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Processo nº 815/2019 Data: 24.10.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “abuso de poder”.
Erro notório na apreciação da prova.
Dolo.
In dubio pro reo.
Penas alternativas.


SUMÁRIO
1. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.

Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.

2. Os factos psicológicos que traduzem o “elemento subjectivo da infracção” são, em regra, objecto de prova indirecta, ou seja, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência.

3. Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição.

Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva.

Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.

4. Sendo o crime punível com “pena de prisão ou multa”, e resultando da matéria de facto que a arguida é primária, que o seu dolo não é intenso, que elevado (também) não é o grau da ilicitude da sua conduta, e que desde a prática dos factos já decorreram mais de 6 anos, adequada se apresenta, atento o estatuído no art. 64° do C.P.M., a opção por uma pena não privativa da liberdade.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 815/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo, a final, a ser condenada como autora da prática de 1 crime de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano; (cfr., fls. 374 a 381 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada, a arguida recorreu, apresentando em sede da sua motivação de recurso as conclusões seguintes:

“1.a Veio a Arguida acusada de praticar um crime de abuso de poder por ter levado para execução de um exame patológico uma amostra de tecidos da sua cadela “Becca” no Serviço de Anatomia Patológica do CHCSJ, Serviço esse do qual era ela, à altura, Chefe funcional.
2.a Isto na sequência de ter sido encontrado um tumor no seu animal de estimação, que após consulta com o veterinário se suspeitou que podia ser cancro, e a Arguida, tratando-se de um caso urgente, decidiu fazer a análise anátomo-patológica no CHCSJ.
3.a Na tese da acusação a Arguida agiu dolosamente com vista a abusar dos seus poderes enquanto chefe do Departamento e a obter um benefício ilegítimo, havendo a Arguida confessado em juízo que de facto ordenou que fossem iniciados os procedimentos atinentes a esse exame, e que elaborou o relatório médico final, mas negando que tivesse agido dolosamente.
4.a A Arguida confiou que estava a agir licitamente porquanto no ano de 2007 tinha sido autorizada pelo então Diretor do CHCSJ para que, em casos urgentes, pudessem ser efectuadas análises a tecidos de animais em casos de particulares, como aliás acontecera com o animal de estimação de uma das testemunhas ouvidas em audiência.
5.a Resultou provado que não houve por parte da Arguida qualquer tentativa de ocultar a natureza do referido exame, nem perante os seus colegas, nem perante os seus superiores hierárquicos, e ainda que o CHCSJ não tinha qualquer regulamento a proibir esse tipo de conduta por parte dos médicos, e que nem tampouco puniu disciplinarmente a Arguida.
6.a O douto Tribunal recorrido considerou que a Arguida agiu dolosamente e praticou o crime pelo qual vinha acusada, decidindo ademais pela aplicação pela pena de prisão ao invés da pena de multa, também aplicável ao crime em causa.
7.a A Recorrente não se pode conformar com o decidido, tanto na conclusão efectuada pelo douto Tribunal a quo, no sentido de que ela actuou dolosamente, nem muito menos com a escolha da pena, apontando à douta decisão recorrida, o erro notório na apreciação da prova e a violação de lei.
8.a O crime de abuso de poder é um crime doloso, não só fruto da regra geral prevista no art.° 12.° do CP, como também por o crime em causa exigir uma imputabilidade subjectiva específica, no sentido de se exigir que o agente tenha a intenção específica de abusar dos seus poderes para fins ilegítimos.
9.a Afigurando-se que se produziram nos autos provas suficientes de que a Arguida agiu sem essa intenção de abusar do seu poder enquanto funcionária do Hospital, ao ter agido na plena convicção de que estava autorizada a proceder ao exame patológico em causa.
10.a É certo que que na sua contestação a Arguida requereu, por ofício, que o CHCSJ juntasse aos autos comprovativo desse exame feito em 2007, e que a resposta foi no sentido de que não haviam registos de ter sido feito em 2007 um exame de patologia animal.
11.a Mas a verdade é que a ausência desse registo foi plenamente explicada em audiência, através da testemunha Dr. B, que explicou que a informatização do sistema do Serviço de Anatomia Patológica apenas ocorreu em 2009.
12.a Estando aí a explicação para ao facto de o CHCSJ não ter podido confirmar nos registos informáticos a existência desse exame ocorrido em 2007.
13.a Já a testemunha C, pessoa de cujo animal de estimação foram colhidas as amostras para o exame realizado no ano de 2007, confirmou em audiência tanto a autorização como o exame ocorrido nesse ano.
14.a Afigurando-se que com estes elementos o douto Tribunal a quo andou mal ao considerar como não provado que ocorreu de facto em 2007, nos Serviços de Anatomia Patológica do CHCSJ, um exame de patologia animal efectuado a pedido de um particular, e com devida autorização do Director do Hospital.
15.a Sendo que foi essa autorização que levou a Arguida a considerar-se habilitada para efectuar exames de tecidos animais em casos excepcionais a título de requisições particulares, havendo que se ter em conta que a requisição do exame em si não partiu da Arguida, mas sim do veterinário que acompanhou a doença do seu animal de estimação, limitando-se ela a escolher o local onde do exame, tal como resultou da prova produzida em audiência.
16.a Afigura-se que se impunha que resultasse provado na douta Sentença que (i) em 2007 foi de facto feito um exame animal a pedido de um particular, devidamente autorizado pelo então director do CHCSJ (ii) a Arguida agiu em 2013 na convicção de que exames a tecidos animais particulares podiam ser efectuados em casos urgentes e que (iii) ela agiu na plena convicção de que tinha autorização superior.
17.a Resultou também da audiência que não houve qualquer tipo de ocultação ou secretismo inerente ao exame patológico em causa, havendo sido tudo feito como se de qualquer outro exame patológico de tratasse que a Arguida nunca escondeu a natureza do exame nem da sua conduta, nem dos seus colegas nem dos seus superiores.
18.a Se a Arguida tivesse actuado dolosamente, sabendo bem que estava a abusar dos seus poderes e a agir ilicitamente, não teria procedido ao exame de forma tão clara, perceptível e óbvia.
19.a A Arguida trata-se de uma médica com um currículo de excelência, que em 1987 foi contratada para ajudar a fundar, estabelecer e gerir o Serviço de Anatomia Patológica do CHCSJ havendo recebido inúmeros louvores pelo excelente trabalho prestado durante décadas ao Hospital de Macau, e à sociedade no geral.
20.a E já depois do CHCSJ ter recebido uma denúncia anónima dando conta dos factos dos autos, ela manteve-se em funções, e não só não foi alvo de qualquer sanção disciplinar, como ainda recebeu louvores pelo seu serviço, tanto por parte do Director do Centro Hospitalar como por parte dos seus Directores Clínicos.
21.a Recebendo ainda, em Agosto de 2018, um Diploma de Louvor concedido pelo Exmo. Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura da RAEM.
22.a A Arguida recebeu também por parte do Director dos Serviços de Saúde um certificado de excelência pelos serviços prestados no ano de 2014, também já depois de haver conhecimento, por parte dos seus superiores no CHCSJ, dos factos por que veio a ser condenada nestes autos.
23.a Todos estes factos são demonstrativos de que a Arguida nestes autos se trata de uma pessoa digna, honesta, e com um historial imaculado tanto profissionalmente como na sua vida privada, merecendo que lhe seja concedido o benefício da dúvida no sentido de que actuou sem qualquer tipo de dolo, por força do princípio do in dúbio pro reo.
24.a Para acreditar que a Arguida agiu dolosamente, abusando das duas funções conscientemente, é preciso admitir que ela, após tantos anos de serviço, sem uma única sanção disciplinar, sem um único crime ou infracção disciplinar praticada, decidiu, à porta da sua reforma, começar a agir ilícita e conscientemente contra os deveres que lhe competiam.
25.a Da prova produzida nos autos resultou ainda que a conduta da Arguida não violou quaisquer regulamentos internos do CHCSJ e ademais que inclusivamente os procedimentos para realização de exames patológicos a tecidos animais foram actualizados e reformulados.
26.a Ao contrário daquilo que se afirma na Sentença recorrida, não foi o facto de a Arguida ter deixado o seu cargo que levou à ausência de punição disciplinar, uma vez que ela ainda trabalhou durante mais 3 anos no mesmo Serviço do CHCSJ após os factos.
27.a Ela não foi punida disciplinarmente somente porque a Direcção do Hospital não achou que estivessem preenchidos os pressupostos da punição disciplinar.
28.a Havendo sido também apurado em audiência que existia de facto uma lacuna nos procedimentos a observar nos exames feitos a tecidos animais, tanto que em 2018 foram feitas uma série de recomendações para actualizar esses procedimentos.
29.a Não podemos olvidar as circunstâncias do caso concreto sub judice, tratando-se de uma médica que procedeu a um exame patológico que foi devidamente ordenado por um veterinário competente na área, de um animal de estimação que corria o sério risco de ter cancro e que precisava de ser diagnosticado o mais rapidamente possível.
30.a E que estamos perante um caso em que a Arguida agiu na convicção de que, em casos extremos e urgentes, estava habilitada a fazer exames patológicos de animais, fruto da autorização prévia do seu superior hierárquico.
31.a Sendo que ademais havia claramente uma lacuna nos procedimentos, uma área cinzenta na qual o que era lícito e ilícito a nível de procedimentos urgia de ser clarificado, algo que veio a suceder em 2018.
32.a O Tribunal pode, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que surjam como evidentes ou razoáveis tornando-as como factos provados, pois nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova.
33.a Contudo essas presunções não devem permitir “lacunas” para a formação da conclusão, não podendo por isso colidir com o princípio in dubio pro reo, e é nessa medida que se insiste que o Tribunal desconsiderou as circunstâncias favoráveis à Recorrente em que os factos ocorreram.
34.a Não se aceitando como se pode adoptar tal conclusão mais gravosa do ponto de vista do direito de defesa da Arguida, quando nenhuma justificação é dada para assim se concluir, e persistindo a dúvida deve actuar-se em sentido favorável e não contra a Arguida, premiando o princípio in dubio pro reo.
35.a Sendo que o recurso a dados da experiência comum para se retirar conclusões sobre determinados factos provados, que se mostram duvidosos, presuntivas e falíveis, constituem uma violação do princípio in dubio pro reo, pois em parte nenhuma da prova produzida se demonstrou que a arguida, ora Recorrente, tivesse praticado um verdadeiro crime doloso.
36.a Mas ainda que se entenda que a Arguida agiu com dolo, desconsiderando-se a defesa da Arguida, hipótese que se abre por mera cautela de patrocínio, sempre se diga que mal andou na escolha da pena de prisão, ao invés da pena de multa, que se impunha in casu, fruto do disposto no art.° 64.° do Código Penal.
37.a O crime de abuso de poder é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, devendo o Tribunal dar preferência à pena de multa salvo quando necessidades de prevenção geral ou especial obstem a essa escolha.
38.a O douto Tribunal a quo não conseguiu fundamentar que finalidades de prevenção são essas que fizeram merecer, in casu, a escolha pela pena de prisão.
39.a Tendo em conta que (i) se trata de arguida primária, (ii) com um passado pessoal e profissional de excelência, (iii) que já se encontra aposentada, (iv) que já se passaram praticamente 6 anos desde a data dos factos, só a pena de multa poderia ter sido aplicada in casu.
40.a Quanto à prevenção geral, todos os factos já acima descritos são demonstrativos de que a conduta da Arguida nunca seria tão reprovada pela comunidade ao ponto de se exigir a aplicação da pena de prisão.
41.a Também o tempo que mediou entre a prática dos factos e a sentença também é, naturalmente, algo que devia ter sido levado em conta a favor da aplicação da pena de multa.
42.a Relativamente à prevenção especial, é preciso tomar em conta o passado imaculado da Arguida e ademais que se trata de uma médica já aposentada, não havendo, naturalmente, tão exigentes necessidades reintegrativas que impunham a aplicação da pena de prisão.
43.a Sendo também manifesto que o facto de a Arguida não ter confessado os factos, nunca em caso algum, podia ter sido usado (como foi na douta Sentença recorrida) como fundamento para a escolha pela pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução.
44.a Por tudo o acima exposto, afigura-se que incorreu a douta Sentença recorrida em erro notório na apreciação da prova, e ainda em violação do art.° 347.° do Código Penal.
45.a Ainda que assim não se entenda, deve sempre ser considerado que a douta decisão recorrida violou o art.° 64.° do Código Penal, na escolha da pena aplicada”; (cfr., fls. 390 a 418).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 421 a 424-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.391 a 418 dos autos, o recorrente solicitou a revogação do Acórdão em escrutínio (cfr. fls.374 a 381 dos autos), assacando-lhe um notório na apreciação de prova, a ofensa do pricípio in dubio pro reo e a violação das disposições nos arts.347º e 64º do Cód. Penal de Macau.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.421 a 424 verso dos autos).
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é consolidada no actual ordenamento jurídico de Macau a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, arestos do TUI nos Processos n.º17/2000, n.º16/2003, n.º46/2008, n.º22/2009, n.º52/2010, n.º29/2013 e n.º4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
De outro lado, não se pode olvidar que o recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador (cfr. aresto do TUI no Processo n.º13/2001). Pois, dado que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e a maneira de avaliação do Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento deste vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal. (cfr. Acórdão no Processo n.º470/2010)
No caso sub judice, parece-nos a perspicaz a observação da ilustre colega que apontou: “Sobre argumento esse, a testemunha D confirmou junto do Tribunal que o CHCSJ não tinha qualquer registo oficial (tanto documental como informático) sobre a referida autorização dada no ano de 2007. Para além disso, disse também a testemunha que o CHCSJ (incluindo o Serviço de Anatomia Patológica) apenas servia pessoas (sublinhado nosso) e só em casos excepcionais é que se proceder análise dos tecidos de animais, mas tinha que ser pedida através de ofício e sob a autorização da direcção do CHCSJ. Para o efeito, ele consultou já os registos do CHCSJ e confirmou que, até ao momento de audiência de julgamento, apenas existiam dois pedidos de análise de tecidos de animais junto do CHCSJ, um apresentado pelo então Instituto de Assuntos Cívicos de Macau e outro apresentado pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau. Ora, como é que a arguida podia dizer que agiu na plena convicção de que tinha autorização superior para a sua conduta e na convicção de que exames a tecidos animais particulares podiam ser feitos em casos urgentes?”
Advertiu ainda que “Relativamente ao argumento invocado pela arguida de que o CHCSJ não tinha qualquer regulamento a proibir esse tipo de conduta por parte dos médicos, a testemunha D disse claramente que existiam Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e regulamento interno do CHCSJ, a arguida, enquanto chefe funcional do Serviço de Anatomia Patológica, devia saber que o CHCSJ apenas servia pessoas e todas as análises dirigidas ao Serviço de Anatomia Patológica eram feitas sob “requisições de análises” passadas pelos médicos do CHCSJ,no entanto, a análise do tecido de tumor da cadela da arguida não foi requisitada por qualquer médico do CHCSJ.”
Tudo isto leva-nos a concluir tranquilamente que não se verifica o assacado erro notório na apreciação de prova, e os argumentos da recorrente a pretexto de erro notório na apreciação de prova colide com o princípio de livre apreciação de prova previsto no art.114° do CPP.
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O descabimento do argumento do erro notório na apreciação de prova, só por si, conduz ao incurável descabimento da invocação da violação do princípio in dubio pro reo. Para além disso, convém ter presente que este princípio «só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como "um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva." Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.» (vide. Acórdãos do TSI nos Processos n.°592/2017 e n.°1146/2017)
Adverte ainda tal brilhante jurisprudência: Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador — e não no do recorrente — alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser "razoável" e "insanável".
Na mesma linha de raciocínio, temos por indiscutível que a douta sentença do MMº Juiz a quo não contende com o princípio in dubio pro reo, pois, ele não mostrou mínima dúvida ou hesitação quanto aos factos provados que constituem o pressuposto da decisão, e manifestou firme e esclarecida convicção sobre a força probatória das provas produzidas.
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Salvo devido e elevado respeito pela opinião difere, inclinamos a colher que os factos dados como provados pelo MMº Juiz a quo tornam incontestável que o recorrente incorreu, na autoria material e forma consumada, um crime de abuso de poder p.p. pelo art.347º do CPM.
A atenciosa leitura da douta sentença in quaestio impulsiona-nos a concluir que ao graduar a pena aplicada ao recorrente, o MMº Juiz a quo observou às disposições nos arts.40º e 65º do CPM e ponderou todas as circunstâncias relevantes para a determinação da pena, sobretudo o facto de que a recorrente nunca mostrou sinceros remorsos.
Sabe-se que no ordenamento jurídico de Macau, é adquirida a douta jurisprudência que tem asseverando que nos arts.64º e 65º do CPM, o legislador acolhe a teoria da margem de liberdade (a título exemplificativo, vide. Acórdãos do TSI nos Processos n.°293/2004, n.°50/2005 e n.°51/2006). E entendemos ser prudente o veredicto que afirma “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial recorrida.” (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.°817/2016)
Nesta linha de perspectiva, à luz das sensatas jurisprudências supra citadas, entendemos que o Acórdão recorrido não infringe as disposições nos arts.40° e 65° do CPM, e a pena de nove meses de prisão com a suspensão da execução por período de um ano se mostra justa e equilibrada, por isso é incuravelmente inviável o pedido de redução desta pena.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 433 a 435).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida, a fls. 375-v a 376-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem a arguida recorrer da sentença que a condenou como autora material da prática de 1 crime de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano.

Em síntese que se nos afigura adequada, é de opinião que a decisão recorrida padece de “erro notório na apreciação da prova” e “violação do princípio in dubio pro reo”, pedindo, subsidiariamente, a substituição da pena de prisão por uma pena de multa.

Sem demoras, vejamos se tem razão.

–– Comecemos, como se apresenta lógico, pelo alegado vício de “erro notório”.

Como (repetidamente) temos afirmado, o vício de “Erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018, de 07.03.2019, Proc. n.° 93/2019 e de 19.09.2019, Proc. n.° 730/2019).

Com efeito, e como igualmente já teve este T.S.I. oportunidade de considerar, “erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019, de 06.06.2019, Proc. n.° 476/2019 e de 10.10.2019, Proc. n.° 822/2019).

Aqui chegados, e, sendo de se manter o que se expôs sobre o “vício” pela recorrente imputado à decisão recorrida, vejamos.

Pois bem, colhe-se da factualidade dada como “provada” – e que, nesta parte, não vem questionada – que, em 24.06.2013, a arguida, na qualidade de Chefe dos Serviços de Anatomia Patológica do C.H.C.S.J., levou uma amostra de tecido da sua cadela ao seu local de trabalho, e pediu aos seus colegas para efectuar uma análise à referida amostra, o que sucedeu.

E, na óptica da arguida, ora recorrente, incorreu o Tribunal recorrido no dito vício de “erro notório na apreciação da prova” dado que deu como “provado” que “agiu dolosamente”, que “bem sabia que o Serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar Conde de S. Januário onde ela trabalhava como chefe, só prestava o serviço de análise face às requisições feitas no sistema de saúde do Hospital e aos pedidos feitos pelas entidades governamentais, mas mesmo assim, a arguida, abusando dos poderes inerentes às suas funções, realizou os procedimentos de análise da amostra de tecidos da sua cadela de estimação, com intenção de obter para si beneficio ilegítimo”, e por ter dado como “não provado” que a mesma “agiu confiando que o estava a fazer licitamente, na plena convicção que estava autorizada a agir como agiu”.

Para tal, (e como já o tinha feito em sede da sua contestação), alega – essencialmente – que:

“(…)
11. Sendo certo que, na maioria das vezes, tais exames de patologia animal eram requisitados por outras entidades públicas, o Serviço de Anatomia Patológica do CHCSJ já tinha sido usado por virtude de pedidos de particulares para exames a tecidos de animais.
12. Em 1996 foi feito um teste a um tecido animal, que se suspeitava ser cancro, a requerimento de uma clínica de veterania privada, o “Macao Veterinary Centre”, no qual a Arguida fôra a patologia responsável. (Doc. 8).
13. Em 2007 foi também feito um exame de tecido de uma mama de um cão para confirmar a presença e diagnóstico de um tumor.
14. E, nessa altura, o então Diretor do CHCSJ, Dr. E, deu autorização para que fosse feita patologia animal em casos particulares extraordinários, ficando tal sujeito à aceitação da Chefe do Serviço, que era precisamente a Arguida.
(…)”; (cfr., fls. 330).

Porém, como se pode ver da decisão objecto do presente recurso, tal matéria resultou, (igualmente), “não provada”, não tendo o Tribunal a quo deixado de explicitar na sentença recorrida os motivos do assim decidido, sendo também que na resposta ao inconformismo da recorrente e pugnando pela confirmação da sentença recorrida assim considerou o Ministério Público:

“Vamos ver se, face ao caso, a arguida agiu dolosamente ou não.
Prevê o artigo 347.° do CPM que:
“Artigo 347.° (Abuso de poder)
O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.“
Neste caso, provou-se que, após consulta em “XXXX Veterinary Clinic”, ter sido encontrado pelo veterinário dessa clínica Sr. F um tumor na cadela da arguida e o veterinário sugeriu à arguida para enviar a amostra de tecidos tumorais para Hong Kong a fim de fazer exame laboratorial com o pagamento de despesas cerca de MOP$1.500,00, a arguida recusou essa sugestão e exigiu que lhe fosse entregue a amostra, para ela própria acompanhar a realização da análise.
Nestes termos, é de salientar que conforme o depoimento prestado pelo veterinário F, por não haver na Região Administrativa Especial de Macau instituição dedicada ao exame laboratorial de tecido de animais, era preciso enviar o mesmo para Hong Kong com o pagamento de despesas e o respectivo relatório do exame ia sair cerca de uma semana, e a cadela da arguida não tinha, na altura, perigo de vida. Face a factos esses, porque é que a arguida insiste em levar a amostra de tecidos tumorais da sua cadela para fazer a análise no Serviço de Anatomia Patológica do CHCSJ em que ela trabalhava? Mais ainda, conforme os relatórios feitos pela arguida constantes de fls. 250 e 251 dos presentes autos, constava, em ambos os relatórios, “Request Doctor” do nome do veterinário que era o Sr. F, facto é que o veterinário nunca fez requerimento nesse sentido e a testemunha D, enquanto adjunto da direcção clínica do CHCSJ, confirmou junto do Tribunal que o Sr. F nunca foi médico do CHCSJ.
Por outro lado, vem a arguida dizer que confiou que estava a agir licitamente porquanto no ano de 2007 tinha sido autorizada pelo então Director do CHCSJ, Dr. E, para que em casos urgentes pudessem ser efectuadas análises a tecidos de animais em casos de particulares (i.e., não requisitados por entidades públicas). Como aliás acontecera com o animal de estimação da testemunha C, que confirmou isso mesmo em audiência.
Sobre argumento esse, a testemunha D confirmou junto do Tribunal que o CHCSJ não tinha qualquer registo oficial (tanto documental como informático) sobre a referida autorização dada no ano de 2007. Para além disso, disse também a testemunha que o CHCSJ (incluindo o Serviço de Anatomia Patológica) apenas servia pessoas (sublinhado nosso) e só em casos excepcionais é que se proceder análise dos tecidos de animais, mas tinha que ser pedida através de ofício e sob a autorização da direcção do CHCSJ. Para o efeito, ele consultou já os registos do CHCSJ e confirmou que, até ao momento de audiência de julgamento, apenas existiam dois pedidos de análise de tecidos de animais junto do CHCSJ, um apresentado pelo então Instituto de Assuntos Cívicos de Macau e outro apresentado pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau. Ora, como é que a arguida podia dizer que agiu na plena convicção de que tinha autorização superior para a sua conduta e na convicção de que exames a tecidos animais particulares podiam ser feitos em casos urgentes?
Mais ainda, invoca a arguida que não houve por parte da arguida qualquer tentativa de ocultar o referido exame, nem perante os seus colegas, nem perante os seus superiores hierárquicos e que o CHCSJ não tinha qualquer regulamento a proibir esse tipo de conduta por parte dos médicos, e que nem tampouco puniu disciplinarmente a arguida, após ter recebido uma carta anónima a dar conta da ocorrência.
Nestes termos, segundo o depoimento prestado pelas testemunhas que trabalhavam, na altura, no Serviço de Anatomia Patológica (incluindo G e B), ficamos a saber que o procedimento de trabalho do Serviço de Anatomia Patológica era o seguinte: após recebido o pedido de análise patológica, o chefe do Serviço de Anatomia Patológica cria, para esse pedido, um ficheiro de análise no sistema informático (AP), de uso próprio deste serviço. Posteriormente, o pessoal do Serviço (médico, técnico de diagnóstico e terapêutica e auxiliar) procede ao trabalho de análise segundo os procedimentos estabelecidos.
Ficamos saber ainda que, se não ter sido criado um ficheiro de análise da cadela da arguida no respectivo sistema informático (AP), o pessoal do Serviço de Anatomia Patológica não ia proceder ao trabalho de análise e como foi criado um ficheiro de análise sob a instrução da arguida, enquanto chefe funcional desse Serviço, com o número de A0001/2013 que não era normal (“A” aqui significa animais), mesmo que os técnicos de diagnóstico e terapêutica desse Serviço sabiam que o objecto sujeito a análise se tratava de tecido de tumor da cadela da arguida, eles apenas procediam aos trabalhos exigidos pelo sistema informático (AP) desse Serviço.
Relativamente ao argumento invocado pela arguida de que o CHCSJ não tinha qualquer regulamento a proibir esse tipo de conduta por parte dos médicos, a testemunha D disse claramente que existiam Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e regulamento interno do CHCSJ, a arguida, enquanto chefe funcional do Serviço de Anatomia Patológica, devia saber que o CHCSJ apenas servia pessoas e todas as análises dirigidas ao Serviço de Anatomia Patológica eram feitas sob “requisições de análises” passadas pelos médicos do CHCSJ, no entanto, a análise do tecido de tumor da cadela da arguida não foi requisitada por qualquer médico do CHCSJ.
E quanto ao argumento de a arguida não ter sido punida disciplinarmente pelo CHCSJ, conforme o que consta do oficio dos Serviços de Saúde a fls. 219 dos autos, apenas foi por razão de prescrição, não foi instaurado processo disciplinar contra a mesma.
Pelo exposto, consideramos que a arguida praticou dolosamente o crime ora acusado.
(…)”; (cfr., fls. 421-v a 423).

Quid iuris?

Ora, é sabido que quanto à “atitude interior do arguido”, o Tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum.

Com efeito, os factos psicológicos que traduzem o “elemento subjectivo da infracção” – e é isto que está agora em causa – são, em regra, objecto de prova indirecta, ou seja, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 21.03.2019, Proc. n.° 69/2019, de 28.03.2019, Proc. n.° 198/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 1018/2018).

Nesta conformidade, atento o sentido e alcance do vício de “erro notório”, poder-se-á dizer que nele incorreu o Tribunal a quo quando deu como provada a atrás referida matéria?

Cremos que negativa é a nossa resposta, sendo antes de sufragar o pelo Ministério Público considerado em sede de Resposta e Parecer a que já se fez referência.

Com efeito, e antes de mais, há que ter presente que o Tribunal a quo não violou nenhuma “regra sobre as provas de valor legal” ou “regras de experiência” – que nem a recorrente identifica – decidindo contra as mesmas, nem tão pouco se nos mostra de considerar que se afastou das “legis artis”.

Por sua vez, nos termos da fundamentação exposta na sentença recorrida, o decidido apresenta-se-nos em sintonia com o sentido indicado por diversos meios de prova existentes nos autos e produzidos em audiência de julgamento, (e identificados na decisão recorrida), em relação aos quais, teve a recorrente o mais amplo direito de contraditar.

Não se ignora que na opinião da recorrente, foram produzidos depoimentos noutro sentido, e que são coincidentes com a posição pela mesma assumida na sua contestação.

Todavia, importa ter presente que a “prova testemunhal” é objecto de “livre apreciação do Tribunal”, (cfr., art. 114° do C.P.P.M.), à mesma não estando vinculado nem nada obrigando-o a decidir no mesmo sentido, sendo de salientar que a “convicção do Tribunal” forma-se em resultado não da análise de 1, 2 ou mais elementos probatórios, mas, antes, em resultado da análise, global e cruzada, de toda a prova produzida, cabendo, também, notar, (como atrás se referiu), que “o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados”, pois que “nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade”.

Dest’arte, constatando-se que a decisão em questão tem (efectivo) suporte na prova existente e produzida, e – repetindo o que atrás já se referiu – “sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente”, impõe-se decidir no sentido da improcedência do recurso na parte em questão.

–– Quanto à alegada violação do “princípio in dubio pro reo”, vejamos.

Temos considerado que o “mesmo se identifica com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 13.07.2017, Proc. n.° 592/2017, de 11.01.2018, Proc. n.° 1146/2017 e de 14.03.2019, Proc. n.° 127/2019).

Segundo o princípio “in dubio pro reo”, «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).

Como o afirma Cristina Libano Monteiro (in “In Dubio Pro Reo”), o princípio em questão “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do jugador”.

Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito – tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo – quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.

Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).

Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.04.2003, Proc. n.° 3566/03, in “www.dgsi.pt”).

Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.05.2005, Proc. n.° 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”; (sobre o alcance do princípio em questão pode-se ainda ver o Ac. da Rel. de Évora de 08.03.2018, Proc. n.° 1360/14).

Da mesma forma, e como recentemente decidiu o Tribunal da Rel. de Coimbra no seu Acórdão de 12.09.2018:

“O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados”; (cfr., o Ac. Proc. n.° 28/16, in “www.dgsi.pt”).

No caso, percorrendo toda a decisão recorrida, não se divisa nenhum segmento, trecho ou afirmação com base no qual se possa admitir (sequer) que o Tribunal a quo teve dúvidas – ou hesitações – quanto à culpabilidade da ora recorrente, e que, mesmo assim, decidiu em seu prejuízo, (mostrando-se, antes, de retirar conclusão inversa).

E, assim, ociosas são mais alongadas considerações para se constatar que atingido não foi o invocado princípio.

–– Por fim, quanto à “pena”.

Como se viu, ao crime cometido cabe a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa; (cfr., art. 347° do C.P.M.).

Insurgindo-se contra a pena de prisão, (ainda que suspensa na sua execução), que lhe foi aplicada, diz a recorrente que é a mesma excessiva, pugnando pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade, ou seja, por uma pena de multa.

Cremos que tem razão.

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Por sua vez, prescreve o art. 64° do mesmo código que:

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

No caso, colhe-se de factualidade provada que a ora recorrente também agiu movida por instintos de estima à sua cadela, tentando assegurar a sua saúde e bem estar, não se mostrando intenso, ou elevado, o seu dolo assim como o grau da ilicitude da sua conduta.

Outrossim, há que atentar que a recorrente, (nascida em 1958), é primo-delinquente, relevante se mostrando também o período de tempo entretanto decorrido desde a data dos factos, (mais de 6 anos).

Nesta conformidade, ponderando no prescrito nos transcritos art°s 40° e 64° do C.P.M., mais adequada se mostra uma pena não privativa da liberdade.

Atento o estatuído no art. 45°, n.° 1 do C.P.M., e em causa estando assim um pena de multa de 10 a 360 dias, justo e equilibrado se nos afigura a pena de multa de 120 dias, à taxa diária de MOP$150,00, perfazendo a multa global de MOP$18.000,00, ou 90 dias de prisão subsidiária, nestes termos, e nesta parte, se concedendo provimento ao recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, indo a arguida condenada na pena de multa de 120 dias, à taxa diária de MOP$150,00, perfazendo a multa global de MOP$18.000,00, ou 90 dias de prisão subsidiária.

Pelo seu decaimento, pagará a arguida a taxa de justiça de 6 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 24 de Outubro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 815/2019 Pág. 38

Proc. 815/2019 Pág. 37