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Processo nº 786/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 31 de Outubro de 2019

ASSUNTO:
- Princípio dispositivo


SUMÁRIO:
- A lei prevê mecanismo próprio (cfr. nº 1 do artº 292º do CPC) para um terceiro defender a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada.
- O Tribunal a quo não pode, sem embargos deduzidos pelo alegado arrendatário, determinar oficiosamente a não prossecução da execução, sob pena de violar o princípio dispositivo, gerando a nulidade da decisão por excesso da pronúncia.


O Relator








Processo nº 786/2019
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 31 de Outubro de 2019
Recorrentes: A, B e C (Exequentes)
Objecto do Recurso : Despacho que indeferiu o pedido de entrega judicial de imóvel

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por despacho de 08/03/2019, julgou-se improcedente o pedido deduzido pelos Exequentes A, B e C.
Dessa decisão vêm recorrer os Exequentes, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. Tanto a posição de arrendatário como a de possuidor constituem posições jurídicas que, em abstracto, podem consubstanciar um de meio de defesa contra uma diligência judicialmente ordenada, por parte de um terceiro que julgue ser titular de um direito incompatível com aquela diligência.
2. Terceiro em relação á execução é todo aquele que não seja parte nela.
3. Perante um acto judicialmente ordenado que, no seu entender, ofenda um direito por si titulado, e que julgue ser incompatível com aquela diligência, o terceiro pode mobilizar meios de defesa. A sede dessa defesa é a dos embargos de terceiro.
4. Nos termos do art.º 1210.º do Código Civil, o possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo.
5. Segundo o art.º 292.º CPC, contra qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado deduzindo embargos de terceiro.
6. O meio de defesa ao dispor do terceiro como forma para reagir a uma diligência judicial ordenada é a dedução de embargos de terceiro, preventivos se a mesma ainda não tiver sido realizada, repressivos quando o tenha sido.
7. Os embargos de terceiro, por serem um incidente da instância previsto na parte geral do CPC, são aplicáveis à execução para entrega de coisa certa.
8. No conceito de direito incompatível para efeitos da figura dos embargos de terceiro cabe a posição de arrendatário do imóvel a apreender.
9. Constituindo um incidente processual de defesa, os embargos de terceiro são uma verdadeira acção dentro da acção, ficando, portanto, sujeitos a todos os princípios gerais de processo civil, e, entre eles, o princípio da instância.
10. Pelo princípio da instância, o tribunal não pode tutelar direitos, interesses e posições jurídicas sem que tal tutela lhe tenha sido rogada pelo titular desses direitos, interesses e posições jurídicas.
11. O processo de execução para entrega de coisa certa enquadra-se no âmbito dos processos de jurisdição contenciosa, e não nos de jurisdição voluntária. Naqueles, o juiz se encontra vinculado a critérios de direito estrito, nomeadamente no que concerne ao formalismo processual.
12. Sem a dedução de embargos de terceiro, o tribunal a quo nunca poderia ter considerado a existência do contrato de arrendamento como fundamento para a improcedência dos pedidos executivos dos RECORRENTES, nem para a revogação tácita do seu próprio despacho de fls. 33, o qual ordenou a apreensão judicial da fracção dos autos.
13. Existe, no domínio da execução para entrega de coisa certa, um terreno e um momento processuais nos quais cabe discussão acerca do direito do terceiro - é o dos embargos de terceiro, cujo impulso cabe somente ao terceiro que julgue ser um seu direito ofendido por uma diligência judicial incompatível com o direito que invoca.
14. Embargos esses que a ora terceira não deduziu.
15. De acordo com o entendimento do tribunal a quo, se o terceiro deduzir embargos de terceiro, arrisca ver o seu direito discutido e escrutinado, incumbindo-lhe o ónus da invocação e prova dos factos dele constitutivos, e oferecendo ao Exequente/Embargado a possibilidade de lhe opôr quaisquer excepções, e ainda de deduzir pedido reconvencional; porém, caso opte por não deduzi-los, verá o seu direito completamente blindado, defendido de qualquer discussão sobre a sua existência, validade, eficácia, etc., porque o tribunal lhe garante uma tutela que não pediu.
16. Gerando-se um verdadeiro paradoxo, no qual o terceiro que se mantém em silêncio goza de uma protecção infinitamente maior do que o terceiro que embarga.
17. A lei já confere um regime fortemente protector ao terceiro que se julgue possuidor ou detentor da coisa objecto da diligência judicial, e que entenda que o seu direito sairia afectado por uma diligência judicial que entenda ser incompatível com o direito que se arroga.
18. Notificada da execução, e da iminência da diligência judicial de apreensão, a terceira poderia ter usado do expediente do art.º 300.º CPC e deduzido embargos de terceiro preventivos, obtendo, assim, a suspensão da diligência, pelo menos, até que fosse proferida decisão na fase introdutória desses mesmos embargos.
19. Recebidos os embargos, ainda gozaria do facto de a suspensão se manter até decisão final dos embargos (art.º 297.º CPC).
20. Mesmo que rejeitados os embargos, tal não faria precludir o seu direito de vir a propor nova acção em que pedisse "a declaração da titularidade do direito que obsta à realização ou ao âmbito da diligência".
21. Mesmo que não tivesse deduzido embargos de terceiro preventivos, poderia sempre, posteriormente, deduzir embargos de terceiro repressivos, como forma de reagir a uma diligência judicial já realizada que entendesse afectar os direitos que julga ter sobre a fracção dos autos.
22. Deduzidos os embargos de terceiro, caberia à terceira D invocar e provar os factos constitutivos do seu direito, como também que os exequentes / embargados teriam também à sua disposição todo o acervo de meios de defesa, podendo, além de impugnar os factos alegados pela embargante, opor-lhe quaisquer excepções, e podendo, também, contra ela deduzir pedido reconvencional.
23. Ao nada fazer, a terceira viu-se numa posição muito mais vantajosa do que aquela em que estaria se tivesse deduzido embargos de terceiro - o que não tem qualquer lógica ou sentido.
24. A manutenção do despacho recorrido significaria conferir a uma terceira, apenas indiciariamente arrendatária, uma tutela absoluta, perfeitamente desequilibrada e desproporcional em relação a um exequente cujo direito resulta de um acto de transmissão da propriedade operado pelo próprio tribunal, e com presunção derivada do registo.
25. Por consequência, o despacho recorrido encontra ferido de nulidade, nos termos do art.º 571.º/1 d), por conhecer de uma questão que lhe era vedado conhecer, impondo-se a sua revogação.
26. Era à terceira que incumbia a alegação e prova da existência e vigência do contrato de arrendamento, em sede de embargos de terceiro, porquanto tal corresponderia à demonstração dos factos constitutivos do seu pretenso direito, logo, à causa de pedir nos embargos.
27. Porém, o tribunal a quo foi colher tais factos aos autos do processo de inventário, que o Mmo. Juiz a quo compulsou ex officio.
28. De acordo com o princípio do dispositivo, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo de poder, igualmente, considerar os factos notórios e aqueles que sejam do conhecimento do tribunal por virtude do exercício da sua função.
29. Os factos em apreço não foram alegados, nem pelos RECORRENTES, nem pelo Executado, excepto no apenso de oposição à execução por si deduzida, a qual foi julgada improcedente por não cumprir com os pressupostos dos ares 822.º e 697.º CPC, pelo que, para além de terem sido, nessa sede, impugnados pelos RECORRENTES/EXEQUENTES, nunca foram sujeitos a discussão e julgamento.
30. Também não o foram pela terceira, que não deduziu embargos de terceiro, tendo sido a sua única iniciativa processual a de juntar aos autos um "requerimento", que o juiz a quo considerou impertinente e cujo desentranhamento ordenou.
31. Os factos em apreço não são factos notórios, nem podem considerar-se como tendo vindo ao conhecimento do tribunal em virtude do exercício da sua função jurisdicional.
32. A existência do contrato de arrendamento não foi objecto de discussão e julgamento no processo de inventário. O tribunal limitou-se a aceitá-lo como documento referente a uma das verbas da relação de bens.
33. Não pode, por isso, considerar-se que sobre qualquer facto dele constante se encontre ao abrigo do caso julgado, e muito menos em relação a quem não foi parte no processo de inventário.
34. O mencionado contrato configura um documento particular, sujeito à livre apreciação do tribunal.
35. Livre apreciação não é, nem pode ser, sinónimo de arbitrariedade. Tem que ser exercida em audiência de discussão e julgamento, e sujeita aos poderes e faculdades resultantes do princípio do contraditório inerente a um processo de partes.
36. Pelo que o tribunal a quo nunca poderia ter ido colher o facto da existência do contrato de arrendamento aos autos de inventário em apenso.
37. Os RECORRENTES não eram parte no processo de inventário, pelo que nunca tiveram oportunidade para se pronunciarem acerca da validade, eficácia e vigência do mencionado contrato, nem sobre a força probatória do documento que, supostamente, o arvora.
38. O anúncio em que o tribunal publicitou a venda judicial omitia totalmente a existência de contrato de arrendamento sobre a fracção dos autos, pelo que os mesmos só tomaram conhecimento da existência do contrato após o tribunal ter procedido à venda, no momento em que se dirigiram à fracção para tomar posse dela.
39. Mesmo admitindo-se - no que se não concede - que o documento junto ao processo de inventário havia sido submetido a um escrutínio sobre a sua validade, eficácia e vigência, teria sempre que se considerar que esse juízo não seria oponível aos RECORRENTES, por força dos limites subjectivos do caso julgado.
40. O juiz não pode, simplesmente, compulsar um processo para dele extrair factos e considera-los imediatamente provados - existe uma formalidade para isso, e essa formalidade é a que prescreve o art.º 434.º/2 CPC in fine, pelo que o tribunal deve mandar extrair certidão e juntá-la ao processo, e permitir às partes a possibilidade o exercício do contraditório.
41. Não se percebe onde foi o tribunal colher o facto de que o contrato continua a existir, pois o mesmo não foi alegado por nenhuma das partes.
42. Igualmente, não se alcance onde foi o tribunal buscar os factos de que "a arrendatária se encontra a ocupar o imóvel", e que "exerce posse" sobre o mesmo. Não só tais factos não foram alegados, como são indiciariamente desmentidos pela realidade apurada pelo próprio tribunal.
43. Segundo o princípio do dispositivo, cabe às partes definir o objecto do litígio, alegando os factos que integrem a causa de pedir ou os que sirvam de fundamento à dedução de eventuais excepções. Por consequência, o tribunal só pode fundar a decisão nos factos assim trazidos à lide pelas partes.
44. A violação do princípio do dispositivo acarreta a nulidade do despacho recorrido, por o tribunal conhecer de uma questão que lhe era vedado conhecer.
45. O juiz não pode dar factos como provados sem recorrer à organização da audiência de discussão e julgamento, no âmbito da qual as partes possam debater o thema probandum, e apresentar e discutir perante o tribunal os meios de prova que lhes aprouver apresentar.
46. Ao dar como provada determinada factualidade - alguma sustentada por meros documentos particulares, outra nem isso -, sem que para tal tenha convocado as partes para uma audiência de discussão e julgamento, o tribunal a quo preteriu uma formalidade essencial com forte e manifesta influência na decisão que veio, a final, a tomar.
47. Como resultado da inobservância das regras formais sobre produção da prova, foi vedado aos RECORRENTES, pronunciarem-se sobre a matéria de facto que o tribunal deu como provada, e bem assim pelos meios de prova de que o tribunal fez uso - quando fez.
48. Também foi negado aos RECORRENTES o direito a pronunciarem-se sobre o enquadramento jurídico de tal factualidade, pois nunca foram notificadas da factualidade apurada pelo tribunal, com o correspondente convite para se pronunciarem sobre o direito aplicável.
49. Sem prejuízo do princípio jura novit curia, assiste às partes o direito a uma participação efectiva no desenvolvimento da lide.
50. Ao vedar aos RECORRENTES a possibilidade de se pronunciarem, quer sobre a matéria de facto, quer sobre o direito aplicável, antes de proferir uma decisão final nos presentes autos, o despacho recorrido violou o princípio do contraditório e a regra da proibição da decisão-surpresa, motivo pelo qual se encontra ferido de nulidade, por violação das normas dos art.ºs 3.º /3 e 147.º/1 CPC.
51. O despacho recorrido não fornece qualquer fundamentação para o facto de ter dado como provados os factos em que se baseou para proferir a decisão recorrida.
52. Os RECORRENTES não conseguem compreender como foi que o tribunal a quo chegou à conclusão de que o contrato se mantém em vigor, e que a arrendatária se encontra a ocupar o imóvel e a exercer posse sobre ele.
53. É omisso do despacho recorrido o iter racional que levou o tribunal a concluir pela verdade de tais factos, pelo que deve entender-se que o despacho recorrido não possui fundamentação que sustente as conclusões de facto que atingiu.
54. Também em matéria de direito, o despacho recorrido é praticamente omisso. Limita-se à citação de um artigo do Código Civil para dizer que a transmissão da propriedade não faz cessar o direito ao arrendamento, porém não explica como é que isso se projecta na presente execução. Do mesmo modo que, dando como improcedentes os pedidos dos RECORRENTES, não diz qual o destino que reflexo tal decisão possui na instância executiva - se absolve o Recorrido da instância executiva, ou do pedido. E também não esclarece como foi que o despacho de fls. 33 ficou subitamente esvaziado do seu conteúdo decisório.
55. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, com o despacho recorrido, as normas do art.º 1210.º do Código Civil, e as dos art.ºs 3.º/3; 5.º/1; 147.º/1; 292.º; 434.º/2; 571.º/1 c) e d), todos do CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
1. Em 08/03/2019, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“…
本「簡易執行裁判案」中,就請求執行人A、B及C之執行請求,本法庭於2018年12月13日命令被執行人E交付不動產『位於澳門XX街XX號XX大廈第XX座地下XX用作商業用途之獨立單位AR/C』予請求執行人,然而,於2019年1月18日,在執行該不動產實際交付時,有關不動產之承租人D出示其於2015年2月5日與被執行人E簽訂之為期近六年月租金為港幣4,000元之租賃合同(見卷宗第46頁至第48頁),其後請求執行人堅持要求不動產之交付(見卷宗第51頁至第52頁),而承租人則要求向請求執行人交付上指租金(見卷宗第53頁),但請求執行人主張承租人與被執行人所簽訂之上指租賃合同無效而不承認亦不欲收取上述租金(見卷宗第71頁)。
縱觀本案及與本案有關之第FM1-10-0016-CDL-A號「財產清冊」案,在「財產清冊」案已完成分割夫妻共同財產之目的並經司法變賣及2018年2月28日之判給批示後(A案第434頁背頁),本涉案不動產之所有權則由被執行人轉移至請求執行人,雖然如此,然而被執行人E卻早於2015年2月5日已與承租人D簽訂租賃合同,而該合同繼續存在且有關涉案不動產亦由承租人佔有。根據澳門《民法典》第1004條之規定,取得作為訂立租賃合同基礎之權利之人,繼受出租人之權利及義務,申言之,該「所有權讓與不破租賃」或「買賣不破租賃」之原則必以有關租賃物在讓與第三人之時已存在租賃合同且由承租人佔有為前提,即承租人對涉案不動產之佔有不會因不動產之所有權轉移而受影響,事實上新所有人即請求執行人可繼續按照原租賃合同之內容享受相關之權利及履行義務。
至於目前請求執行人認為有關租賃合同存在無效瑕疵而不承認亦不接受之,那麼則涉及租賃合同基礎內容之有效性問題,就此,其目的應透過其他民事訴訟途徑爭議合同有效性而非於本執行案透過交付執行予以達致;同樣,既然請求執行人不予承認租賃合同且不願接受原租金之金額,那麼承租人應另行提起其他提存租金之訴訟程序,而非透過本執行案完成交付租金或將相關租金存放於法庭賬戶等事宜。
基於此,本法庭駁回請求執行人在面對早已存在之租賃合同及承租人佔有不動產之事實時繼續要求交付有關不動產之請求,亦將卷宗第53頁之文件抽出並退回予承租人…”。
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III - Fundamentação
Têm razão os Exequentes.
Dispõe o nº 1 do artº 292º do CPC de forma expressa que “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
Como se vê, a lei prevê mecanismo próprio para um terceiro defender a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada.
Nesta conformidade, o Tribunal a quo não pode, sem embargos deduzidos pelo alegado arrendatário, determinar oficiosamente a não prossecução da execução1, sob pena de violar o princípio dispositivo, gerando a nulidade da decisão por excesso da pronúncia.
Assim, sem necessidade de demais delongas, o recurso não deixará de se julgar provido.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, declarando nulo o despacho recorrido, determinando a baixa dos autos para o prosseguimento da execução, a não ser que outra causa a tal obsta.
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Sem custas.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 31 de Outubro de 2019.
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong

1 No mesmo sentido, veja-se o Ac. deste TSI, de 22/06/2017, proferido no Proc. 764/2016.
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