Processo nº 822/2019 Data: 10.10.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”.
Absolvição.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
Se o Tribunal dá como “não provada” a matéria de facto que suporta a imputada a autoria da arguida pela prática de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, mas se de uma análise global e cruzada aos elementos dos autos se vier a concluir que o decidido colide com as “regras de experiência” e com a “normalidade das coisas” – e a fundamentação exposta na decisão for insuficiente para se alcançar as verdadeiras razões do decidido – adequado se apresentada considerar como verificado o vício de “erro notório na apreciação da prova”, decretando-se, consequentemente, o reenvio dos autos para novo julgamento.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 822/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença do T.J.B. de 24.05.2019 decidiu-se absolver A, arguida com os sinais dos autos, da imputada prática, como autora material, de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, p. e p. pelo art. 200°, n.° 2 do C.P.M.; (cfr., fls. 129 a 131 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com a decretada absolvição da arguida, o Ministério Público recorreu, imputando à sentença recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 149 a 153).
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Respondeu a arguida, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 167 a 182).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando também pela procedência do recurso e pelo reenvio dos autos para novo julgamento; (cfr., fls. 212 a 213).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 129-v a 130, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o Ministério Público recorrer da sentença pela Mma Juiz do T.J.B. proferida que absolveu a arguida da prática como autora material de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, p. e p. pelo art. 200°, n.° 2 do C.P.M..
E, como se referiu, entende que se incorreu no vício de “erro notório na apreciação da prova”.
Vejamos.
De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018 e de 07.03.2019, Proc. n.° 93/2019).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias, (in “Lições de Direito Processual Penal”, pág. 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal que é livre, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018, de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 476/2019).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
No caso dos presentes autos, e da reflexão que nos foi possível efectuar, cremos que se deve conceder provimento ao recurso, afigurando-se-nos de subscrever, na íntegra, as considerações pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público tecidas no seu douto Parecer e que vale a pena aqui transcrever:
“Está em causa a apropriação ilícita de MOP $2.000 (duas mil patacas), deixadas por esquecimento, na ranhura da máquina ATM 0034 do Banco Luso Internacional instalada no átrio do Edifício Nam Kuong da Av. Dr. Rodrigo Rodrigues, pela ofendida B, que, após ter desencadeado a operação de levantamento, se ausentou sem levar aquela quantia.
A sentença deu como provada esta operação efectuada pela ofendida, bem como o afastamento desta sem levar o dinheiro, e deu igualmente como provado que, na mesma ocasião, na máquina ATM 9479, instalada ao lado da máquina usada pela ofendida, estava a arguida a levantar dinheiro. Não considerou, todavia, provados os demais factos integrantes do crime, nomeadamente que a arguida se tenha apoderado da mencionada importância de MOP $2.000 (duas mil patacas).
Constata-se, porém, que, apesar de mencionar as provas produzidas e examinadas em audiência, a sentença alicerça o seu juízo valorativo apenas no silêncio da arguida e no destaque de que só parte da imagem do rosto da mulher envolvida no caso foi captada pelo vídeo visionado em juízo. Se outras provas foram efectivamente analisadas e ponderadas no julgamento da matéria de facto, isso não resulta minimamente da fundamentação, que, além de escassa, não patenteia qualquer resquício de análise crítica das provas.
Ora, como o Ministério Público salienta, há outras provas que, se tivessem sido devidamente consideradas e conjugadas, conduziriam a outro veredicto. É o caso da informação bancária sobre os registos das transacções operadas através da caixa ATM 9479, do Banco da China, com ausência de qualquer outra utilização da caixa, nos momentos que se seguiram à sua utilização pela arguida; é a proximidade das duas máquinas, documentada a fls. 9; é o conjunto global das imagens proporcionadas pela vídeo-gravação e os fotogramas extraídos e juntos a fls. 22 e seguintes, cuja legendagem e explicação aparentam uma coerência lógica não desprezível.
(…)”.
De facto, e como, com detalhe, salienta o Exmo. Magistrado do Ministério Público, existem uma série de elementos probatórios que permitem percepcionar todo um “circunstancialismo” que apreciado de forma global em conformidade com as regras de experiência e normalidade das coisas nos levam a não acolher a decisão do Tribunal quo na sua decisão de dar como “não provada” a “intervenção da arguida” nos termos em que estava acusada.
Na verdade, e para além do demais, não se pode pois olvidar que as imagens captadas e constantes nos autos assim como outros elementos dos mesmos demonstram que, no (preciso) momento da “apropriação” das MOP$2.000,00, apenas a arguida se encontrava no local e com disponibilidade física para a concretizar, sendo de notar também a semelhança da pessoa cuja parte do rosto foi captada no acto de apropriação com a arguida, (até o mesmo tipo de cabelo).
E, nesta conformidade, face também à “curta” fundamentação pelo Tribunal a quo exposta para justificação da sua convicção e decisão que, em nossa opinião, revela uma ponderação da prova existente e produzida com reduzida análise crítica e cruzada de todos os seus elementos probatórios disponíveis, cremos pois que adequada é a consideração de que se incorreu no assacado vício de “erro notório na apreciação da prova” que, porque por esta Instância insanável, impõe a decisão de reenvio dos autos para novo julgamento em relação a toda a matéria de facto dada como não provada.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, decretando-se o reenvio dos autos para novo julgamento nos exactos termos consignados.
Custas pela arguida recorrida com a taxa de justiça de 4 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 10 de Outubro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 822/2019 Pág. 16
Proc. 822/2019 Pág. 15