de 20 anos em relação ao prédio urbano composto de R/C e 1º andar sito na Rua... nº 15 na Ilha da Taipa.
Posteriormente veio o Autor ampliar o pedido no sentido de:
a) Ser o Autor declarado legítimo proprietário, da fracção autónoma designada por nº ..., cuja finalidade é para habitação do prédio composto por R/C e 1º andar para todos os devidos efeitos legais, nomeadamente o de poder registar a seu favor junto da Conservatória do Registo Predial;
b) Ser cancelado o registo existente na Conservatória do Registo Predial em nome de B.
O Réu foi citado editalmente para contestar tendo silenciado, vindo a ser citado em sua representação o Ministério Público o qual contestou, invocando a ineptidão da p.i. e deduzindo oposição ao valor da causa, defendendo-se em tudo o mais por impugnação.
O Autor replicou alegando defender-se à matéria da excepção por impugnação e ampliando o pedido, nos termos já antes indicados.
Pela Oponente C foi deduzida oposição espontânea impugnando toda a matéria da p.i. e alegando que em 11.06.1950 o pai da oponente adquiriu a B o imóvel em causa pagando o preço na íntegra, sendo que a partir dessa data a família da oponente até Janeiro de 1991 passou a residir no imóvel em causa. Em Dezembro de 1990 a Oponente e o Autor celebraram um contrato de promessa nos termos e condições que indica, sendo que as condições a que estava sujeito nunca se verificaram vindo a ora Oponente a exigir do aqui Autor a devolução do imóvel e oferecendo-se para devolver o sinal como estava estabelecido, o que o Autor contudo, não aceitou, continuando a Oponente ao longo dos anos a reclamar do Autor a entrega do imóvel e a querer devolver o sinal recebido. Mais invoca que o Autor nunca pagou o preço total da promessa de compra e venda.
Concluindo pugna a oponente pela improcedência da acção e pede a condenação do Autor a reconhecer que o imóvel pertence à oponente por ter sido pelo seu pai comprado e integralmente pago o preço e por o ter adquirido por usucapião.
Pelo Autor foi deduzida contestação à oposição invocando a ilegitimidade da Oponente, a prescrição do direito da Oponente e que esta nunca foi proprietária do prédio a que se reportam os autos, defendendo-se em tudo o mais por impugnação.
A Oponente C replicou respondendo à matéria das excepções invocadas pelo Autor impugnando-as.
Pelo Oponentes D e E foi deduzida oposição espontânea impugnando os factos alegados pelo Autor e invocando ser este mero arrendatário do 1º andar do prédio a que se reportam os autos do qual são possuidores as oponentes há mais de 20 anos como se coisa sua fosse e sem oposição de alguém, por o seu pai o ter adquirido a H em 22.10.1962 por escrito particular o qual por sua vez havia adquirido todo o prédio em 1950 por escrito particular, sendo que, desde então H se comportou como dono do R/c e o pai das Oponentes I passou a actuar como dono do 1º andar onde viveu com a sua família, vindo mais tarde a mudar-se ali continuando a residir o Oponente D até que a partir de 1989 passaram a dar o 1º andar do prédio dos autos em arrendamento o que em 1991 fizeram ao aqui Autor que desde então vem pagando as respectivas rendas.
Concluindo pugna pela improcedência da acção e pede que se declare serem os Oponentes donos do 1º andar do prédio a que se reportam os autos por o terem adquirido por usucapião ou se assim não se entender que sejam declarados comproprietários do prédio por o terem adquirido por usucapião, concluindo pela improcedência do pedido dos Oponentes.
Notificada desta oposição vem a Oponente C reconhecer que o seu pai havia vendido o 1º andar do prédio a que se reportam os autos a I e que a sua oposição respeita apenas ao R/c do prédio, pedindo que se declare para todos os efeitos constituída por usucapião a propriedade horizontal do prédio a que se reportam os autos, tendo a Oponente C adquirido por usucapião a fracção autónoma sita no Rés-do-chão do prédio.
Pelo Autor foi deduzida contestação à oposição invocando a ilegitimidade dos Oponentes, a prescrição do direito da Oponente e que estes nunca foi proprietária do prédio a que se reportam os autos, defendendo-se em tudo o mais por impugnação, concluindo pela improcedência do pedido dos oponentes.
Os oponentes D e E replicaram respondendo à matéria das excepções invocadas pelo Autor impugnando-as.
Foi proferido despacho saneador onde foi julgada improcedente a alegada ineptidão da p.i., decidida a atribuição do valor à causa, julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade quanto aos oponentes, e deferida a ampliação do pedido, sendo seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal mantendo-se a validade da instância.
As questões a decidir nesta sede processual consiste em apreciar se o Autor adquiriu por usucapião o prédio a que se reportam os autos, ou da aquisição por usucapião da propriedade horizontal do prédio e sua constituição em duas fracções autónomas sendo cada uma delas adquirida por cada um dos Oponentes por usucapião.
Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
a) O prédio urbano composto de R/C e 1º andar sito na Rua... nº 15 na Ilha da Taipa, RAEM, está registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... inscrito a fls. … do Livro-…, registado junto da Repartição de Finanças com a matriz nº ... e com o valor matricial de MOP1,620.00 (mil seiscentas e vinte patacas);
b) A matriz n° ... junto da Repartição de Finanças acima referida, está inscrito a favor de J e K, porém, no registo da Conservatória de Registo Predial de Macau constam nomes diferentes daqueles, ou seja, inscrito em nome de B, conforme inscrição nº ..., apresentação nº1 de 4.11.1931;
c) De acordo com a planta cadastral nº 61121008 emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, as confrontações do imóvel são:
NE: Rua do Retiro nºs 2 - 4 (nº 6080) e o terreno adjacente à Rua Ho Lin Vong (nº 6099);
SE: Rua... nº 13 (nº 6530);
SW: Rua...;
NW: Rua... nº 17 (nº 6534).
d) Em 27 de Dezembro de 1990, C e o Autor assinaram um acordo no qual estabeleciam que:
“(1) os dois outorgantes estabelecem o preço do imóvel acima em HKD250.000,00. Hoje, o primeiro outorgante recebe do segundo outorgante o sinal no valor de HKD100.000,00, o restante valor do preço, de HKD150.000,00 será pago ao primeiro outorgante no acto da celebração da escritura pública a realizar no Cartório Notarial;
(2) O proprietário primitivo do imóvel acima, Senhor P (romanização deP) encontra-se ausente em parte incerta durante muitos anos, assim, o imóvel cuja adjudicação à Senhora C está sujeita à sentença do Tribunal do Território de Macau. Após o procedimento do registo predial o primeiro outorgante cumpre a celebração da escritura pública com o segundo outorgante;
(3) Para efeito da dedução da acção junto do Tribunal do Território de Macau, os dois outorgantes concordam em estabelecer um período de dois anos, se, a acção ainda esteja pendente após o período estabelecido, o segundo outorgante pode ter de volta junto do primeiro outorgante o sinal pago, de HKD100.000,00, e imediatamente devolve ao primeiro outorgante a fracção no rés-do-chão. Ficando cancelado o “contrato-promessa de compra e venda” assinado sem consideração a respeito da violação contratual;
(4) Neste caso, os dois outorgantes podem celebrar contrato adequado à situação real, para a prorrogação do período, ou para o arrendamento;
(5) São a cargo do segundo outorgante todos os custos decorrentes da dedução da acção, como as custas processuais, as despesas com os documentos, os impostos governamentais, todas as despesas relacionadas com o prédio e os honorários de advogado;
(6) Efectuado o registo predial pelo primeiro outorgante, os dois outorgantes têm de cumprir a responsabilidade de indemnização prevista na Cláusula 6.ª do “contrato-promessa de compra e venda”, não podendo levantar objecção.”;
e) No âmbito do acordo acima referido, o Autor pagou, a título de sinal, a quantia de MOP100.000,00;
f) O prédio referido em a) tinha anteriormente, e até 1935, como n° de polícia o nº 16 da Rua...;
g) Em 22.10.1962, por escrito particular H (H) vendeu a I (I), pelo preço de MOP2,650.00 o 1º andar do prédio em discussão nos presentes autos, continuando H (H) a residir com a sua família no R/C;
h) A 4 de Fevereiro do ano de 1991, o Autor tem efectuado um depósito de MOP150.00 (cento e cinquenta pataca) junto dos serviços de tesouraria da Companhia de Electricidade de Macau, para garantia do pagamento da energia a consumir o prédio N.º 15 da Rua... r/c na Taipa;
i) Aquando da celebração do contrato de promessa de compra e venda do referido imóvel, no ano de 1990 e desde então o Autor residia no 1.º andar com o seu agregado familiar e no r/c abriu no mesmo ano, uma Loja de Pastelaria “X”;
j) A referida loja, continua a ser explorada até ao presente, e constitui a fonte de rendimento da família do Autor;
k) Em 11 de Junho de 1950, H (H), pai da ora Oponente C, adquiriu o imóvel em causa mediante contrato promessa de compra e venda a L(L), pelo preço de MOP3.400,00 – pago na íntegra -, que por sua vez havido adquirido o imóvel a um indivíduo de apelido Ho;
l) Pelo menos desde 1962 a família da ora Oponente C passou a residir no imóvel em causa até 1990;
m) A C constituiu como seu mandatário judicial o Dr. Henrique Senna Fernandes para interpor acção de rescisão de contrato promessa de compra e venda;
n) C foi viver para Hong Kong;
o) Apesar de residir em Hong Kong, a Oponente continuou, ao longo dos anos, a tentar devolver o sinal de MOP100.000,00 ao Autor e a requerer deste a entrega do imóvel;
p) O rés-do-chão e o 1º andar do prédio a que se refere em a) da matéria do facto assente, são unidades prediais autónomas e independentes, com a mesma área, com acessos independentes e directos à via pública e com contadores de água, luz, gás e telefone também independentes;
q) I e a sua mulher M nunca pagaram a renda a quem quer que fosse, e nunca alguém lhes pediu para pagar renda;
r) Na data da celebração do contrato referido em g) as chaves do 1º andar foram entregues a I (I);
s) Desde 1962, logo que adquiriu o 1º andar do nº 15 da Rua..., I (I) e a sua mulher M passaram aí a viver com os seus filhos;
t) I e M são pais de D e E;
u) Depois de 1962 os pais de D e E realizaram, a expensas suas, obras de manutenção e reparação, no prédio em discussão nos autos;
v) Em 1974 os pais de D e E mudaram-se para a Península de Macau, continuando o D a residir no 1º andar do aludido prédio com a esposa N;
w) D celebrou os contratos de fornecimento de água, luz, gás e telefone, para o 1º andar do prédio e pagou as despesas com os consumos;
x) Em 1989 também D foi residir para Macau, e a partir de então o 1º andar da Rua... nº 15 passou a ser arrendado e a família de D e E a receber as respectivas rendas;
y) De 1987 a 1990 o 1º andar da Rua... nº 15 foi arrendado a um funcionário da Câmara das ilhas;
z) Após a saída daquele e a partir de 1991, e até à data, o 1º andar da Rua... nº 15 passou a ser arrendado ao Autor dos presentes autos;
aa) Desde 1991 e até à presente data A, na qualidade de arrendatário, pagou renda, e, a família de D e E, na qualidade de senhorios, receberam essas rendas;
bb) A Renda inicialmente acordada foi de MOP600.00 (seiscentas patacas), passando depois para MOP800.00 (oitocentas patacas) e desde Janeiro de 2012 para MOP1,000.00 (mil patacas);
cc) Inicialmente as rendas eram pagas em dinheiro contra emissão do respectivo recibo de quitação, passando a partir de Abril de 2004 a serem depositadas na conta bancária de O, mãe de D e E;
dd) E após a morte desta passaram a ser depositas na conta de E;
ee) Nos termos do acordo cuja cópia consta de fls. 617 D e E sucederam aos seus pais relativamente ao 1º andar do nº 15 da Rua ..., passando a comportar-se relativamente ao mesmo como se fossem donos do sobredito 1º andar;
ff) A partir daí o Autor passou a pagar as rendas a D e E.
Cumpre assim apreciar e decidir.
A presente acção iniciou-se com o pedido do Autor contra o titular inscrito no registo predial relativamente ao prédio dos autos a dizer que por contrato de promessa de compra e venda havida adquirido o imóvel em causa e que desde então tinha a posse do mesmo.
Não alegava o Autor de quem tinha adquirido nem os termos do contrato nem tão pouco se havia pago o preço ou não e a que título e por quem lhe havia sido entregue o imóvel.
Nos termos do artº 1175º do C.Civ. “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Quanto ao Autor e ao imóvel a que respeitam os autos o que se provou foi que:
- Em 27 de Dezembro de 1990, C e o Autor assinaram um acordo no qual estabeleciam que:
“(1) os dois outorgantes estabelecem o preço do imóvel acima em HKD250.000,00. Hoje, o primeiro outorgante recebe do segundo outorgante o sinal no valor de HKD100.000,00, o restante valor do preço, de HKD150.000,00 será pago ao primeiro outorgante no acto da celebração da escritura pública a realizar no Cartório Notarial;
(2) O proprietário primitivo do imóvel acima, Senhor P (romanização de P) encontra-se ausente em parte incerta durante muitos anos, assim, o imóvel cuja adjudicação à Senhora C está sujeita à sentença do Tribunal do Território de Macau. Após o procedimento do registo predial o primeiro outorgante cumpre a celebração da escritura pública com o segundo outorgante;
(3) Para efeito da dedução da acção junto do Tribunal do Território de Macau, os dois outorgantes concordam em estabelecer um período de dois anos, se, a acção ainda esteja pendente após o período estabelecido, o segundo outorgante pode ter de volta junto do primeiro outorgante o sinal pago, de HKD100.000,00, e imediatamente devolve ao primeiro outorgante a fracção no rés-do-chão. Ficando cancelado o “contrato-promessa de compra e venda” assinado sem consideração a respeito da violação contratual;
(4) Neste caso, os dois outorgantes podem celebrar contrato adequado à situação real, para a prorrogação do período, ou para o arrendamento;
(5) São a cargo do segundo outorgante todos os custos decorrentes da dedução da acção, como as custas processuais, as despesas com os documentos, os impostos governamentais, todas as despesas relacionadas com o prédio e os honorários de advogado;
(6) Efectuado o registo predial pelo primeiro outorgante, os dois outorgantes têm de cumprir a responsabilidade de indemnização prevista na Cláusula 6.ª do “contrato-promessa de compra e venda”, não podendo levantar objecção.”;
- No âmbito do acordo acima referido, o Autor pagou, a título de sinal, a quantia de MOP100.000,00;
- A 4 de Fevereiro do ano de 1991, o Autor tem efectuado um depósito de MOP150.00 (cento e cinquenta pataca) junto dos serviços de tesouraria da Companhia de Electricidade de Macau, para garantia do pagamento da energia a consumir o prédio Nº 15 da Rua... r/c na Taipa;
- Aquando da celebração do contrato de promessa de compra e venda do referido imóvel, no ano de 1990 e desde então o Autor residia no 1º andar com o seu agregado familiar e no r/c abriu no mesmo ano, uma Loja de Pastelaria “X”;
- A referida loja, continua a ser explorada até ao presente, e constitui a fonte de rendimento da família do Autor;
- A C constituiu como seu mandatário judicial o Dr. Henrique Senna Fernandes para interpor acção de rescisão de contrato promessa de compra e venda;
- C foi viver para Hong Kong;
- Apesar de residir em Hong Kong, a oponente continuou, ao longo dos anos, a tentar devolver o sinal de MOP100.000,00 ao Autor e a requerer deste a entrega do imóvel;
- De 1987 a 1990 o 1º andar da Rua... nº 15 foi arrendado a um funcionário da Câmara das ilhas;
- Após a saída daquele e a partir de 1991, e até à data, o 1º andar da Rua... nº 15 passou a ser arrendado ao Autor dos presentes autos;
- Desde 1991 e até à presente data A, na qualidade de arrendatário, pagou renda, e, a família de D e E, na qualidade de senhorios, receberam essas rendas;
- A renda inicialmente acordada foi de MOP600.00 (seiscentas patacas), passando depois para MOP800.00 (oitocentas patacas) e desde Janeiro de 2012 para MOP1,000.00 (mil patacas);
- Inicialmente as rendas eram pagas em dinheiro contra emissão do respectivo recibo de quitação, passando a partir de Abril de 2004 a serem depositadas na conta bancária de O, mãe de D e E;
- E após a morte desta passaram a ser depositas na conta de E;
- Nos termos do acordo cuja cópia consta de fls. 617 D e E sucederam aos seus pais relativamente ao 1º andar do nº 15 da Rua ..., passando a comportar-se relativamente ao mesmo como se fossem donos do sobredito 1º andar;
- A partir daí o Autor passou a pagar as rendas a D e E.
Resumindo, da factualidade apurada, quanto ao Autor e ao imóvel resulta demonstrado que, quanto:
1. Ao R/c entre o Autor e a Oponente C foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda segundo o qual aquele prometia comprar e esta prometia vender o “R/C” do imóvel, sendo que o Autor pagou o sinal, estando o contrato de promessa de compra e venda sujeito a condição que nunca se chegou a verificar.
2. Ao 1º andar o Autor tomou o mesmo de arrendamento ao tempo dos pais dos oponentes D e Q, arrendamento esse que até hoje se mantém pagando o Autor as respectivas rendas.
Ora, no que concerne ao R/c para além de nunca se ter verificado a condição de eficácia a que o contrato de promessa de compra e venda estava sujeito, também não se demonstra, que o Autor aquando da celebração do mesmo haja pago a totalidade do preço, se haja convencido que desde então o havia adquirido, que a tradição da coisa ao tempo ocorrida o haja sido em função ou no pressuposto das partes terem havido como transmitido o direito e que desde então houvesse tido o “animus” e o “corpus” em que a posse se caracteriza de autêntico proprietário, ou que, não tendo havido tradição da coisa nos termos indicados tivesse havido inversão do título. Isto é, quanto ao R/c, pese embora o Autor tenha o poder de facto sobre a coisa – o corpus - não se prova em momento algum que o Autor exerça esse poder de facto como se fosse o dono da coisa, pois bem sabia, nunca ter pago o preço na totalidade, condição esta, para que pudesse ficcionar materialmente a compra o que sabe nunca chegou a ter acontecido e beneficiar apenas de uma promessa de venda.
Relativamente ao 1º andar o que resulta demonstrado é que o Autor o tomou de arrendamento e assim continua até aos nossos dias pagando as respectivas rendas. Ora, pese embora tenha havido quem sustentasse ser o arrendamento um direito real2, o certo é que, é hoje unanimemente aceite tratar-se de um direito obrigacional sendo o arrendatário um mero detentor da coisa e não possuidor, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artº 982º do C.Civ., pelo que, seja porque não tem a posse mas a mera detenção, seja pelo título a que o faz, nunca poderia concluir-se que o Autor havia adquirido a posse do 1º andar e menos ainda que a exercia como se fosse proprietário.
Assim sendo, face a todo o exposto apenas se pode concluir pela improcedência da pretensão do Autor.
Da má-fé.
O Autor começa por invocar que adquiriu o imóvel através de um contrato de promessa de compra e venda sem indicar de quem, instaurando a acção apenas contra o titular inscrito no registo predial.
Deduzidas as oposições espontâneas verifica-se não só que o Autor sabia muito bem a quem havia prometido comprar – apesar de vir depois alegar que quem lhe prometeu vender afinal não tinha direito nenhum o que a ser assim levaria a fazer cair a sua tese inicial que havia adquirido por força desse contrato de promessa… -, mas também, que relativamente a parte do prédio o tinha tomado de arrendamento.
Tudo o Autor ocultou, não instaurando a acção contra os aqui Oponentes, manifestamente com o propósito de tentar obter o reconhecimento do direito que pretendia sem que os oponentes pudessem exercer a sua defesa.
De acordo com as alíneas a) e b) do nº2 do artº 385º do CPC diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave tiver deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.
A conduta do Autor integra manifestamente aquela previsão legal sendo a actuação dolosa evidente, uma vez que alega o contrato de promessa mas apenas em parte e omite o contrato de arrendamento cujas rendas está a pagar mensalmente.
Nos termos do nº 1 do indicado preceito litigando de má-fé é a parte condenada em multa, a qual nos termos do nº 2 do artº 101º do RCT se fixa em 6 UC´s.
Da oposição espontânea de C e de D e E.
Deduzida oposição espontânea e sendo esta admitida tudo se processa como se no processo se decidissem em conjunto duas ou mais causas total ou parcialmente incompatíveis entre si.
Isto é, o oponente ao intervir na causa vem fazer valer um direito próprio incompatível com a pretensão do Autor ou reconvinte – nº 1 do artº 283º do CPC -.
No caso dos autos os Oponentes, cada um por si, vieram deduzir pretensões parcialmente incompatíveis com a do Autor, mas não incompatíveis entre si, sendo contudo complexa a pretensão dos Oponentes, os quais não só podem que se reconheça terem adquirido por usucapião a parte que possuem no prédio dos autos, como também, a constituição do mesmo em propriedade horizontal.
Vejamos então.
Relativamente a esta matéria apurou-se que3:
- O prédio urbano composto de R/C e 1º andar sito na Rua... nº 15 na Ilha da Taipa, RAEM, está registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... inscrito a fls…. do Livro…, registado junto da Repartição de Finanças com a matriz nº ... e com o valor matricial de MOP1.620,00 (mil seiscentas e vinte patacas);
- De acordo com a planta cadastral nº 61121008 emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, as confrontações do imóvel são:
NE: Rua do Retiro nºs 2 - 4 (nº 6080) e o terreno adjacente à Rua Ho Lin Vong (nº 6099);
SE: Rua... nº 13 (nº 6530);
SW: Rua...;
NW: Rua... nº 17 (nº 6534).
- O prédio referido em a) tinha anteriormente, e até 1935, como n° de polícia o nº 16 da Rua...;
- O rés-do-chão e o 1º andar do prédio a que se refere em a) da matéria do facto assente, são unidades prediais autónomas e independentes, com a mesma área, com acessos independentes e directos à via pública e com contadores de água, luz, gás e telefone também independentes;
- Em 11 de Junho de 1950, H (H), pai da ora Oponente C, adquiriu o imóvel em causa mediante contrato promessa de compra e venda a L(L),pelo preço de MOP3.400,00 – pago na íntegra -, que por sua vez havido adquirido o imóvel a um indivíduo de apelido Ho;
- Pelo menos desde 1962 a família da ora Oponente C passou a residir no imóvel em causa até 1990;
- Em 27 de Dezembro de 1990, C e o Autor assinaram um acordo no qual estabeleciam que:
“(1) os dois outorgantes estabelecem o preço do imóvel acima em HKD250.000,00. Hoje, o primeiro outorgante recebe do segundo outorgante o sinal no valor de HKD100.000,00, o restante valor do preço, de HKD150.000,00 será pago ao primeiro outorgante no acto da celebração da escritura pública a realizar no Cartório Notarial;
(2) O proprietário primitivo do imóvel acima, Senhor P (romanização de P) encontra-se ausente em parte incerta durante muitos anos, assim, o imóvel cuja adjudicação à Senhora C está sujeita à sentença do Tribunal do Território de Macau. Após o procedimento do registo predial o primeiro outorgante cumpre a celebração da escritura pública com o segundo outorgante;
(3) Para efeito da dedução da acção junto do Tribunal do Território de Macau, os dois outorgantes concordam em estabelecer um período de dois anos, se, a acção ainda esteja pendente após o período estabelecido, o segundo outorgante pode ter de volta junto do primeiro outorgante o sinal pago, de HKD100.000,00, e imediatamente devolve ao primeiro outorgante a fracção no rés-do-chão. Ficando cancelado o “contrato-promessa de compra e venda” assinado sem consideração a respeito da violação contratual;
(4) Neste caso, os dois outorgantes podem celebrar contrato adequado à situação real, para a prorrogação do período, ou para o arrendamento;
(5) São a cargo do segundo outorgante todos os custos decorrentes da dedução da acção, como as custas processuais, as despesas com os documentos, os impostos governamentais, todas as despesas relacionadas com o prédio e os honorários de advogado;
(6) Efectuado o registo predial pelo primeiro outorgante, os dois outorgantes têm de cumprir a responsabilidade de indemnização prevista na Cláusula 6.ª do “contrato-promessa de compra e venda”, não podendo levantar objecção.”;
- No âmbito do acordo acima referido, o Autor pagou, a título de sinal, a quantia de MOP100.000,00;
- A C constituiu como seu mandatário judicial o Dr. Henrique Senna Fernandes para interpor acção de rescisão de contrato promessa de compra e venda;
- C foi viver para Hong Kong;
- Apesar de residir em Hong Kong, a Oponente continuou, ao longo dos anos, a tentar devolver o sinal de MOP100.000,00 ao Autor e a requerer deste a entrega do imóvel;
- Em 22.10.1962, por escrito particular H (H) vendeu a I (I), pelo preço de MOP2.650,00 o 1º andar do prédio em discussão nos presentes autos, continuando H (H) a residir com a sua família no R/C;
- Na data da celebração do contrato referido em g) (entenda-se no item anterior) as chaves do 1º andar foram entregues a I (I);
- I e a sua mulher M nunca pagaram a renda a quem quer que fosse, e nunca alguém lhes pediu para pagar renda;
- Desde 1962, logo que adquiriu o 1º andar do nº 15 da Rua..., I (I) e a sua mulher M passaram aí a viver com os seus filhos;
- I e M são pais de D e E;
- Depois de 1962 os pais de D e E realizaram, a expensas suas, obras de manutenção e reparação, no prédio em discussão nos autos;
- Em 1974 os pais de D e E mudaram-se para a Península de Macau, continuando o D a residir no 1º andar do aludido prédio com a esposa N;
- D celebrou os contratos de fornecimento de água, luz, gás e telefone, para o 1º andar do prédio e pagou as despesas com os consumos
- Em 1989 também D foi residir para Macau, e a partir de então o 1º andar da Rua... nº 15 passou a ser arrendado e a família de D e E a receber as respectivas rendas;
- De 1987 a 1990 o 1º andar da Rua... nº 15 foi arrendado a um funcionário da Câmara das ilhas;
- Após a saída daquele e a partir de 1991, e até à data, o 1º andar da Rua... nº 15 passou a ser arrendado ao Autor dos presentes autos;
- Desde 1991 e até à presente data A, na qualidade de arrendatário, pagou renda, e, a família de D e E, na qualidade de senhorios, receberam essas rendas;
- A Renda inicialmente acordada foi de MOP600.00 (seiscentas patacas), passando depois para MOP800.00 (oitocentas patacas) e desde Janeiro de 2012 para MOP1,000.00 (mil patacas);
- Inicialmente as rendas eram pagas em dinheiro contra emissão do respectivo recibo de quitação, passando a partir de Abril de 2004 a serem depositadas na conta bancária de O, mãe de D e E;
- E após a morte desta passaram a ser depositas na conta de E;
- Nos termos do acordo cuja cópia consta de fls. 617 D e E sucederam aos seus pais relativamente ao 1º andar do nº 15 da Rua ..., passando a comportar-se relativamente ao mesmo como se fossem donos do sobredito 1º andar;
- A partir daí o Autor passou a pagar as rendas a D e E.
Verifica-se assim que, quanto a C está demonstrado que o seu pai em 1950 adquiriu o imóvel em causa pagando integralmente o preço e pelo menos desde 1962 a sua família viveu no imóvel até 1990, data em que a Oponente C o prometeu vender ao aqui Autor, sendo que essa venda nunca se veio a concretizar, tendo a partir daí a C constituído advogado para interpor acção de rescisão do contrato e continuado ao longo dos anos a exigir do aqui Autor a entrega do imóvel mediante a devolução do sinal nos termos em que haviam acordado.
Ao proceder da forma descrita poderíamos inferir que a Oponente C actuava com o animus de ser a dona da coisa, contudo, pese embora reclame a entrega do aqui Autor a Oponente desde 1990 que não está na posse da coisa, isto é, não exerce qualquer poder de facto sobre a coisa nem tem a possibilidade de o continuar a exercer quando assim o desejar, o que se infere de pedir a entrega e nada obter e nada fazer.
Nos termos da al. d) do nº 1 do artº 1192º do C.Civ. o possuidor perde a posse “pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de 1 ano”.
Para que se possa dar a aquisição por usucapião do prédio é necessário que o pretenso adquirente tenha a posse do mesmo em função do direito real que pretende adquirir, isto é, actuando com «animus» e «corpus» aqui concretizados quer no poder de facto traduzido em ter colocado a coisa sob o seu poder e na possibilidade de o continuarem a exercer – corpus – bem como na intenção com que o faz, agindo como titular do direito de propriedade – animus -.4
Ora, no caso dos autos, quanto a C não se prova que tenha o “corpus”, pelo que, sem necessidade de outras considerações não poderá proceder a pretensão desta Oponente.
Quanto a D e E ficou provado que o pai destes comprou ao pai de C o 1º andar do prédio a que se reportam os autos ali passando a viver com a sua família sem pagarem rendas a alguém, fazendo obras no prédio a expensas suas, dando-o em arrendamento e recebendo as rendas, actuando D e E como se fossem os donos do 1º andar.
Ao proceder relativamente ao imóvel como sendo o imóvel coisa sua, actuam os Oponentes D e E com «animus» e «corpus» de possuidores – artº 1175º do C.Civ. - aqui concretizados quer no poder de facto traduzido em ter colocado a coisa sob o seu poder e na possibilidade de o continuarem a exercer – corpus – bem como na intenção com que o fazem, agindo como titulares do direito de propriedade – animus -5, posse esta que por si e antepossuidores data desde 1962 e que se mantém – artº 1179º e artº 1181º nº 1 ambos do C.Civ -.
Posse essa, que não sendo titulada6, uma vez que não foi adquirida nos termos formalmente imposto para a aquisição do direito de propriedade – artº 1183º do C.Civ. – é de boa-fé, pacífica e pública e foi adquirida nos termos do artº 1187º al. a) e b) do C.Civ.
Nos termos do artº 1212º e 1221º ambos do C.Civ. a posse não titulada, de boa-fé, pacífica e pública do direito de propriedade, quando mantida por mais de 15 anos faculta ao possuidor a aquisição do direito correspondente à sua actuação, neste caso o direito de propriedade.
Assim sendo, e uma vez que os Oponentes D e E se mantêm na posse da fracção autónoma referida como se seus proprietários fossem, por si e antepossuidores há mais de 15 anos, verifica-se que os mesmos poderiam adquirir o respectivo direito pelo decurso do prazo, ou seja, por usucapião, mas apenas quanto ao 1º andar.
Porém o prédio em causa é um todo, constituído por dois andares, pelo que, vêm os Oponentes pedir a constituição do prédio em propriedade horizontal, de modo a que a usucapião possa ser reconhecida apenas quanto à parte que possuem.
Nos termos do nº 1 do artº 1315º do C.Civ. “podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio ou para a via pública”.
Relativamente a esta matéria dúvidas não há que o prédio a que se reportam os autos é composto por dois andares com a mesma área, independentes e distintos entre si e com saídas próprias para a via pública, pelo que, reúnem os requisitos substantivos para que cada um possa ser objecto de propriedade horizontal constituindo fracções autónomas distintas.
De acordo com o nº 1 do artº 1317º do C.Civ. a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião.
Para que se constitua o regime de propriedade horizontal por usucapião é necessário que a posse exercida sobre as unidades independentes, distintas entre si e com entradas próprias, tenha as características próprias da usucapião.
Entende, contudo alguma jurisprudência, nomeadamente a Portuguesa, que não se provando que para além daqueles requisitos – no caso de Macau os do artº 1315º C.Civ - o prédio respeita também, todos os requisitos administrativos necessários para que possa ser constituída a propriedade horizontal, aquela não pode ser declarada – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal, 23.12.2012 Proc. 16/11.1TBVZL.C2 e 07.04.2016 Proc. 421/13.9TBOHP.C1 -.
Encontra aquele entendimento acolhimento no nº 3 do artº 1418º do C.Civ. Português.
O Código Civil de Macau não tem norma correspondente ao nº 3 do artº 1418º do C.Civ. Português.
Porém, o artº 1320º do C.Civ. exige ainda que no título de constituição da propriedade horizontal se faça constar o fim a que se destina cada fracção e cada parte comum que seja afecta a fins específicos.
Ora, a simples prova de que as fracções cumprem os requisitos do artº 1315º não nos permite concluir qual o fim a que se destinam e/ou se têm as condições legais exigidas para o efeito nos termos da Lei nº 6/99/M.
Por outro lado, se no caso dos autos o prédio relativamente ao qual é pedida a constituição de propriedade horizontal é pequeno e constituído apenas por 2 pisos correspondendo a cada um, uma fracção autónoma, o certo é que a realidade de Macau é muito diversa disso, prevendo inclusivamente a lei a existência de subcondominios, sendo fácil que um condomínio seja constituído por um milhar de fracções de composições, áreas e fins distintos.
Ora esta realidade não é compatível com a simples prova de que cada uma das fracções obedece aos requistos do artº 1315º do C.Civ. para que possa ser reconhecida a propriedade horizontal por usucapião, exigindo apreciações técnicas que estão para além da função jurisdicional.
Os fundamentos para o reconhecimento judicial da propriedade horizontal por usucapião não podem variar em função da dimensão do prédio, pelo que, não se pode aceitar de modo algum que se possa vir a reconhecer a constituição de um prédio sob o regime de propriedade horizontal sem que se faça também a prova de que a entidade competente para o efeito reconhece que o mesmo obedece aos requisitos necessários para o efeito, sob pena da decisão judicial vir a colidir com o disposto no nº 3 do artº 1316º do C.Civ.
Destarte, uma vez que no caso dos autos não foi feita a prova de que a entidade pública a quem cabe a aprovação e fiscalização das construções reconheceu e autorizou a possibilidade do prédio em causa ser constituído em propriedade horizontal e em que termos, não estão verificados os requisitos necessários para que se possa reconhecer a constituição da propriedade horizontal por usucapião.
Assim sendo, e uma vez que os Oponentes D e E apenas têm a posse do 1º andar do prédio dos autos e não sendo possível destacar esta parte do remanescente, não se pode reconhecer que estes oponentes hajam adquirido parte do prédio por usucapião.
Subsidiariamente pedem os Oponentes que se reconheça terem adquirido o prédio dos autos em compropriedade o que seria possível face ao disposto no artº 1216º do C.Civ., contudo, havia que ter sido demonstrado que estes oponentes e os demais compossuidores haviam exercido a posse “sobre a totalidade do prédio” e não, apenas sobre uma parte dele.
Tal como também se refere num dos Acórdãos citados supra, - o do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal de 07.04.2016 -, “em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no artº 1344º do C.Civil, numa manifestação do principio da vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário”.
Assim sendo, pese embora se prove a posse boa para usucapir dos Oponentes D e E, não incidindo esta sobre a totalidade do prédio, não podem estes com base naquela usucapir o direito de propriedade do mesmo, improcedendo a sua pretensão.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a pretensão do Autor improcedente porque não provada, bem como, também, improcedentes por não provadas as pretensões dos Oponentes, sendo todos absolvidos dos respectivos pedidos, condenando-se o Autor como litigante de má-fé na multa de 6 UC´s
Custas a cargo do Autor e de cada um dos Oponentes quanto à pretensão por cada um deduzida, sendo no caso de D e E solidariamente responsáveis pelas respectivas custas.
Registe e notifique.
Notificadas as partes dessa sentença, vieram o Autor e os Oponentes recorrer dela para este Tribunal de Segunda Instância.
Concluindo e pedindo o Autor A que:
1a De acordo com os factos apurados, verificamos que, logo após o contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 27/12/1990, o Autor/Recorrente adquiriu logo as chaves do imóvel.
2.a Perante este facto é indubitável que o Autor/Recorrente está numa situação de posse relativamente à fracção identificada, nomeadamente a partir da celebração do contrato promessa de compra e venda referido. Com efeito, nessa altura, deu-se a tradição do imóvel, efectuada mediante entrega da anterior possuidora, para a parte promitente-compradora.
3.a A tradição material ou simbólica da coisa (traditio), efectuada pela anterior possuidora, constitui uma das formas legais de aquisição da posse, como decorre expressamente do disposto no art. 1187.° aI. d) do CCM.
4.a A tradição material ou simbólica da coisa (tradittio), efectuada pela anterior possuidora, constitui uma das formas legais de aquisição da posse, como decorre expressamente do disposto no art. 1187.° aI. d) do CCM.
5.a Por isso, é irrelevante, para efeitos de aquisição da posse, a validade, ou não, do referido contrato promessa de compra e venda. Embora a tradição da coisa ande, muitas vezes, associada à celebração de um contrato de promessa, certo é que não constitui um efeito jurídico daquele.
6.a A tradição da coisa corresponde ao efeito resultante do estabelecimento de outra relação jurídica, que pode ser contemporânea, mas de natureza diferenciada da do contrato de promessa. Tal efeito jurídico visa, normalmente, antecipar o cumprimento do contrato prometido, ocorrendo com alguma frequência, designadamente quando o preço está parcialmente pago.
7.a Neste contexto, pode dizer-se que o Autor/Recorrente, ao receber a fracção autónoma nas condições já referidas, ficou investido dos mesmos poderes que cabiam à 3.a Ré, assumindo-se, como tal, publicamente _ vide Art. 1212.° CCM:
8.a “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do Direito a cujo exercício corresponde a sua actuação._ sombreado nosso.
9.ª Nesse contexto, o Autor/Recorrente ficou, desde logo, investido nos actos materiais correspondentes aos do proprietário, neste caso possuidor, podendo tal situação proporcionar a aquisição do domínio, por usucapião.
10.ª A usucapião é assim um efeito da posse. A regra é a de que são susceptíveis de usucapião os direitos reais de gozo nos termos do disposto no Art. 1212.° CCM.
11.ª Tendo havido a tradittio "tradittio brevi manu" nos termos do Art. 1187.° CCM a mesma perde-se pelo efeito de_ vide Art. 1192.° n.º 1 aI. d) CCM:
"1. O possuidor perde a posse:
a) Pelo abandono,
b) Pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio
c) Pela cedência; ou
d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de 1 ano. "_ sombreado nosso.
12.ª Em virtude do contrato de promessa celebrado, e não tendo sido intentada por parte da 3.ª Ré, nos termos do Art. 1207.° CCM, acção de restituição da posse, verifica-se a caducidade da mesma pelo não exercício no período legal, ou seja, no prazo de um ano:
"1. A acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro de um ano susequente ao facto de turbação ou do esbulho.
2. Tendo o esbulho sido praticado com violência ou às ocultas, o prazo de 1 ano só se conta a partir da data em que, em face do esbulhado, cesse a violência ou a posse se torne pública" _ sombreado nosso.
13.a Por outro lado, o Autor/Recorrente apenas poderia nos termos da lei ver ameaçada a sua posse se concorresse com a sua, outra mais antiga, o que não é o caso!
14.a Assim sendo a presunção da titularidade do direito nos termos do art. 1193.° CCM, repousa na situação jurídica encabeçada pelo Autor/Recorrente nos seguintes termos: " 1. O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse." _ sombreado nosso.
15.a A 3.a Ré nunca conseguiu efectuar registo algum em seu nome, simplesmente porque adquiriu a sua posse através de um título particular e nesses precisos termos transmitu recebendo parte do preço e efectuando a traditio do imóvel, livre de qualquer vício de vontade, mas, com vício de forma.
16.a Com títulos sem forma legal não há possibilidade de registar, pelo que uma posse fundada em tais títulos não pode propiciar os reflexos favoráveis do registo sem que decorra o prazo de usucapião.
17.a Como tal, não se compreende o pedido da 3.a Ré na sua PI ao pedir para ver reconhecido por usucapião o imóvel sem o ter na sua posse, nem sequer a existir, o que não se concede, ser a mesma titulada, nem tendo accionado o instituto da restituição da posse após a celebração do contrato de promessa.
18.ª Até porque, e ainda que, a 3.a Ré tivesse vivido no referido imóvel nunca logrou legalizar a sua ocupação.
19.a E, nos termos da jurisprudência da RAEM, ou seja, na sequência da jurisprudência do TUI, considera-se que o art. 7.° da Lei Básica impede o reconhecimento do direito de propriedade de prédios na posse de particulares se, à data do Estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, ainda não tinha decorrido o prazo de usucapião, ainda que a posse estivesse registada anteriormente.
20.º No caso em apreço existe registo na Conservatória de Registo Predial do imóvel em crise inscrito a favor de um particular que não a 3.a Ré e nem a mesma titulou a posse que eventualmente deteve até 27/12/1990, altura em que celebrou o contrato de promessa e entregou o imóvel ao Autor/Recorrente.
21.a Em face desta jurisprudência a 3.a Ré não só não beneficia de registo predial como não se pode aproveitar do decurso de tempo para invocar a aquisição por usucapião. Com base em que título? Intentou acção ordinária para o efeito? A alegada posse é titulada ou registada?
22.a Não existindo registo predial do imóvel inscrito em nome de qualquer um dos ora Recorrentes, e após 20 de Dez de 1999, nos termos legais, terão de estar reunidos os pressupostos da usucapião.
23.a E, como são factos, somente o Autor/Recorrente reúne tais pressupostos!
24.a Vivendo no imóvel em crise com a sua família desde 27 de Dez de 1990, data da celebração do contrato de promessa, passando nele a residir no 1.º andar e tendo no r/c aberto no mesmo ano uma loja de Pastelaria "X".
25.a Encontrando-se até aos dias de hoje, a ser continuamente explorada comercialmente e constituindo fonte de rendimento da família do Autor/Recorrente.
26.a E, como também é facto, a 3.a Ré ausentou-se para Hong Kong, á volta de 1972, tendo os seus pais continuado a viver, e após o falecimento do pai da 3.a Ré a mãe foi viver num asilo, e a 3.a Ré vendeu o r/c do n.º 15 da Rua..., tendo ouvido dizer pelo preço de 260,000.00, não tendo recebido a totalidade do preço arranjou advogado não tendo acompanhado o resultado mas sabe que a 3.a Ré através de telefone contactava o Autor/Recorrente _ (Depoimento da Sra. X Testemunha da 3.a Ré)e são este actos que caracterizam o animus da 3.a Ré'!?
27.a A 2.a testemunha da 3.a Ré afirmou que a 3.a Ré após casar foi viver para Hong Kong, não sabe quem suportava as despesas de água, luz e gás, apenas se dizia que em 1990, teria vendido, tendo nessa altura testemunhado uma discussão em que a 3.a Ré dizia "que me pague ou devolva o dinheiro" na entrada do r/c da Rua... n.º 15, e que o Autor/Recorrente dizia para a 3.a Ré ir embora que a casa não lhe pertencia e o que é que ela estava ali a fazer, tendo depois a testemunha se ausentado, finalizando que o que se estava a passar também não soube, tendo afirmado que a aludida discussão foi no ano de 1990 e foi somente uma vez que presenciou _ (Depoimento de X Testemunha da 3.a Ré)e são este actos que caracterizam o animus da 3.a Ré'!?
28.a A 3.° testemunha da 3.a Ré entre outros factos testemunhou que a 3.a Ré tinha vendido o r/c da Rua... nos finais de 1990, pelo valor de 250,000.00 e que somente tinha recebido 100,000.00 e que tinha ouvido dizer, não assistiu a 3.a Ré teria telefonado ao Autor/Recorrente a pedir o remanescente do preço, mas, que não se recorda do ano. _ (Depoimento de X Testemunha da 3.a Ré)e são este actos que caracterizam o animus da 3.a Ré'!?
29.a Na modéstia opinião do Autor/Recorrente, e salvo douta e melhor opinião, os depoimentos supra não caracterizam qualquer animus como elemento de posse da 3.a Ré.
30.a Como não evidenciam que tal animus tenha sido exteriorizado ao longo de anos, pelo contrário, o que se retém é o total desinteresse da 3.a Ré pelo imóvel!
31.a E, outra conclusão há a reter, o Autor/Recorrente, desde que tomou posse através da celebração do contrato de promessa, passou a actuar como proprietário do imóvel, como releva a recusa de entrega do imóvel por o considerar seu!
32.a A posse para ter efeito legal da usucapião, tem que ser pública, pacífica, e de boa- fé convertendo-se ao fim de 15 anos, ou de 20 anos se for considerada de má fé independentemente do carácter titulado ou não da posse.
33.a Estes pressupostos é que determinam e caracterizam o direito de usucapir um imóvel e os mesmos no caso em apreço, só aproveitam ao Autor/Recorrente e não à 3.a Ré.
34.a Por cerca de 30 anos, que o Autor /Recorrente com legitimidade exerce o seu comércio, publicamente à vista de todos (vizinhos e Clientes) de boa -fé e pacificamente como se fez a competente prova testemunhal e documental nos autos.
35.a A usucapião tem, na verdade, na sua base ponderosas razões de ordem económico-social, nomeadamente a necessidade de tornar certa e estável a propriedade a favor de quem mantém e exerce, ininterruptamente, a gestão económica da coisa, face à incúria do proprietário, que se oferece dizer de acordo com o registo encontra-se ausente, na presente decisão ora recorrida. _ cfr. Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, pág. 79.
36.a A usucapião assenta na posse!
37.a Esta, porém, deve ser pública e pacífica, para além ser, igualmente, indispensável a conservação da posse durante certo prazo, que a lei fixa, decorrente de distintas situações concretas.
38.a Mas, que nos presentes autos, seja qual for o prazo considerado, de 15 ou 20 anos, o mesmo só ao Autor/Recorrente aproveita e esta é a incontornável realidade.
39.a E, se os argumentos supra carecessem de mais fundamentos legais, sempre se dirá, que nos termos do art. 1183.° n.º 2 do CCM a posse não pode ser titulada quando o título com que se intencionou adquirir o direito tem vícios formais sendo insuficiente o recurso à mera prova testemunhal_ art. 1183.° CCM_ como parece ser a situação da 3.a Ré que na posse de documento particular procedeu a venda de bem inscrito quer no registo predial quer na matriz em nome de terceiros, sem nunca ter conseguido lograr registar ou sequer intentar acção de titularidade, o que se estranha!
40.ª Se houvesse por parte da 3.a Ré qualquer o animus teria intentado o procedimento cautelar de restituição provisória da posse no prazo legal de um ano e assim não o fez!
41.ª Envolvendo a posse, como vimos, no sistema subjectivo, o animus posssidendi, ou seja, a vontade de agir como titular de um direito real, sem essa vontade não há posse e, portanto, esta não se vem a adquirir.
42.ª O que parece ser a situação dos autos, ou seja, a 3.a Ré anua numa venda que não produz efeitos típicos do contrato de compra e venda, porquanto, não pode ser registada, mas, confessando ter efectuado a venda recebido parte do preço e desejando cancelar o negócio jurídico, não intenta a acção de restituição antes resolvendo mudar-se para Hong Kong!
43.a E é este comportamento um animus possidendi! Não cremos!
44.a Havendo a tradittio nos termos do art. 1192.° n.º 1 aI. d) conjugado com os art.1193.º e art.1187.º al. d) do CCM a posse do imóvel em litígio só pode beneficiar o Autor/Recorrente.
45.a Sendo o corpus e o animus caracterizados o primeiro elemento, material, corresponde aos actos materiais praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a mesma; enquanto o segundo elemento, psicológico, equivale à intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere.
46.a Face ao exposto o Autor/Recorrente reúne o corpus e o animus da posse do imóvel em crise nos termos supra definidos.
Nestes termos, terá de proceder o presente recurso, o que acarretará a revogação parcial da Sentença ora recorrida, com prolação da decisão que julgue procedente os pedidos formulados pelo Autor/Recorrente.
Com tal Decisão será feita, como é timbre deste Venerando Tribunal de JUSTIÇA!
Por sua vez, a Oponente C apresentou as seguintes conclusões e pedido:
a) Por Sentença, datada de 16 de Abril de 2018, o Tribunal a quo veio entender que “(...) no caso dos autos, quanto a C não se prova eu tenha o "corpus", pelo que, sem necessidade de outras considerações não poderá proceder a pretensão desta Oponente”.
b) Concluindo que “Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga se a pretensão do Autor improcedente porque não provada, bem como, também improcedentes por não provadas as pretensões dos Oponentes, sendo todos absolvidos dos respectivos pedidos, condenando-se o Autor como litigante de má-fé na multa de 6 UC”.
c) A Recorrente não concorda com esta qualificação e consequente absolvição, pelo que recorre da sentença na parte em que alega que não se prova o “corpus” da mesma.
d) Ora, como é do conhecimento do ora Autor este nunca pagou a totalidade do preço acordado no contrato promessa e perante o facto de não ter deduzida qualquer acção a favor da Recorrente desde 1992 que esta tem tentado devolver o sinal e receber o imóvel de volta conforme o contratualmente acordado entre as partes.
e) Pelo que a posse não é pacífica, pública nem de boa fé.
f) Consta da douta Sentença que “(...) no que concerne ao R/C para além de nunca se ter verificado a condição de eficácia a que o contrato de promessa de compra e venda estava sujeito, também não se demonstra, que o Autor aquando da celebração do mesmo haja pago a totalidade do preço, se haja convencido que desde então o havia adquirido, que a tradição da coisa ao tempo ocorrida o haja sido em função ou no pressuposto das partes terem havido como transmitido o direito e que desde então houvesse tido o "animus" e o "corpus" em que a posse se caracteriza de autêntico proprietário, ou que, não tendo havido tradição da coisa nos termos indicados tivesse havido inversão do título. Isto é, quanto ao R/c, pese embora o Autor tenha o poder de facto sobre a coisa - o corpus - não se prova em momento algum que o Autor exerça esse poder de facto como se fosse o dono da coisa, pois bem sabia, numca ter pago o preço na totalidade, condição esta, para que pudesse ficcionar materialmente a compra o que sabe nunca chegou a ter acontecido e beneficiar apenas de uma promessa de venda”.
g) Ou seja, a conclusão a retirar é que o Autor não tem a posse.
h) Pelo que não se compreende a afirmação de que “Nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 1192.º do C. Civ. o possuidor perde a posse “pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano”.
i) Ora, se o Autor nunca teve a posse como pode a ora Recorrente a ter perdido!!!!!
j) É pois manifesta a errada aplicação da lei por violação do disposto nos artigos 1175.º, 1176.º, n.º 2 e 1192.º, alínea d) do Código Civil de Macau.
k) Doutrinalmente é facto assente que o contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador.
l) Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
m) A coisa foi entregue ao promitente-comprador, mas não como se sua fosse já.
n) O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
o) Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.
p) Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente perante o promitente alienante.
q) Por outro lado, pode assim dizer-se, em conclusão, que não chega para se verificar a inversão do título da posse que tenha havido por parte do detentor precário a intenção de o inverter.
r) Com efeito, exige-se que a oposição se concretize em actos materiais ou jurídicos inequivocamente reveladores de que o opositor quer actuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa e que essa actuação se dirija contra a pessoa em nome de quem detinha e dela se torne conhecida.
s) No presente caso, é bem evidente que nada se foi alegado quanto ao conhecimento, pela Recorrente, da mudança de convicção do Autor, pois este nunca lhe comunicou, judicial ou extrajudicialmente, e de forma categórica, a sua intenção de passar a actuar como titular do direito de propriedade sobre o imóvel.
t) Deste modo, porque não se deu a inversão do título da posse, o Autor nunca se tornou verdadeiro possuidor em nome próprio do imóvel e, consequentemente, não o adquiriu, nem podia adquirir, por usucapião, desde logo porque o tempo necessário para tal efeito nem sequer começou a correr.
u) Tem efetivamente uma posse de má fé e precária.
v) Salvo o devido respeito, a Recorrente não concorda com o entendimento que não tem a posse porquanto o Autor também a não tem.
w) Considerando o acima exposto, devemos necessariamente concluir que a Recorrente tem a posse.
x) Tendo decidido mal, deve a sentença recorrida ser revogada.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso apresentado pelo Oponente ser recebido e deferido, por provado, e em consequência deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que declare a Oponente, ora recorrente, por usucapião, como a legítima titular do direito de propriedade do R/C do prédio em causa nos presentes autos, para todos os efeitos legais, nomeadamente o de o poder registar em seu nome na Conservatória do Registo Predial, assim se fazendo a costumeira JUSTIÇA!
E os Oponentes D e E apresentaram as seguintes conclusões pedindo que:
I. Os Oponentes D e E não se conformando com a sentença proferida pelo douto tribunal a quo, interpuseram recurso da mesma para o TSI, nos termos conjugados dos artigos 583.º, n.º 1, 585.º, n.º 1, 591.º, n.º 1, 600.º, 601.º, n.º 1, alínea a), 603.º e 607.º, n.º 1, todos do CPC, pois, no seu entender, a. mesma padece dos seguintes vícios: (a) Errada interpretação e aplicação da lei, por violação do disposto nos artigos 1315.º, n.º 1, 1317.º, n.º 1, e 1320.º, todos do CC, e da Lei n.º 6/99/M, no que respeita ao regime da constituição da propriedade horizontal; e (b) Errada interpretação e aplicação de lei, por violação do disposto no artigo 1216.º do CC, no que respeita ao regime da compropriedade.
II. Resultou provado nos presentes autos que os pais dos ora Recorrentes compraram o primeiro andar do prédio sub judice a LEI, IAO, ali passando a viver com a sua família sem pagarem rendas a alguém, fazendo obras no primeiro andar do prédio a expensas suas, dando-o em arrendamento e recebendo rendas, e actuando os Recorrentes e seus antecessores, desde 1962, como se fossem donos do primeiro andar do referido prédio.
III. Mais resulta dos autos que, uma vez que os Recorrentes se mantêm na posse do primeiro andar como se seus proprietários fossem, por si e antepossuidores há mais de 15 anos, verifica-se que os mesmos poderiam adquirir o respectivo direito pelo decurso do prazo, ou seja, por usucapião, no que ao primeiro andar diz respeito.
IV. Contudo, entendeu o douto tribunal que não foi feita prova de que a entidade pública a quem cabe a aprovação e fiscalização das construções reconheceu e autorizou a possibilidade do prédio em causa ser constituído em propriedade horizontal, pelo que não estão verificados os requisitos de índole administrativa necessários para que se possa reconhecer a constituição da propriedade horizontal por usucapião, como tal, o douto tribunal indeferiu, sem mais, o pedido dos ora Recorrentes.
V. Não podem os Recorrentes conformar-se com o entendimento explanado na sentença sub judice, por o mesmo se mostrar desconforme com o n.º 1 do artigo 1315.º, o n.º 1 do artigo 1317.º e o artigo 1320.º, todos do CC.
VI. Não concebem os Recorrentes em que medida não se encontram preenchidos os requisitos necessários para a constituição da propriedade horizontal do prédio por usucapião, tanto que, deitando mão das palavras do douto tribunal, "relativamente a esta matéria dúvidas não há que o prédio a que se reportam os autos é composto por dois andares com o mesma área, independentes e distintos entre si e com saídas próprias para a via pública, pelo que, reúnem os requisitos substantivos para que cada um possa ser objecto de propriedade horizontal constituindo fracções autónomas distintas".
VII. Resulta da matéria dada como provada o fim a que cada uma das fracções materialmente se destina, uma vez que, o Rés-do-Chão é utilizado para comércio, onde tem vindo a ser explorada uma pastelaria, e o 1.º andar destina-se a habitação.
VIII. Contudo, entendeu o douto tribunal que, apesar do Código Civil de Macau não ter uma disposição semelhante ao artigo 1418.º, n.º 3 do Código Civil Português, segundo o qual “A falta de especificação exigida pelo n.º 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do n. º 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo", a simples prova de que as fracções cumprem os requisitos do artigo 1315.º não nos permite concluir se têm as condições legais exigidas para o efeito nos termos da Lei n.º 6/99/M.
IX. Acrescentando ainda que, a realidade de Macau prevê a existência de subcondomínios, sendo fácil que um condomínio seja constituído por um milhar de fracções de composições, áreas e fins distintos, sendo que essa realidade não é compatível com a simples prova de que cada uma das fracções obedece aos requisitos do artigo 1315.º do CC, como tal, para que possa ser reconhecida a propriedade horizontal por usucapião, são necessárias apreciações técnicas que estão para além da função jurisdicional.
X. Ao assim decidir, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1315.º, n.º 1, 1316.º, n.º 3, 1317.º, n.º 1, e 1320.º, todos do CC, e, bem assim, a Lei n.º 6/99/M.
XI. Se o legislador de Macau, aquando da elaboração, discussão e aprovação do actual Código Civil, decidiu não introduzir no diploma uma disposição de teor semelhante à existente no n.º 3 do artigo 1418.º do Código Civil Portugal, cuja letra se mantém inalterada desde 1994, fê-lo porque, em nossa opinião, entendeu que a mesma não deveria ter aplicabilidade na realidade de Macau, pelo que, na ausência de disposição expressa, semelhança à portuguesa, a desconformidade ou inexistência de projecto aprovado pela entidade pública competente não gera a nulidade do título constitutivo.
XII. Por outro lado, não nos parece um argumento válido apelar à existência de prédios em Macau com milhares de fracções, destinadas a uma pluralidade de fins, e divididos em subcondomínios, para logo concluir que o crivo de legalidade deve ser o mesmo num simples prédio com rés-do-chão e primeiro andar e, naqueles outros, com milhares de fracções afectas a múltiplos fins.
XIII. A constituição de um prédio em propriedade horizontal está sujeita, tão só, ao cumprimento das disposições legais que regulam a matéria e não alcançam os Recorrentes que disposição legal não se mostra cumprida que impeça a constituição da propriedade horizontal.
XIV. Os requisitos constantes dos artigos 1315.º, 1317.º e 1320.º, todos do CC, mostram-se cumpridos no caso dos autos e constam na matéria de facto dada como provada.
XV. Não se alcança igualmente que norma específica da Lei n.º 6/99/M tenha sido violada, tanto que, em momento algum vem referido naquele diploma que a emissão de determinada certidão ou declaração por entidade administrativa seja requisito essencial à constituição da propriedade horizontal.
XVI. Não existindo no regime desta Região uma cominação expressa que determina a nulidade do título constitutivo face à inexistência / desconformidade do projecto aprovado pela entidade pública competente, não vêm os Recorrentes em que medida pode o douto Tribunal impedir a constituição da propriedade horizontal por usucapião numa situação como a dos autos, em que foi dado como provado que o prédio é composto por dois andares com a mesma área, independentes e distintos entre si e com saídas próprias para a via pública, pelo que, reúnem os requisitos substantivos para que cada um possa ser objecto de propriedade horizontal constituindo fracções autónomas distintas.
XVII. Face ao supra exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que proceda à constituição da propriedade horizontal do prédio urbano composto de R/Chão e 1.º andar, sito na Rua..., n.º 15, na Ilha da Taipa, por usucapião, nos termos conjugados dos artigos 1315.º, 1317.º e 1320.º, todos do CC.
XVIII. A título subsidiário, e no caso de improcedência do pedido de constituição da propriedade horizontal por usucapião, os ora Recorrentes pediram, na sua oposição espontânea, que se reconheça terem adquirido o prédio dos autos em compropriedade, o que seria possível face ao disposto no artigo 1216.º do CC.
XIX. Contudo, entendeu o douto tribunal, na decisão sub judice, que os ora Recorrentes e demais partes deviam ter demonstrado que todos os compossuidores haviam exercido a posse "sobre a totalidade do prédio" e não apenas sobre uma parte dele, assim, pese embora se prove a posse boa para usucapir dos Recorrentes sobre o primeiro andar, não incidindo esta sobre a totalidade do prédio, não podem estes, com base naquela, usucapir o direito de propriedade do mesmo, tendo assim improcedido a sua pretensão.
XX. Entendem os Recorrentes que não assiste razão ao entendimento expendido na sentença também no que respeita ao pedido subsidiário de declaração da compropriedade.
XXI. Resulta provado dos autos que os ora Recorrentes, por si e antepossuidores, se mantêm na posse do primeiro andar do prédio sito no n.º 15 da Rua..., na Taipa, como se seus proprietários fossem, há mais de cinco décadas, pelo que os mesmos poderiam adquirir o respectivo direito pelo decurso do prazo, ou seja, por usucapião, no que ao primeiro andar diz respeito.
XXII. Resultando provada nos presentes autos a posse boa, para usucapião, e resultando improcedente o pedido de constituição da propriedade horizontal por usucapião, não se concebe por que motivo não foi admitido o pedido de declaração dos Recorrentes como comproprietários do prédio, por o terem adquirido por usucapião, quando o artigo 1216.º do CC refere que "a usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita igualmente aos demais compossuidadores".
XXIII. Não se admite que a compropriedade só poderia ser declarada se o compossuidor exercesse a posse sobre a totalidade do prédio, uma vez que, tal interpretação, além de desconforme com a lei, não mereceu qualquer acolhimento do legislador em situações semelhantes, nem da melhor jurisprudência que tem vindo, precisamente, a adoptar um entendimento contrário ao da presente decisão.
XXIV. Não podendo ser invocada a usucapião do direito de propriedade em relação a cada uma das unidades ainda que independentes por falta de constituição da propriedade horizontal, a situação importa o reconhecimento do direito de compropriedade tendo em atenção a actuação dos ora Recorrentes em relação ao 1º andar e ao prédio em que está inserido.
XXV. Cada um dos compossuidores não tem necessariamente de exercer a posse sobre toda a coisa - basta que um dos compossuidores utilize materialmente uma parte concreta da coisa (...) sem prejuízo de tal modo do exercício significar a posse da respectiva quota ideal.(neste sentido vide acórdão de 11 de Novembro de 1997, do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, em que foi relator Sousa Inês, no processo n.º 98B569 e que ora se invoca a titulo de direito comparado dada a semelhança de regimes)
XXVI. O legislador de Macau, no artigo 1316.º, n.º 1 do CC, veio prever que, "a falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, atribuindo-se a cada consorte a quota que lhe tiver sido fixada nos termos do n.º 1 do artigo 1318.º ou, na falta de fixação, a quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.”
XXVII. De acordo com o referido artigo, no caso de ser declarado nulo o título constitutivo da propriedade horizontal, o prédio passará a estar sujeito ao regime da compropriedade atribuindo-se a cada comproprietário a quota correspondente à permilagem da sua fracção autónoma.
XXVIII. Esta solução legislativa, além de adequada, salvaguarda a posição jurídica dos proprietários ou possuidores de cada fracção que, de outro modo, ficariam sem saber que estatuto assumiriam relativamente à totalidade do prédio com a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.
XXIX. A factualidade apurada relativamente ao prédio sito na Rua..., n.º 15, na Taipa merece um tratamento semelhante ao dos casos abrangidos pelo artigo 1316.º, n.º 1 do CC.
XXX. Salvo devido respeito, não será de admitir que o douto Tribunal dê como provada a boa posse dos Recorrentes para efeitos de usucapião, porque .actuam, por si e seus ante possuidores, com o «animus» e o «corpus» de possuidores há mais de cinco décadas, e dê igualmente como provado que o prédio a que se reportam os autos é composto por dois andares com a mesma área, independentes e distintos entre si e com saídas próprias para a via pública, contudo, tenha indeferido ambos os pedidos dos Recorrentes, desconsiderando, em absoluto, a posição de possuidores de detêm relativamente ao primeiro andar, e negando-lhe qualquer protecção jurisdicional, quer por via da constituição da propriedade horizontal por usucapião, quer através da declaração de compropriedade.
XXXI. Caberia ao douto Tribunal acautelar, da forma que entendesse mais adequada, e por referência aos pedidos das partes, a posição jurídica de cada um dos intervenientes face ao prédio.
XXXII. A posição das partes e a estabilidade e segurança do trafego jurídico imobiliário sairia acautelada com a constituição da propriedade horizontal, por usucapião, ou a declaração de compropriedade do prédio em apreço.
XXXIII. Face ao supra exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare os Recorrentes como comproprietários do prédio com o n.º 15 da Rua..., na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., a fls…. do Livro …, inscrito na matriz predial sob o n.º ..., por o terem adquirido por usucapião.
Nestes termos,
E nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta decisão do Tribunal a quo ser revogada e substituída por uma outra que proceda à constituição da propriedade horizontal do prédio urbano composto de R/Chão e 1.º andar, sito na Rua..., n.º 15, na Ilha da Taipa, por usucapião, nos termos conjugados dos artigos 1315.º, 1317.º e 1320.º, todos do CC.
Subsidiariamente, e caso assim não se entenda,
Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare os Recorrentes como comproprietários do prédio com o n.º 15 da Rua..., na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., a fls. … do Livro …, inscrito na matriz predial sob o n.º ..., por o terem adquirido por usucapião.
Assim fazendo V. Exas. a costumada
JUSTIÇA!
Notificadas todas as partes das alegações dos vários recursos, vieram apenas os Oponentes D e E contra-alegar o recurso interposto pelo Autor mediante o requerimento ora constante das fls. 1076 a 1086 dos presentes autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Tendo em conta os pedidos pelas partes formulados na primeira instância, assim como os vertidos nas conclusões tecidas nas petições de recurso, todos os recorrentes pretendem que lhe seja reconhecida a posse por tempo necessário à aquisição por usucapião da propriedade do imóvel, na totalidade ou numa determinada parte por eles identificada.
Portanto, constituem o objecto da nossa apreciação as questões de saber se o Autor e os Oponentes têm posse sobre o imóvel, no seu inteiro ou numa parte especificada, e em caso afirmativo, se a posse de cada um conduz à aquisição por usucapião da propriedade do imóvel.
Assim, todas as questões suscitadas pelos recorrentes foram orientadas para uma instituição jurídica, que é justamente a posse.
É-nos por isso conveniente relembrar o que se deve entender por posse.
Segundo a doutrina autorizada de Orlando Carvalho, posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício). Envolve, portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico-jurídico – em termos de um direito real. Ao primeiro é que se chama corpus e ao segundo animus. Elementos, como se disse, interdependentes ou em relação biunívoca – “Introdução à posse”, in RLJ, Nº 3781º, pág. 104 e 105.
Por sua vez, Manuel Rodrigues diz: a adquisição da posse realiza-se pelo exercício de um poder de facto sobre uma coisa, no interesse daquele que o exerce. Exige portanto um elemento material – o corpus – e um elemento intencional – o animus. – in A Posse, Almedina, pág. 181 e 182.
Ficamos relembrados desses ensinamentos na matéria de posse que, ao que parece, todos os recorrentes concordam, uma vez que todos tentem aqui com todo o esforço convencer este Tribunal de recurso de que eles têm poderes empíricos sobre a coisa – corpus e o animus dominandi, sobre o imóvel ou uma parte identificada do imóvel.
Não tendo sido impugnada a matéria de facto fixada na primeira instância, o nosso trabalho a seguir consiste apenas em analisar se é juridicamente qualificável como verdadeira posse a actuação de cada um dos recorrentes, tal qual como a descrita na matéria assente.
1. Da posse reclamada pele Autor A e pela Oponente C
Na petição inicial o Autor A alegou ter a posse sobre a totalidade do imóvel, composto do rés-do-chaão e do 1º andar, sito na RAEM, na Ilha da Taipa, na Rua... nº 15, que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... inscrito a fls. … do Livro-… e registado junto da Repartição de Finanças com a matriz nº ....
A presente acção foi inicialmente instaurada pelo Autor contra apenas B, que é o titular do imóvel inscrito no registo predial, e o Ministério Público, sem que tenha sido feita qualquer referência quanto à presença na história contada na petição inicial de C, D e E, que posteriormente intervieram espontaneamente como Oponentes, e quanto aos factos que lhes dizem respeito.
Com a posterior intervenção espontânea dos Oponentes, a história fica completa e mais clara.
Na versão de factos originariamente alegada na petição inicial, foram totalmente omitidos os factos, trazidos pelos Oponentes D e E e mais tarde comprovados nos autos, que apontaram a existência de um contrato de arrendamento, de que é arrendatário o Autor e é senhorio a família dos ora Oponentes D e E.
Foi justamente por omissão intencional pelo Autor da referência à presença dos oponentes na história e aos factos com eles relacionados, nomeadamente na parte que diz respeito ao 1º andar do prédio, que o Autor foi condenado pela litigância de má-fé pelo Tribunal a quo.
Portanto, de acordo com a matéria de facto provada, já podemos antever que o pedido de reconhecimento da posse pelo Autor sobre o 1º andar, julgado improcedente na primeira instância, reiterado aqui em sede de recurso, não será igualmente atendido por esta instância, conforme se verá infra.
Assim, abstemo-nos de apreciar a posse sobre 1º andar e relegamos para a apreciação infra a questão da posse que incide sobre o 1º andar e passemos desde já a debruçar-nos sobre a posse que incide apenas sobre o rés-do-chão do prédio.
O direito que a Oponente C pretende faze valer com a sua intervenção na presente acção colide parcialmente com a pretensão deduzida pelo Autor, ou seja, ambas as partes disputam sobre o rés-do-chão do prédio.
Ficou assente em relação ao Autor e à oponente C, no que diz respeito a rés-do-chão do prédio que:
* Em 27 de Dezembro de 1990, C e o Autor assinaram um acordo no qual estabeleciam que:
(1) Os dois outorgantes estabelecem o preço do imóvel acima em HKD250.000,00. Hoje, o primeiro outorgante recebe do segundo outorgante o sinal no valor de HKD100.000,00, o restante valor do preço, de HKD150.000,00 será pago ao primeiro outorgante no acto da celebração da escritura pública a realizar no Cartório Notarial;
(2) O proprietário primitivo do imóvel acima, Senhor P (romanização de P) encontra-se ausente em parte incerta durante muitos anos, assim, o imóvel cuja adjudicação à Senhora C está sujeita à sentença do Tribunal do Território de Macau. Após o procedimento do registo predial o primeiro outorgante cumpre a celebração da escritura pública com o segundo outorgante;
(3) Para efeito da dedução da acção junto do Tribunal do Território de Macau, os dois outorgantes concordam em estabelecer um período de dois anos, se, a acção ainda esteja pendente após o período estabelecido, o segundo outorgante pode ter de volta junto do primeiro outorgante o sinal pago, de HKD100.000,00, e imediatamente devolve ao primeiro outorgante a fracção no rés-do-chão. Ficando cancelado o “contrato-promessa de compra e venda” assinado sem consideração a respeito da violação contratual;
(4) Neste caso, os dois outorgantes podem celebrar contrato adequado à situação real, para a prorrogação do período, ou para o arrendamento;
(5) São a cargo do segundo outorgante todos os custos decorrentes da dedução da acção, como as custas processuais, as despesas com os documentos, os impostos governamentais, todas as despesas relacionadas com o prédio e os honorários de advogado;
(6) Efectuado o registo predial pelo primeiro outorgante, os dois outorgantes têm de cumprir a responsabilidade de indemnização prevista na Cláusula 6.ª do “contrato-promessa de compra e venda”, não podendo levantar objecção.”;
* No âmbito do acordo acima referido, o Autor pagou, a título de sinal, a quantia de MOP100.000,00;
* A 4 de Fevereiro do ano de 1991, o Autor tem efectuado um depósito de MOP150.00 (cento e cinquenta pataca) junto dos serviços de tesouraria da Companhia de Electricidade de Macau, para garantia do pagamento da energia a consumir o prédio N.º 15 da Rua... r/c na Taipa;
* Aquando da celebração do contrato de promessa de compra e venda do referido imóvel, no ano de 1990 e desde então o Autor …… no r/c abriu no mesmo ano, uma Loja de Pastelaria “X”;
* A referida loja, continua a ser explorada até ao presente, e constitui a fonte de rendimento da família do Autor;
* Em 11 de Junho de 1950, H (H), pai da ora Oponente C, adquiriu o imóvel em causa mediante contrato promessa de compra e venda a L(L), pelo preço de MOP3.400,00 – pago na íntegra -, que por sua vez havido adquirido o imóvel a um indivíduo de apelido Ho;
* Pelo menos desde 1962 a família da ora Oponente C passou a residir no imóvel em causa até 1990;
* C foi viver para Hong Kong;
* Apesar de residir em Hong Kong, a Oponente continuou, ao longo dos anos, a tentar devolver o sinal de MOP100.000,00 ao Autor e a requerer deste a entrega do imóvel;
* O rés-do-chão e o 1º andar do prédio a que se refere em a) da matéria do facto assente, são unidades prediais autónomas e independentes, com a mesma área, com acessos independentes e directos à via pública e com contadores de água, luz, gás e telefone também independentes;
Na óptica do Tribunal a quo, pelo menos, no momento da instauração da acção, a Oponente C já perdeu a posse que tinha sobre o rés-do-chão, ao passo que o Autor não tem a posse sobre o rés-do-chão.
Em relação à Oponente C, diz a sentença recorrida que:
Verifica-se assim que, quanto a C está demonstrado que o seu pai em 1950 adquiriu o imóvel em causa pagando integralmente o preço e pelo menos desde 1962 a sua família viveu no imóvel até 1990, data em que a Oponente C o prometeu vender ao aqui Autor, sendo que essa venda nunca se veio a concretizar, tendo a partir daí a C constituído advogado para interpor acção de rescisão do contrato e continuado ao longo dos anos a exigir do aqui Autor a entrega do imóvel mediante a devolução do sinal nos termos em que haviam acordado.
Ao proceder da forma descrita poderíamos inferir que a Oponente C actuava com o animus de ser a dona da coisa, contudo, pese embora reclame a entrega do aqui Autor a Oponente desde 1990 que não está na posse da coisa, isto é, não exerce qualquer poder de facto sobre a coisa nem tem a possibilidade de o continuar a exercer quando assim o desejar, o que se infere de pedir a entrega e nada obter e nada fazer.
Nos termos da al. d) do nº 1 do artº 1192º do C.Civ. o possuidor perde a posse “pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de 1 ano”.
Quanto ao Autor, foi dito na fundamentação da sentença recorrida que:
Ora, no que concerne ao R/C para além de nunca se ter verificado a condição de eficácia a que o contrato de promessa de compra e venda estava sujeito, também não se demonstra, que o Autor aquando da celebração do mesmo haja pago a totalidade do preço, se haja convencido que desde então o havia adquirido, que a tradição da coisa ao tempo ocorrida o haja sido em função ou no pressuposto das partes terem havido como transmitido o direito e que desde então houvesse tido o “animus” e o “corpus” em que a posse se caracteriza de autêntico proprietário, ou que, não tendo havido tradição da coisa nos termos indicados tivesse havido inversão do título. Isto é, quanto ao R/C, pese embora o Autor tenha o poder de facto sobre a coisa – o corpus - não se prova em momento algum que o Autor exerça esse poder de facto como se fosse o dono da coisa, pois bem sabia, nunca ter pago o preço na totalidade, condição esta, para que pudesse ficcionar materialmente a compra o que sabe nunca chegou a ter acontecido e beneficiar apenas de uma promessa de venda.
Antes de mais, é de notar que, salvo o devido respeito, a fundamentação jurídica em si é algo contraditória.
Senão vejamos.
Reza o artº 1192º do CC que:
1. O possuidor perde a posse:
a) Pelo abandono;
b) Pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio;
c) Pela cedência; ou
d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de 1 ano.
2. A nova posse de outrem conta-se desde o seu início, se foi tomada publicamente, ou desde que é conhecida do esbulhado, se foi tomada ocultamente; sendo adquirida por violência, só se conta a partir da cessação desta.
In casu, ante a matéria de facto fixada na primeira instância e não impugnada aqui em sede de recurso, obviamente não estamos perante qualquer das situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo.
A situação prevista na alínea c) é de afastar, pois, concordamos inteiramente com o Tribunal a quo, na parte de fundamentação que entende que o negócio celebrado entre a Oponente C e o Autor não tem qualquer efeito translativo, quer da propriedade do rés-do-chão, quer da posse sobre o rés-do-chão.
Assim, a comprovada posse da Oponente C só se pode perder na restante situação prevista na alínea d), que é a posse de outrem.
O que é aliás o entendimento do Tribunal a quo.
Só que a sentença recorrida não reconheceu a posse invocada pelo Autor, pois diz na fundamentação que pese embora o Autor tenha o poder de facto sobre a coisa – o corpus - não se prova em momento algum que o Autor exerça esse poder de facto como se fosse o dono da coisa.
Se o Tribunal a quo estivesse convicto que a Oponente C perdeu a posse que tinha, a partir de uma determinada altura, sempre posterior a 1990, data em que foi celebrado o contrato promessa de compra e venda do rés-do-chão, teria de ter concluído que o Autor, ou uma outra pessoa qualquer, tenha passado a exercer a posse sobre o rés-do-chão, face ao disposto no artº 1192º/1 do CC.
Ou seja, de duas uma, ou a Oponente continua a ter a posse, ou esta perdeu a posse com a posse do Autor.
Não tendo assim concluído na sentença recorrida, a fundamentação de não reconhecimento da posse a qualquer das partes não se pode manter.
Então vamos interpretar globalmente as actuações do Autor e da Oponente descritas na matéria de facto fixada na primeira instância, a fim de apurar a quem se deve reconhecer a posse sobre o rés-do-chão.
Antes de mais, há que salientar que nós concordamos inteiramente com o Tribunal a quo quando este diz que não se prova em momento algum que o Autor exerça esse poder de facto como se fosse o dono da coisa.
Cremos que a falta de razão de facto se deve à fraqueza manifesta da petição inicial que, na nossa óptica, merece o indeferimento liminar, e ainda agravada pela intenção por parte do Autor de omitir muitos factos relevantes que só foram mais tarde trazidos pela Oponente C e acabaram de ser dados por provados pelo Tribunal.
Ao que parece que, ao redigir a sua petição incial, o Autor só teve cuidado de omitir os factos relevantes, relacionados com a Oponente C, tendo ignorado todavia os factos essenciais e instrumentais necessários à procedência da sua pretensão, ou seja, o reconhecimento da posse ao Autor e a declaração do Autor como proprietário do imóvel.
Na verdade, basta uma leitura do que foi alegado pelo Autor na petição inicial, verificamos logo que, para além da exposição de algumas teorias doutrinárias sobre a matéria da posse e de considerações conclusivas, há deficiência manifesta de factos essenciais e instrumentais que nos habilitam a concluir pela prática de actos materiais sobre a loja como se fosse proprietário, muito menos factos demonstrativos do animus.
Apesar de ter ficado assente que, na sequência da celebração de um contrato promessa em 1990 que o Autor passou a ocupar o rés-do-chão para a exploração de pastelaria e a partir de 1991, tendo para o efeito efectuado um depósito junto da CEM para a garantia do pagamento da electricidade a consumir na loja, o certo é que o simples facto de ocupar o rés-do-chão para explorar uma pastelaria e o de contratar com a CEM, de per si representam, quanto muito, o elemento meramente empírico de corpus, não também o animus dominandi que é outro elemento essencial da posse.
Por outro lado, é tida por assente a matéria de facto que:
* …… a família da ora Oponente C passou a residir no imóvel em causa até 1990;
* C foi viver para Hong Kong;
* Apesar de residir em Hong Kong, a Oponente continuou, ao longo dos anos, a tentar devolver o sinal de MOP100.000,00 ao Autor e a requerer deste a entrega do imóvel;
Mesmo assim, não altera o nosso entendimento de que o Autor não chegou a exercer a posse sobre o rés-do-chão.
Pois, para nós, esta parte da matéria de per si não afirma a perda da posse por parte da Oponente C, nem a aquisição de posse pelo Autor.
Então, vamos ler de novo as versões de facto contadas nos articulados, para saber se podemos encontrar que alguma matéria relevante ai alegada, por qualquer motivo não levada à base instrutória e portanto não constante da matéria de facto assente, tem a virtualidade de nos habilitar a encontrar uma boa solução para dar ao presente pleito que envolve ambas as partes, o Autor e a Oponente.
Só no requerimento de oposição espontânea deduzida pela Oponente C, onde, no contexto da sequência da não celebração do contrato prometido conforme os termos do contrato-promessa celebrado em 1990 entre ela e o Autor, foi alegado o seguinte:
16º
No entanto, apesar de ter ficado assente que a Opoente teria que dar entrada de uma acção, no entanto, tal não aconteceu por não ser necessário visto que a aquisição realizada pelo seu pai foi com quem havia adquirido o imóvel ao proprietário B.
17º
Perante a ausência de acção a ora Opoente passado dois anos entrou em contacto com o Autor para proceder à entrega do sinal e para receber a posse do imóvel de volta.
18º
Com grande espanto quando se dirigiu ao Autor para fazer a entrega do sinal o mesmo alegou não querer o sinal de volta nem estar disposto a fazer a entrega do imóvel.
19º
O Autor chegou mesmo a ser agressivo perante o olhar das testemunhas que acompanhavam a Opoente.
Então pergunta-se se esta matéria, não obstante alegada pela Oponente C, tem a virtualidade de nos levar a considerar que o Autor está a agir com corpus e animus sobre o rés-do-chão?
Como se sabe, uma das formas possíveis de aquisição da posse é a inversão do título de posse, definido no artº 1190º do CC, à luz do qual a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro abstractamente idóneo para atribuir ao detentor o direito real nos termos do qual, e em virtude do qual, passe a possuir.
Segundo o Douto Ensinamento de Orlando de Carvalho, ……trata-se da conversão de uma detenção em posse por acto do próprio detentor. Alguém que exerce poderes de facto sobre uma coisa com a simples animus detinendi (detentor ou possuidor precário) converte a sua detenção em verdadeira posse, passando a agir com animus possidendi ou verdadeiro animus. Trata-se de um processo fundamentalmente psicológico (conversão de animus em animus, ou substituição de um animus por outro), ainda que com referência jurídica (direito obrigacional, ou mera tolerância, ou inércia de titular – direito real) e, obviamente, em condições de ser sindicável. Em resumo: trata-se da substituição psicológica da razão a cujo título se exercem esses poderes, ou com alguma elipse (e alguma incorrecção), do título pelo qual se possui (rectius: do título pelo qual se actua, antes detendo e depois possuindo)……– Ipidem, nº 3810,pág. 261 e 262.
Nos termos prescritos no artº 430º/1 do CPC, que dispõe sobre a forma como se elabora o despacho saneador, ……, o juiz, no próprio despacho ……, selecciona a matéria de facto relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, ……
Todavia, perante esta matéria de facto, assim descrita e trazida pela Oponente C no seu articulado, mesmo em conjugação com a matéria tida por assente na primeira instância, não cremos que seja suficiente para reconhecer ao Autor a posse sobre o rés-do-chão, com fundamento na inversão do título de posse, uma vez que esta matéria, mesmo que venha a ser provada, está longe de habilitar este Tribunal a concluir pela existência do animus na mente do Autor, e quanto muito só demonstra factos materiais de recusa de receber o sinal pago e de entrega do imóvel à Oponete C, que podem ser motivados por razões variadíssimas.
Dada a deficiência dessa matéria de facto, não levada à base instrutória, para nos levar a reconhecer ao Autor a posse adquirida mediante a inversão do título de posse, não se justifica a anulação oficiosamente da decisão proferida na primeira instância e a consequente ampliação da base instrutória e a repetição de julgamento, nos termos prescritos no artº 629º/4 do CPC.
Assim, na esteira do entendimento supra, ou seja, a posse do Oponente C só se perde com a posse entretanto adquirida pelo Autor, o não reconhecimento da posse ao Autor implica necessariamente a manutenção e a continuação da posse da Oponente.
E não pode ser de outra maneira!
Tal como pretende o Autor, a Oponente C interveio nos autos não só para reclamar a posse, como também para tentar obter uma sentença que a declare como proprietária do rés-do-chão.
Então, vejamos se se procede esse pedido.
Ora, ficou provado que
* Em 11 de Junho de 1950, H (H), pai da ora Oponente C, adquiriu o imóvel em causa mediante contrato promessa de compra e venda a L(L), pelo preço de MOP3.400,00 – pago na íntegra -, que por sua vez havido adquirido o imóvel a um indivíduo de apelido Ho;
* Pelo menos desde 1962 a família da ora Oponente C passou a residir no imóvel em causa até 1990;
Com esta matéria, dúvidas não temos de que a Oponente C sucedeu à posse do seu pai sobre o rés-do-chão, e tem exercida a posse após a morte do seu pai, nos termos do artº 1179º do CC, à luz do qual por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.
Por sua vez, o artº 1221º do CC reza que não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse.
A matéria assente demonstra que a duração temporal da posse por parte da Oponente vai muito além desses prazos, de 15 anos ou de 20 anos.
Não obstante a ainda não constituição do imóvel em propriedade horizontal, conforme se verá infra, tal não constitui motivo impeditivo de este Tribunal declarar a Oponente C como proprietária apenas do rés-do-chão do imóvel.
Assim sendo, é de declarar a Oponente C ser proprietário do rés-do-chão do imóvel por adquisição por usucapião.
2. Da posse dos Oponentes D e E quanto ao 1º andar
No que diz respeito à reclamada posse pelos Oponentes D e E, relativa ao 1º andar do imóvel, a sentença recorrida não poupou esforço para lhos reconhecer exaustivamente, nos termos seguintes:
Quanto a D e E ficou provado que o pai destes comprou ao pai de C o 1º andar do prédio a que se reportam os autos ali passando a viver com a sua família sem pagarem rendas a alguém, fazendo obras no prédio a expensas suas, dando-o em arrendamento e recebendo as rendas, actuando D e E como se fossem os donos do 1º andar.
Ao proceder relativamente ao imóvel como sendo o imóvel coisa sua, actuam os Oponentes D e E com «animus» e «corpus» de possuidores – artº 1175º do C.Civ. - aqui concretizados quer no poder de facto traduzido em ter colocado a coisa sob o seu poder e na possibilidade de o continuarem a exercer – corpus – bem como na intenção com que o fazem, agindo como titulares do direito de propriedade – animus -7, posse esta que por si e antepossuidores data desde 1962 e que se mantém – artº 1179º e artº 1181º nº 1 ambos do C.Civ -.
Posse essa, que não sendo titulada8, uma vez que não foi adquirida nos termos formalmente imposto para a aquisição do direito de propriedade – artº 1183º do C.Civ. – é de boa-fé, pacífica e pública e foi adquirida nos termos do artº 1187º al. a) e b) do C.Civ.
Nos termos do artº 1212º e 1221º ambos do C.Civ. a posse não titulada, de boa-fé, pacífica e pública do direito de propriedade, quando mantida por mais de 15 anos faculta ao possuidor a aquisição do direito correspondente à sua actuação, neste caso o direito de propriedade.
Assim sendo, e uma vez que os Oponentes D e E se mantêm na posse da fracção autónoma referida como se seus proprietários fossem, por si e antepossuidores há mais de 15 anos, verifica-se que os mesmos poderiam adquirir o respectivo direito pelo decurso do prazo, ou seja, por usucapião, mas apenas quanto ao 1º andar.
Não obstante a não impugnação desta parte de decisão pelos Oponentes D e E, temos de nos pronunciar sobre a questão de saber a quem deve ser reconhecida a posse sobre 1º andar, uma vez que o Autor reclama a posse sobre o 1º andar.
A este propósito, conforme se vê na Douta decisão ora recorrida nesta parte, foi demonstrada, com raciocínio inteligível e razões sensatas e convincentes, a improcedência do pedido do Autor quanto ao 1º andar, não se nos afigura outra solução melhor do que a de louvar aqui a decisão recorrida e, nos termos autorizados pelo artº 631º/5 do CPC, remeter para os Doutos fundamentos invocados na decisão recorrida, julgando improcedente o recurso do Autor e confirmando a decisão recorrida, na parte que diz respeito ao 1º andar do imóvel.
Na verdade, a pretensão do Autor quanto ao 1º andar em caso algum pode proceder, uma vez que, ante a matéria de facto provada, ele não é mais do que o arrendatário, mero detentor, que tem vindo a pagar rendas, inicialmente ao pai dos Oponentes D e E, e posteriormente aos mesmos Oponentes que são verdadeiros possuidores.
3. Da usucapião do 1º andar do imóvel
Tendo sido embora reconhecida aos Oponentes D e E a posse com vista à aquisição por usucapião, esta não veio a ser decretada pelas seguintes considerações:
Porém o prédio em causa é um todo, constituído por dois andares, pelo que, vêm os Oponentes pedir a constituição do prédio em propriedade horizontal, de modo a que a usucapião possa ser reconhecida apenas quanto à parte que possuem.
Nos termos do nº 1 do artº 1315º do C.Civ. “podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio ou para a via pública”.
Relativamente a esta matéria dúvidas não há que o prédio a que se reportam os autos é composto por dois andares com a mesma área, independentes e distintos entre si e com saídas próprias para a via pública, pelo que, reúnem os requisitos substantivos para que cada um possa ser objecto de propriedade horizontal constituindo fracções autónomas distintas.
De acordo com o nº 1 do artº 1317º do C.Civ. a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião.
Para que se constitua o regime de propriedade horizontal por usucapião é necessário que a posse exercida sobre as unidades independentes, distintas entre si e com entradas próprias, tenha as características próprias da usucapião.
Entende, contudo alguma jurisprudência, nomeadamente a Portuguesa, que não se provando que para além daqueles requisitos – no caso de Macau os do artº 1315º C.Civ - o prédio respeita também, todos os requisitos administrativos necessários para que possa ser constituída a propriedade horizontal, aquela não pode ser declarada – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal, 23.12.2012 Proc. 16/11.1TBVZL.C2 e 07.04.2016 Proc. 421/13.9TBOHP.C1 -.
Encontra aquele entendimento acolhimento no nº 3 do artº 1418º do C.Civ. Português.
O Código Civil de Macau não tem norma correspondente ao nº 3 do artº 1418º do C.Civ. Português.
Porém, o artº 1320º do C.Civ. exige ainda que no título de constituição da propriedade horizontal se faça constar o fim a que se destina cada fracção e cada parte comum que seja afecta a fins específicos.
Ora, a simples prova de que as fracções cumprem os requisitos do artº 1315º não nos permite concluir qual o fim a que se destinam e/ou se têm as condições legais exigidas para o efeito nos termos da Lei nº 6/99/M.
Por outro lado, se no caso dos autos o prédio relativamente ao qual é pedida a constituição de propriedade horizontal é pequeno e constituído apenas por 2 pisos correspondendo a cada um, uma fracção autónoma, o certo é que a realidade de Macau é muito diversa disso, prevendo inclusivamente a lei a existência de subcondominios, sendo fácil que um condomínio seja constituído por um milhar de fracções de composições, áreas e fins distintos.
Ora esta realidade não é compatível com a simples prova de que cada uma das fracções obedece aos requistos do artº 1315º do C.Civ. para que possa ser reconhecida a propriedade horizontal por usucapião, exigindo apreciações técnicas que estão para além da função jurisdicional.
Os fundamentos para o reconhecimento judicial da propriedade horizontal por usucapião não podem variar em função da dimensão do prédio, pelo que, não se pode aceitar de modo algum que se possa vir a reconhecer a constituição de um prédio sob o regime de propriedade horizontal sem que se faça também a prova de que a entidade competente para o efeito reconhece que o mesmo obedece aos requisitos necessários para o efeito, sob pena da decisão judicial vir a colidir com o disposto no nº 3 do artº 1316º do C.Civ.
Destarte, uma vez que no caso dos autos não foi feita a prova de que a entidade pública a quem cabe a aprovação e fiscalização das construções reconheceu e autorizou a possibilidade do prédio em causa ser constituído em propriedade horizontal e em que termos, não estão verificados os requisitos necessários para que se possa reconhecer a constituição da propriedade horizontal por usucapião.
Assim sendo, e uma vez que os Oponentes D e E apenas têm a posse do 1º andar do prédio dos autos e não sendo possível destacar esta parte do remanescente, não se pode reconhecer que estes oponentes hajam adquirido parte do prédio por usucapião.
Os Oponentes vieram justamente reagir contra esta parte da sentença.
Ora, foi por não ter sido feita a prova de que a entidade pública a quem cabe a aprovação e fiscalização das construções reconheceu e autorizou a possibilidade do prédio em causa ser constituído em propriedade horizontal, ou seja, por razões técnicas que o Tribunal a quo considerou impeditivas da constituição de propriedade horizontal por via mera judicial, que o Tribunal a quo julgou improcedente o pedido dos Oponentes de adquirir por usucapião o 1º andar do imóvel.
Salvo o devido respeito, não cremos que é de subscrever este entendimento.
Ora, é tida por assente já no saneador que o rés-do-chão e o 1º andar do prédio a que se refere em a) da matéria do facto assente, são unidades prediais autónomas e independentes, com a mesma área, com acessos independentes e directos à via pública e com contadores de água, luz, gás e telefone também independentes – matéria especificada em p).
É verdade que o prédio não foi constituído em propriedade horizontal.
Todavia, conforme se vê nos presentes autos, nomeadamente os factos provados na primeira instância que nenhuma das partes questionou, o 1º andar é sempre tido como uma fracção que funciona bem em termos das utilidades que proporciona e do seu aproveitamento para fins habitacionais, quaisquer que seja o inquilino, ou seja, a família do H, a Oponente C, um funcionário da Câmara Municipal das Ilhas, a Família dos Oponentes D e E.
Assim, cremos que, nos termos permitidos nos artºs 1315º/1 e 1317º/1, ambos do CC, devemos declarar os Oponentes proprietários do 1º andar do imóvel, enquanto fracção autónoma a constituir em sede da execução da sentença onde se procederá à constituição judicial da propriedade horizontal nos termos do CC.
Em conclusão:
3. Posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real; e
4. Ficou provado que o rés-do-chão e o 1º andar do prédio são unidades prediais autónomas e independentes, com a mesma área, com acessos independentes e directos à via pública e com contadores de água, luz, gás e telefone também independentes e que o 1º andar é sempre tido como uma fracção que funciona bem em termos das utilidades que proporciona e do seu aproveitamento para fins habitacionais, o simples facto de o prédio não ter sido ainda constituído em propriedade horizontal não deve ser impeditivo de declarar, nos termos permitidos nos artºs 1315º/1 e 1317º/1, ambos do CC, os possuidores do 1º andar e o possuidor do rés-do-chão, como proprietários do 1º andar e do rés-do-chão do prédio, respectivamente, enquanto fracção autónoma a constituir em sede da execução da sentença onde se procederá à constituição judicial da propriedade horizontal nos termos do CC.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam:
* Julgar improcedente o recurso do Autor;
* Julgar procedente o recurso da Oponente C, revogando a parte da sentença na parte que lhe diz respeito e declarando-a como proprietário do rés-do-chão do imóvel (sito na RAEM, na Ilha da Taipa, na Rua... nº 15, que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... inscrito a fls. … do Livro-… e registado junto da Repartição de Finanças com a matriz nº ...), enquanto fracção autónoma a constituir em sede da execução da sentença onde se procederá à constituição judicial da propriedade horizontal nos termos do CC; e
* Julgar procedente o recurso interposto pelos Oponentes D e E, revogando a parte da sentença na parte que lhes diz respeito e passando a declará-los proprietários do 1º andar do imóvel (sito na RAEM, na Ilha da Taipa, na Rua... nº 15, que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... inscrito a fls. … do Livro-… e registado junto da Repartição de Finanças com a matriz nº ...), enquanto fracção autónoma a constituir em sede da execução da sentença onde se procederá à constituição judicial da propriedade horizontal nos termos do CC.
Custas da acção e do recurso pelo Autor.
Registe e notifique.
RAEM, 10OUT2019
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
1 Requerimento de fls. 66 e despacho de fls. 73 a acção não é proposta contra o Ministério Público como parecia indicar a p.i.
2 Veja-se Oliveira Ascensão em Direitos Reais, 4ª ed., pág. 470 e seguintes.
3 A matéria de facto é agora ordenada segundo um critério cronológico e lógico e não de acordo com a sequência que consta dos factos apurados.
4 Veja-se José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais pág. 86 a 94, Coimbra Editora, 1987.
5 Veja-se José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais pág. 86 a 94, Coimbra Editora, 1987.
6 Tendo a transmissão do direito de propriedade ao tempo que a Autora adquiriu a posse de seguir a forma de escritura de pública – artº 875º do C.Civ. Português e hoje artº 866º do C.Civ. e artº 94º do Código de Notariado – a falta de escritura pública – por não ter seguido o modo idóneo para adquirir o direito de propriedade – faz com que a posse não seja titulada. Veja-se, entre outras, anotação nº 26 ao artº 1259º em Código Civil Anotado de Abílio Neto, 14ª ed.
7 Veja-se José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais pág. 86 a 94, Coimbra Editora, 1987.
8 Tendo a transmissão do direito de propriedade ao tempo que a Autora adquiriu a posse de seguir a forma de escritura de pública – artº 875º do C.Civ. Português e hoje artº 866º do C.Civ. e artº 94º do Código de Notariado – a falta de escritura pública – por não ter seguido o modo idóneo para adquirir o direito de propriedade – faz com que a posse não seja titulada. Veja-se, entre outras, anotação nº 26 ao artº 1259º em Código Civil Anotado de Abílio Neto, 14ª ed.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Ac. 1152/2018-65