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Processo nº 861/2019 Data: 10.10.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Crime de “produção e tráfico de menor gravidade”.
Qualificação jurídica.
Quantidade(s) de estupefaciente.



SUMÁRIO

  Se provado estiver que o arguido adquiriu estupefaciente para o seu consumo no valor de MOP$30.000,00, que consumiu e que 2 dias depois da dita aquisição foi encontrado na posse de 6,27g de “Ketamina” e de 1,32g de “MDMA”, inviável é a qualificação de tal conduta como a prática de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade” do art. 11° da Lei n.° 17/2009.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 861/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor da prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 e 14°, n.° 2 e 3 da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 6 anos de prisão; (cfr., fls. 198 a 203 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Entende que o Acórdão recorrido padece do vício de “errada aplicação de direito”, pugnando pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 e 14°, n.° 2 e 3 da dita Lei, pedindo, subsidiariamente, a aplicação de uma pena de 5 anos de prisão; (cfr., fls. 217 a 229).

*

Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 233 a 236).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“A recorre do acórdão condenatório de 13 de Junho de 2019, do 2.° juízo criminal, que o condenou na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 14.°, n.°s 2 e 3, e 8.°, n.° 1, da Lei 17/2009 .
Na motivação e respectivas conclusões imputa àquele acórdão erro na aplicação do direito, concretamente na subsunção dos factos no tipo legal, e, subsidiariam ente, insurge-se contra o excesso da medida da pena.
Na sua minuta de resposta, o Ministério Público na primeira instância pronuncia-se pela improcedência do recurso, rebatendo os argumentos avançados pelo recorrente.
Vejamos o primeiro fundamento do recurso.
Diz o recorrente que o acórdão padece de erro, porquanto operou a condenação ao abrigo do artigo 8.°, n.° 1, por remissão do artigo 14.°, quando o devia ter feito recorrendo ao artigo 11.°, igualmente por remissão do artigo 14.°, todos da Lei 17/2009.
Creio que alguma razão lhe assiste.
As alterações introduzidas pela Lei 10/2016 vieram agravar severamente a punição da detenção de droga para consumo pessoal, quando se trate de produto que conste do mapa da quantidade de referência de uso diário e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade prevista no mapa. O artigo 14.°, n." 2, da Lei 17/2009, diz que, nesta hipótese, se aplicam, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.°, 8.° ou 11.°.
No caso vertente, o acórdão, após constatar que a quantidade de droga detida pelo recorrente, posto que para consumo pessoal, excedia cinco vezes a quantidade prevista no mapa, avançou, sem outros considerandos ou apreciações, para a punição nos moldes do artigo 8.°, n.° 1, da referida Lei.
Parece-nos, contudo, que a circunstância da constatação do excesso da quantidade de referência para cinco dias não exclui – não pode excluir, sob pena de manifesta incongruência entre as normas dos artigos 14.°, n.° 2, e 11.° da Lei 17/2009 – a possibilidade de a detenção para consumo ser punida nos moldes do artigo 11.°. Ponto é que a ilicitude se mostre diminuída por outra, ou outras, das formas aí previstas, ou seja, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção. Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal de Última Instância, de 21/11/2018 e 16/01/2019, proferidos nos processos 74/2018 e 112/2018, respectivamente.
Pois bem, perscrutando a matéria de facto dada como provada, afigura-se que, a partir dela, pura e simplesmente não se consegue apurar se a ilicitude se mostrava ou não diminuída pelas formas supra-referidas. E crê-se que, a partir das aludidas alterações à Lei 17/2009 e ao novo figurino punitivo da detenção para consumo, impõe-se ao tribunal que indague acerca da possível diminuição da ilicitude, justificativa da punição da conduta através da moldura prevista no tipo de ilícito do artigo 11.°, e faça consignar o que nesse campo haja ou não apurado. É que a detenção de droga para consumo próprio só será punível nos termos dos artigos 7.° ou 8.° se estiver excluída a hipótese de punição pelo artigo 11.°. É esta a leitura que fazemos do artigo 14.°, n.° 2, e da remissão, consoante os casos, para as disposições dos artigos 7.°, 8.° ou 11.°.
Ora, salvo melhor juízo, essa indagação não foi feita, o que torna a matéria apurada insuficiente para dilucidar a questão. Posto isto, e não obstante a roupagem com que o recorrente aborda a questão, situando-a essencialmente no erro de direito na subsunção dos factos, crê-se que o que verdadeiramente está em causa é a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na parte relativa às circunstâncias da detenção de droga pelo recorrente.
Ocorre, assim, o vício previsto no artigo 400.°, n.° 2, alínea a), do Código de Processo Penal, o que justifica o reenvio do processo, nos termos do artigo 418.° do Código de Processo Penal, para novo julgamento da matéria de facto relativa às circunstâncias susceptíveis de acarretarem uma diminuição considerável da ilicitude da detenção dos produtos para consumo próprio por parte do arguido e recorrente, com prejuízo do conhecimento da questão subsidiária.
Se porventura se entender que a fundamentação exarada no acórdão recorrido já possibilita os elementos necessários para se optar fundadamente pela punição baseada no artigo 11.°, atentas as referências à pressão a que o recorrente estava submetido, à sua dependência de grandes quantidades diárias de droga e às circunstâncias em que diz ter adquirido o produto, então crê-se que uma pena que ronde os dois anos de prisão – não suspensa na sua execução – adequar-se-á às exigências de prevenção a ter em conta e não extravasará a culpa do recorrente.
Também nesta hipótese ficará prejudicado o conhecimento da questão subsidiária.
Ante o exposto, e nos moldes assinalados, propendemos para a procedência do recurso”; (cfr., fls. 290 a 291-v).

*

Nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 199-v a 200-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor da prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 e 14°, n.° 2 e 3 da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 6 anos de prisão.

Considera que o mesmo padece de “errada aplicação de direito”, pugnando pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 e 14°, n.° 2 e 3 da dita Lei, pedindo, subsidiariamente, a aplicação de uma pena de 5 anos de prisão.

Vejamos.

Diz o recorrente que a sua conduta integra, tão só, a prática de um crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11° da Lei n.° 17/2009.

Vejamos.

Nos termos do art. 8° da dita Lei n.° 17/2009:

“1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 6 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 1 a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 2 a 8 anos, no caso do n.º 2”.

Por sua vez, estatui o seu art. 11° que:

“1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante”.

E, preceitua também o art. 14° da mesma Lei que:

“1. Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de 3 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias, salvo o disposto no número seguinte.
2. Caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente referido no número anterior cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º
3. Para determinar se a quantidade de plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém excede ou não cinco vezes a quantidade a que se refere o número anterior, são contabilizadas as plantas, substâncias ou preparados que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais”.

Ponderando no assim estatuído, atento ao que se tem entendido sobre esta matéria, (e sem prejuízo do que se entendeu no Ac. deste T.S.I. de 20.06.2019, Proc. n.° 499/2019), cremos, porém, que não se pode reconhecer razão ao arguido ora recorrente.

Passa-se a tentar especificar este nosso ponto de vista, socorrendo-nos do já exposto no douto Acórdão do Vdo T.U.I. de 21.11.2018, Proc. n.° 74/2018, onde, sobre a mesma questão, se considerou, nomeadamente, que “Ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, na redacção dada pela Lei n.º 10/2016, se a quantidade das plantas, substancias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém para consumo pessoal exceder cinco vezes a quantidade do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à mesma Lei, são aplicáveis as disposições dos art.ºs 7.º, 8.º ou 11.º, consoante os casos.
E nos termos da nova redacção do n.º 3 do mesmo art.º 14.º, para determinar se a quantidade de plantas, substancias ou preparados, excede ou não cinco vezes a quantidade indicada no referido mapa, a lei manda contabilizar toda a quantidade das plantas, substancias ou preparados, independentemente se se destinem a consumo pessoal na sua totalidade ou se destinem uma parte para consumo pessoal e outra parte para outros fins ilegais.
A punição pelo crime de produção e tráfico de menor gravidade depende da consideração sobre se a ilicitude dos factos de produção ou tráfico da droga se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta as circunstâncias apuradas no caso concreto, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade da droga, devendo o tribunal atender especialmente a quantidade da droga.
O facto de a droga detida pelo agente exceder cinco vezes a quantidade indicada naquele mapa não implica necessariamente a sua condenação pelo crime de tráfico ilícito de estupefacientes p.p. pelo art.º 8.º, não sendo de afastar necessariamente a punição pelo crime de produção e tráfico de menor gravidade p.p. pelo art.º 11.º, ambos da Lei n.º 17/2009. Tudo depende da consideração sobre se a ilicitude dos factos ilícitos se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta as circunstâncias apuradas no caso concreto”; (cfr., também, no mesmo sentido, o Ac. do Vdo T.U.I. de 16.01.2019, Proc. n.° 112/2018 e o de 25.09.2019, proc. n.° 88/2019).

No caso dos presentes autos, e na parte que agora releva, está provado que o arguido detinha “6,27g de Ketamina” e “1,32 g de MDMA” para o seu próprio consumo, (certo sendo também que os exames que lhe foram efectuados apresentarem resultado positivo quanto ao consumo de MDMA).

Nos termos da referida Lei n.° 17/2009, (com a redacção da Lei n.° 10/2016), a quantidade de referência de uso diário da Ketamina é de 0,6g, e, em relação ao MDMA, de 0,15g.

Verifica-se assim que o “estupefaciente” detido pelo arguido excede cinco vezes a quantidade de referência de uso diário que, no caso, é de 3g para a Ketamina e de 0,75g para o MDMA.

E, sendo esta a situação, quid iuris?

Como se deixou relatado, cremos que não se pode reconhecer razão ao arguido, ora recorrente.

Com efeito, no atrás citado Acórdão do Vdo T.U.I. de 25.09.2019, Proc. n.° 88/2019, entendeu-se que a posse para consumo de 4,53 gramas de Ketamina não pode ser qualificada como a prática de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade” do art. 11° da Lei n.° 17/2009, em causa devendo estar a pena aplicável pela prática de 1 crime de “tráfico” do art. 8°.

No caso dos autos, para além de a quantidade de Ketamina que o arguido possuía ser superior, há que ter presente que possuía também uma porção de outro estupefaciente, (1,32g de MDMA), provado estando também que já tinha consumido MDMA, e que o estupefaciente que consumiu e detinha foi adquirido por MOP$30.000,00, dois dias antes de ser detido.

Nesta conformidade, afigura-se-nos que se mostra de, nesta parte, negar provimento ao recurso do arguido ora recorrente, (não se acolhendo também o opinado no douto Parecer do Ministério Público), sendo assim de confirmar o decidido pelo T.J.B..

–– Quanto à questão do “excesso de pena”.

Ao crime de “tráfico” cabe a pena de 5 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, alterada pela Lei n.° 10/2016).

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Por sua vez, e atento o teor art. 65° do mesmo código, onde se fixam os “critérios para a determinação da pena”, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019, de 30.05.2019, Proc. n.° 453/2019 e a Decisão Sumária de 16.07.2019, Proc. n.° 667/2019).

Temos vindo a entender que com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014 e de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015).

E, nesta conformidade, atento em especial à moldura penal aplicável e às necessidades de prevenção criminal, há que dizer que censura não merece a pena decretada.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 10 de Outubro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 861/2019 Pág. 20

Proc. 861/2019 Pág. 19