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Proc. nº 583/2019
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 24 de Outubro de 2019
Descritores:
- Princípio da cooperação
- Limites

SUMÁRIO:

1 - O princípio da cooperação é hoje em dia um princípio fundamental da dinâmica de qualquer relação jurídico-processual estruturada numa base “pro-actione” e propulsionada por preocupações de tutela jurisdicional efectiva.

2 - Nesse sentido, o tribunal deve providenciar pelo andamento regular e célere do processo, ordenando as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção (art. 6º, nº1, do CPC), contribuir para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art. 8º, nº1, do CPC), providenciar pela remoção do obstáculo na obtenção de algum documento ou informação que as partes, fundamentadamente, não consigam obter (art. 8º, nº4, do CPC), bem como requisitar informações, pareceres técnicos e outros quaisquer documentos necessários ao esclarecimento da verdade (art. 462º, nº1, do CPC).


Proc. nº 583/2019

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, cabeça de casal no processo principal de Inventário Obrigatório (Proc. nº CV1-17-0001-CIV) pendente no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, ali requereu o incidente de habilitação dos herdeiros do interessado B, falecido em 24/12/2017.
Notificada a requerente por duas vezes para apresentar documentos comprovativos do nascimento e filiação de todos os sucessores de B, não o fez.
Por essa razão, o juiz titular do processo indeferiu “liminarmente” o requerimento de habilitação de herdeiros.
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Contra esse despacho vem agora interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a cabeça de casal, A, formula as seguintes conclusões:
“1. Ao abrigo do despacho de 9 de Abril de 2019, o Tribunal a quo proferiu despacho de indeferimento liminar (adiante designado por “despacho recorrido”), uma vez que a recorrente não forneceu os documentos comprovativos de nascimento/identificação dos interessados nos autos.
2. Todavia, salvo o devido respeito, a recorrente não concordou com a decisão do Tribunal a quo, uma vez que o despacho recorrido violou o princípio da cooperação previsto nos art.ºs 6.º n.º 1 e 8.º n.ºs 1 e 4 do Código de Processo Civil, por consequência, violou o disposto nos art.ºs 397.º n.º 1 e 967.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
3. Nos termos do art.º 6.º n.º 1 do Código de Processo Civil, incumbe ao juiz, sem prejuízo do ónus da iniciativa das partes, providenciar pelo andamento regular e célere do processo, ordenando as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório.
4. Além disso, nos termos do art.º 8.º n.º 1 do Código de Processo Civil (princípio da cooperação), estão em causa, não só deveres de cooperação das partes para com o tribunal, mas também ao tribunal para com as partes e destas entre si. E os deveres de cooperação das partes para com o tribunal são estipulados no art.º 8.º n.º 4 do Código de Processo Civil.
5. De facto, mesmo que a recorrente não apresentasse ao Tribunal a quo os documentos comprovativos de nascimento dos interessados constantes dos autos em epígrafe nos termos do art.º 967.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a recorrente já explicou ao Tribunal a quo no requerimento de incidente de habilitação que “salvo H, a relação entre o cabeça-de-casal e os herdeiros de B não é boa e os mesmos não prestaram cooperação no prosseguimento do processo em epígrafe, pelo que solicita-se que mande C fornecer os dados de identificação de outros indivíduos e os meios de contacto mais recentes”, pelo que pediu ao Tribunal a quo que emita ofício à DSI da RAEM, à DFS e ao Fundo de Segurança Social para verificar os dados de identificação e meios de contacto dos sucessores titulares do BIRM.
6. Além de emitir ofício à DSI, o Tribunal a quo não tomou outras diligências solicitadas pela recorrente no requerimento, só exigiu à recorrente que apresente os certificados notariais de nascimento dos interessados ao Tribunal a quo. Por isso, a recorrente esclareceu novamente ao Tribunal a quo as dificuldades na obtenção de tais documentos e solicitou ao Tribunal a quo várias diligências para remover os obstáculos, designadamente, solicitou ao Tribunal a quo que emita ofício ao IPIM para obter o certificado notarial/certidão de nascimento de D, notifique C e mande C apresentar os documentos comprovativos de nascimento de outros interessados e emita ofício para mandar os interessados apresentar os seus documentos comprovativos de nascimento ao Tribunal a quo nos termos do art.º 455.º do Código de Processo Civil.
7. Todavia, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não tomou nenhuma diligência supracitada, apenas exigiu à recorrente, por despacho, que recorra aos meios notariais do Interior da China para obter tais documentos. No entanto, a recorrente recorreu ao auxílio do advogado do Interior da China mas falhou, explicou novamente ao Tribunal a quo que a recorrente “não tem outro meio para obter os documentos respectivos ou outros documentos pertinentes”, e solicitou novamente ao Tribunal a quo que tome as diligências supracitadas.
8. Tal como o acórdão do TSI no Processo n.º 1/2016 indicou que “se o autor tomou alguma medida mas ainda não conseguiu obter os dados de identificação do réu, e esclareceu ao Tribunal na petição inicial a respectiva situação, entretanto, pediu ao MM.º Juiz que tome uma série de medidas, no intuito de determinar a qualidade do réu no caso. Para concretizar os princípios da direcção do processo e da cooperação no direito de processo civil, o juiz deve auxiliar ao autor para remover os obstáculos, para prosseguir o processo de forma regular e célere, em vez de indeferir liminarmente a petição inicial”.
9. Além disso, o referido acórdão também citou a doutrina dos juristas de Portugal José Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre que “Ao juiz cabe, em geral, a direcção formal do processo, nos seus aspectos técnicos e de estrutura interna. Esta direcção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, só excepcionalmente cabendo às partes o ónus de impulso processual subsequente, ligado do princípio do dispositivo (…) Para assegurar o andamento do processo, em condições de regularidade (conformidade com a regra legal ou com a sua adequação pelo juiz) e de celeridade, o juiz deve, dentro dos limites da lei, promover todas as diligências que julgue necessárias e indeferir os requerimentos das partes que não correspondem a um interesse sério (sejam «impertinentes») ou visem fins meramente dilatórios.”.
10. Mesmo que a situação supracitada não seja exactamente igual ao nosso caso; aliás, junto ao processo documento que prove a morte de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância nos termos dos art.º 220.º 1 al. a) e art.º 221.º do Código de Processo Civil, e a suspensão cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida nos termos do art.º 226.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Civil.
11. Além disso, ao abrigo do despacho do Tribunal a quo constante de fls. 17 dos autos, o Tribunal a quo sabia bem que a falta de tais documentos prejudica o andamento regular e célere do presente processo de inventário e as diligências solicitadas pela recorrente não são irrelevantes ou não são actos com mero efeito de retardamento da marcha normal do processo.
12. A recorrente explicou por várias vezes ao Tribunal a quo as dificuldades na obtenção de documentos respectivos e recorreu ao auxílio de serviços jurídicos da China mas falhou, no entanto, o Tribunal a quo não tomou nenhuma diligência solicitada pela recorrente para auxiliar a recorrente na remoção de obstáculos, assim, o processo de inventário como processo principal só ficava suspenso e não pode prosseguir de forma regular e célere!
13. Nestes termos, o despacho recorrido violou, sem dúvida, o princípio da cooperação previsto nos art.ºs 6.º n.º 1, 8.º nºs 1 e 4 do Código de Processo Civil, entretanto, violou o disposto nos art.ºs 397.º n.º 1 e 967.º n.º 1 do Código de Processo Civil, devendo ser revogado.
Face ao exposto, solicita-se ao Juízo que julgue procedente o presente recurso e revogue o despacho recorrido por ter violado o disposto nos art.ºs 6.º n.º 1, 8.º n.ºs 1 e 4, 397.º n.º 1 e 967.º n.º 1 do Código de Processo Civil.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1- Face ao requerimento de habilitação de herdeiros, o TJB notificou a outro interessado, de nome C, com vista ao fornecimento dos elementos de identificação e os meios de contacto mais recentes dos sucessores de B, incluindo E, F, G, H e I (fls. 8 dos autos).
2- O mesmo Tribunal emitiu ofício à DSI de Macau para fornecer os endereços de contacto e os dados de E e de G (fls. 7 dos autos).
3- Na resposta, a DSI de Macau respondeu que só tem elementos de identificação de G, não do outro indivíduo. (fls. 9 dos autos).
4- O Tribunal concedeu novamente à requerente 20 dias para fornecimento de documentos respectivos através da autorização constante de fls. 17, a fim de a recorrente fornecer os documentos comprovativos de nascimento de outros interessados.
5- A requerente respondeu ao Tribunal dizendo que não conseguiu obter os certificados notariais/certidões de nascimento dos sucessores de B.
6- Face a isso, o juiz do processo proferiu o seguinte despacho:
“Como a requerente não apresentou documentos de nascimento/identificação dos interessados para a apresentação do requerimento de habilitações, indefere liminarmente o requerido/a.
Notifique e D.N.”
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III – O Direito
A única questão a dirimir consiste em saber se a 1ª instância podia indeferir o incidente de habilitação de herdeiros com fundamento na não apresentação pelo requerente/recorrente de documentos comprovativos da relação de descendência dos indivíduos identificados em relação ao interessado falecido, B.
O recorrente advoga que o despacho sindicado viola o princípio da cooperação contemplado nos arts. 6º, nº1 e 8º, nºs 1 e 4, do CPC.
Ora bem. Não se duvida que o princípio da cooperação é hoje em dia um princípio fundamental da dinâmica de qualquer relação jurídico-processual estruturada numa base “pro-actione” e propulsionada por preocupações de tutela jurisdicional efectiva. Nesse sentido, o tribunal deve providenciar pelo andamento regular e célere do processo, ordenando as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção (art. 6º, nº1, do CPC), contribuir para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art. 8º, nº1, do CPC), providenciar pela remoção do obstáculo na obtenção de algum documento ou informação que as partes, fundamentadamente, não consigam obter (art. 8º, nº4, do CPC), bem como requisitar informações, pareceres técnicos e outros quaisquer documentos necessários ao esclarecimento da verdade (art. 462º, nº1, do CPC).
Mas, o tribunal tem limites, obviamente. Não pode ultrapassar as fronteiras do seu poder jurisdicional, além do mais até porque não pode esquecer as regras que dominam o ónus da prova (art. 335º, nº1, do CC).
Ora, o tribunal cooperou com o requerente concedendo-lhe por duas vezes prazo para a apresentação dos documentos comprovativos da filiação dos indivíduos apontados como herdeiro do interessado falecido, Além disso, autorizou diligências de investigação (fls. 6), notificou o interessado C para que entregasse os elementos de identificação que possuísse e indicasse os meios de contacto dos restantes herdeiros, enviou ofício à DSI de Macau com vista ao fornecimento dos endereços de contacto de E e G.
Ou seja, foi cooperante. Todavia, a secretaria do tribunal não chegou a proceder como o próprio juiz tinha mandado fazer. Com efeito, o titular do processo tinha deferido o pedido de todas as diligências solicitadas nas alíneas 2) e 3) no requerimento de fls. 5 dos autos, mas a Secção apenas cumpriu a diligência pedida em 2) de colaboração pedida ao SIM (E mesma essa diligência não foi completamente ao encontro do interessado, porque este tinha pedida a indicação de morada e elementos de identificação e forma de contacto, mas só foi pedida a indicação de morada e meios de contacto (faltou a indicação dos meios de identificação). Faltou realizar a diligência pretendida em relação à DSF e ao Fundo de Segurança Social.
E a omissão relativamente às restantes diligências não chegou a ser suprida posteriormente.
Por outro lado, também a fls. 14 dos autos voltou a ser pedida a cooperação do tribunal relativamente àqueles elementos e ainda outros a obter directamente do IPIM. E o tribunal limitou-se a proferir o despacho de fls. 17 (traduzido a fls. 18 do apenso “traduções”).
Ou seja, o tribunal “ a quo” foi cooperante até certo ponto, mas depois, não obstante as dificuldades reveladas pelo interessado, cabeça de casal, em obter os elementos necessários ao desenvolvimento normal deste processo, deixou de prestar a sua colaboração com a parte processual. O que teve por efeito, naturalmente, o indeferimento do pedido de habilitação (cfr. fls. 21), deixando os interessados sem tutela jurídica.
Se tivesse ido até ao limite da sua capacidade cooperativa, talvez o resultado não fosse aquele. Impõe-se, por isso, dar provimento ao recurso a fim de que o processo seja retomado na 1ª instância e possa prosseguir com a realização das diligências supra citadas (e que devem dar sequência ao que foi pedido a fls. 5 e 14.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho impugnado, e determinando a baixa dos autos para ali prosseguirem com a realização das diligências requeridas a fls. 5 e 14.
Sem custas.
T.S.I., 24 de Outubro de 2019
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong


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