Processo n.º 87/2019. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Consumo de estupefacientes ou mera detenção para consumo pessoal do agente. Quantidade de referência de uso diário.
Data do Acórdão: 4 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I - Actualmente, na redacção introduzida pela Lei n.º 10/2016, o consumo de estupefacientes ou a mera detenção para consumo pessoal do agente, são punidos com as penas dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º da Lei n.º 17/2009, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, nos termos do artigo 14.º da Lei n.º 17/2009.
II - A punição nos termos dos artigos 14.º e 11.º da Lei n.º 17/2009, depende de a ilicitude dos factos se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 17 de Maio de 2019, condenou o arguido A, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 18 de Julho de 2019, negou provimento ao recurso interposto pelo arguido.
Recorre, novamente, o arguido A para este Tribunal de Última Instância (TUI), entendendo que o crime praticado foi de o de tráfico de estupefacientes menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, dado que apesar de a droga apreendida exceder muito ligeiramente cinco vezes a quantidade de uso diário, prevista na lei, isso não quer dizer que tenha de ser punido pelo crime de tráfico previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009.
A Ex.ma Procuradora-Adjunta, na resposta à motivação, pronuncia-se pela improcedência do recurso.
No seu parecer, a Ex.ma Procuradora-Adjunta manteve a posição já assumida na resposta à motivação.
II – Os factos
Os factos provados e não provados são os seguintes:
Factos provados:
1.º
À noite de 2018.3.14, o arguido A consumiu drogas com Metanfetamina com duas mulheres no quarto do [Hotel (1)].
2.º
Pelas 11H40 da noite no mesmo dia, o arguido foi interceptado por agente de CPSP ao lado do [Hotel (2)] na Rua de Xangai. Nessa altura, ele trazia três sacos plásticos transparentes com cristais brancos (vide fls. 7).
3.º
Os cristais brancos eram de preso líquido de 1.599g, com Metanfetamina de 1.17g (vide fls. 152 a 158). O arguido queria usar parte das drogas para consumo pessoal e oferecer parte a outras pessoas.
4.º
O arguido praticou os actos livre, voluntaria e conscientemente, sem qualquer autorização legal, bem sabendo que estes eram proibidos e punidos por lei.
*
Mais se prova:
De acordo com o CRC, o arguido é delinquente primário.
São seguintes as situações pessoal e familiar do arguido:
O arguido era desempregado antes de ser preso.
Tem os pais a seu cargo.
Tem a habilitação de secundo ano do curso de ensino secundário geral.
*
Factos não provados: Outros factos constantes na acusação, designadamente:
Pelo menos a partir do Março de 2018, o arguido A começou, sob instrução de outra pessoa, drogas com Metanfetamina para adquirir remuneração de certa quantia.
Em 2018.3.14, o arguido adquiriu, no quarto do [Hotel (1)], dez sacos da droga supradita e instrumento de consumo dum homem. Nessa altura, o arguido sabia bem a qualidade e as características da droga.
Por outro lado, até à intercepção no mesmo dia, o arguido já vendou, sob instrução de outra pessoa por telefone, um dos sacos de droga ao lado do [Hotel (1)] pelo menos por uma vez.
À noite naquele dia, o arguido preparou por negócio conforme a instrução por telefone.
Os três sacos de cristais bancos descobertos na posse do arguido eram parte dos dez sacos de drogas, destinados para negócio.
III - O Direito
1. A questão a resolver
Importa apreciar a questão suscitada.
2. Tráfico e tráfico de menor gravidade
Dispõem os artigos 7.º, 8.º, 11.º e 14.º da Lei n.º 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.º 10/2016:
“Artigo 7.º
Produção ilícita de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
1. Quem, sem se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair ou preparar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.*
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 6 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 1 a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 2 a 8 anos, no caso do n.º 2.
Artigo 8.º
Tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no n.º 1 do artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 6 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 1 a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 2 a 8 anos, no caso do n.º 2”.
“Artigo 11.º
Produção e tráfico de menor gravidade
1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante”.
“Artigo 14.º
Consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
1. Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de 3 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias, salvo o disposto no número seguinte.
2. Caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente referido no número anterior cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa, aplicam-se, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º
3. Para determinar se a quantidade de plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém excede ou não cinco vezes a quantidade a que se refere o número anterior, são contabilizadas as plantas, substâncias ou preparados que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais”.
No artigo 8.º da mesma Lei pune-se o tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
No artigo 11.º da mesma Lei pune-se a produção e o tráfico ilícito de menor gravidade de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, que é aquela em que a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados. Sendo que um dos parâmetros a considerar na integração deste tipo de menor gravidade (ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída) se encontra a quantidade de produto ilícito produzido ou detido para tráfico, que não deve exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei.
No artigo 14.º da mesma Lei pune-se o consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
Contudo, nos seus n.os 2 e 3 do artigo 14.º, inovadoramente, a Lei n.º 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.º 10/2016, mandou aplicar, consoante os casos, as disposições dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder cinco vezes a quantidade deste mapa.
O que quer dizer que, actualmente, o consumo de estupefacientes ou a mera detenção para consumo pessoal do agente, são punidos com as penas dos artigos 7.º, 8.º ou 11.º, caso as plantas, substâncias ou preparados que o agente cultiva, produz, fabrica, extrai, prepara, adquire ou detém (para consumo próprio) constem do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei, e a sua quantidade exceder, cinco vezes a quantidade deste mapa.
Daqui podemos concluir que faz parte do tipo do artigo 14.º, n.os 1 e 2, a finalidade de consumo das substâncias (o n.º 2 refere “o agente referido no número anterior”) em medida superior a cinco à prevista no mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à lei.
Por isso, a quantidade consumida ou detida para consumo, acrescida ou não, em parte, com as quantidades que “ se destinem a outros fins ilegais” (n.º 3 do artigo 14.º), desde que acima das mencionadas cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, só pode relevar em sede de medida da pena, mas não, por si só, para efeitos de se considerar o agente como actuando com ilicitude consideravelmente diminuída, dado que o limite relevante da lei é a quantidade referente a cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário.
Ou seja, se se provar apenas que o agente detém para consumo pessoal uma quantidade de seis ou sete vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário, pouco superior às cinco vezes, não é possível, sem prova de outras circunstâncias atenuantes, considerar que actuou com ilicitude consideravelmente diminuída, para efeitos de punição nos termos dos artigos 14.º e 11.º da Lei, sendo punido, portanto, nos termos dos artigos 14.º e 8.º. De outra forma estar-se-ia a desvirtuar a intenção legislativa, que fixou como limite cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário e não seis ou sete vezes.
O arguido detinha para consumo pessoal e para cedência a terceiros metanfetamina, com o peso líquido de 1,17 g, quantidade que excede cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à mencionada Lei n.º 17/2009 (5,85 vezes).
Assim, face ao disposto nos artigos 8.º e 14.º, da mesma Lei, é punido nos termos do artigo 8.º e não nos termos dos artigos 11.º e 14.º.
Alega o recorrente que a circunstância de a quantidade detida ser mais de 5 vezes a quantidade de referência do mapa anexo à lei, não obsta à aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 11.º.
Isso é certo, só que não se provou qualquer facto donde resulte que a ilicitude dos factos se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados.
A circunstância de a quantidade detida ser pouco superior a 5 vezes a quantidade de referência do mapa anexo à lei, não é suficiente, exactamente porque o limite é o mencionado e não outro.
Deste modo, improcede o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 5 UC, e os honorários ao seu defensor, no montante de mil e quinhentas patacas.
Macau, 4 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
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Processo n.º 87/2019