Processo n.º 2/2017. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Chefe do Executivo.
Assunto: Ilegalidade do artigo 17.º do Regulamento Interno da Polícia Judiciária. Violação do princípio da legalidade da Administração. Regulamento especial. Regulamento interno.
Data da Sessão: 16 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I - O artigo 17.º do Regulamento Interno da Polícia Judiciária é ilegal, por violação do princípio da legalidade da Administração, na sua dimensão de precedência de lei, na parte em estabelece para os funcionários administrativos da PJ o dever de se manterem permanentemente em contacto, por telemóvel, durante 24 horas/dia e de responder o mais rapidamente possível às mensagens recebidas.
II - Os regulamentos especiais que contêm, em regra, normas internas, que dizem respeito à relação orgânica (do trabalhador, do militar, do preso, do internado, do aluno matriculado), devem considerar-se externos na medida em que afectem posições jurídicas subjectivas dos indivíduos envolvidos, enquanto pessoas e, como tal, são sindicáveis judicialmente os actos administrativos que neles se fundamentem.
III – Um regulamento interno não pode impor restrições ou afectar direitos e liberdades dos seus funcionários, que não estejam expressamente previstos na lei ou em regulamento administrativo do Chefe do Executivo.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho de 30 de Janeiro de 2015, do Chefe do Executivo, que indeferiu o recurso hierárquico interposto do despacho do Director da Polícia Judiciária (PJ) que puniu disciplinarmente o ora recorrente com a pena de multa, correspondente a 30 dias de vencimento.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso contencioso.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- Falta de lei habilitante para o disposto no artigo 17.º do Regulamento da PJ;
- Erro de interpretação e aplicação do artigo 17.º do Regulamento da PJ;
- Erro de interpretação e aplicação dos artigos 3.º da Lei n.º 5/2006 e 35.º, n. os 1 e 2 do Regulamento Administrativo n.º 9/2006;
- Erro de julgamento no que toca à circunstância agravante prevista no artigo 283.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM).
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso quanto à falta de lei habilitante para o disposto no artigo 17.º do Regulamento da Polícia Judiciária (PJ) e para o erro de julgamento no que toca à circunstância agravante prevista no artigo 283.º, n.º 1, alínea b) do ETAPM e improcedente quanto ao erro de interpretação e aplicação do artigo 17.º do Regulamento da PJ e quanto ao erro de interpretação e aplicação dos artigos 3.º da Lei n.º 5/2006 e 35.º, n. os 1 e 2 do Regulamento Administrativo n.º 9/2006.
II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
O recorrente é assistente técnico administrativo principal, de nomeação definitiva, da Polícia Judiciária.
O recorrente iniciou as funções na Polícia Judiciária desde 22.5.1990, tendo trabalhado há 23 anos na função pública até Novembro de 2014.
No âmbito do Processo disciplinar nº XXX/2014, instaurado contra o recorrente, foi proferido a 20.11.2014, pelo Senhor Director da Polícia Judiciária, o seguinte despacho:
“DESPACHO
Foi instaurado o presente processo disciplinar conforme o resultado do Processo de Averiguações n.º XX/2014 da Polícia Judiciária e o despacho feito pelo signatário no dia 18 de Julho de 2014, tendo sido nomeado o chefe de departamento, B, como instrutor para apurar a veracidade dos factos mencionados no dito processo de averiguações, e determinar a responsabilidade disciplinar que será possivelmente assumida pelo assistente técnico administrativo principal desta Polícia, A (ou seja o arguido deste processo).
O instrutor procedeu, nos termos da lei, a um conjunto de investigações e de recolha de provas, fazendo a acusação, garantindo o direito de defesa do arguido, analisando com prudência o conteúdo da resposta apresentada e elaborando o relatório final.
Foram comprovados os seguintes factos através das averiguações e diligências.
I
Em 20 de Junho de 2014, o instrutor do processo disciplinar n.º XX/2012 e chefe de divisão, C, pediu ao subinspector D, secretário do mesmo processo disciplinar, para contactar o arguido A e avisá-lo para apresentar-se no gabinete do instrutor para assinar a notificação e marcar uma data para a respectiva audição.
II
Em 20 de Junho de 2014, o subinspector D, enviou uma mensagem, através da Consola da PJ, ao telemóvel do arguido A, pedindo-lhe para ligar à extensão interna XXXX.
III
Não havendo resposta por parte do arguido A, nesse mesmo dia, o subinspector D, enviou mais duas vezes, através da Consola da PJ, mensagens ao telemóvel do arguido. Contudo, este não deu qualquer resposta.
IV
Porém, à espera de resposta dada pelo arguido, o subinspector D, recebeu duas chamadas (na extensão interna XXXX) feitas por uma senhora desconhecida através do telemóvel n.º XXXXXXXX, a mesma explicou que tinha recebido no seu telemóvel mensagens, que lhe pediam para ligar ao número XXXXXXXX, assim o fez e conforme o número indicado ligou para a PJ, além disso, acrescentou que nem ela nem ninguém da sua família é pessoal da RJ.
V
No dia 23 de Junho de 2014, o subinspector D, enviou mais duas vezes, através da Consola da PJ (extensão interna XXXX), mensagens ao telemóvel do arguido A, pedindo-lhe para ligar à extensão interna XXXX. Contudo, também não foram respondidas pelo arguido.
VI
No dia 23 de Junho de 2014, o subinspector D telefonou à Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes, pedindo aos colegas para que fossem à procura do arguido A e o avisassem. Desta forma conseguiu-se contactar o arguido, avisando-o para se dirigir ao referido gabinete para a realização das diligências.
VII
Depois de o arguido A ter assinado a notificação, o subinspector D perguntou-lhe a razão pela qual ele não respondeu às mensagens da Consola, o arguido respondeu que não tinha recebido aquelas mensagens, por isso não sabia que o subinspector D queria contactá-lo.
VIII
Pelo facto de o arguido A não ter recebido aquelas mensagens, o trabalho de investigação do processo disciplinar sofreu um atraso de 3 dias.
IX
No dia 26 de Junho de 2014, o arguido apresentou-se no gabinete do chefe de divisão, C, durante a audição referente ao processo disciplinar n.º XX/2012, o subinspector D perguntou novamente ao arguido sobre a verdadeira razão pela qual ele não respondeu às mensagens da Consola. O arguido respondeu que tinha cancelado, junto da Companhia de Telecomunicações de Macau (CTM), o número de telemóvel XXXXXXXX, passando a usar um novo número. Com efeito, o subinspector D perguntou-lhe se ele tinha comunicado a mudança do número de contacto à Consola, tendo o arguido respondido que sim.
X
No dia 27 de Junho de 2014, o subinspector D efectuou novamente uma chamada ao arguido através da Consola, dizendo-lhe para ligar de volta. Uma mulher desconhecida, utente do número de telemóvel XXXXXXXX ligou à PJ, dizendo que nem ela nem ninguém da sua família é pessoal da PJ, solicitando portanto à PJ para não enviar mais mensagens ao seu telemóvel.
XI
Após verificação dos dados internos, a Divisão de Administração Financeira e Patrimonial (DAFP) da PJ descobriu que até ao dia 22 de Julho de 2014, resultava que o arguido estava a utilizar o número de telemóvel de conta própria (XXXXXXXX) no registo da PJ, e que a PJ ainda pagava mensalmente 36 patacas à CTM como subsídio para esse número de telemóvel (XXXXXXXX).
XII
Após consulta à CTM, a DAFP conseguiu verificar através dos dados confirmados que depois da data de cancelamento do número de telemóvel (XXXXXXXX), dia 31 de Outubro de 2012, até ao dia 30 de Abril de 2014, o arguido efectuou vários cancelamentos e mudanças de número do telemóvel, sendo actualmente o seu número de XXXXXXXX.
XIII
Como a conta aberta na CTM em nome do pessoal PJ (A) é registada com um número específico XXXXXXX, o subsídio de 36 patacas atribuído mensalmente pela PJ ao seu pessoal é transferido para essa conta com número específico e não ao número de telemóvel XXXXXXXX, deste modo, mesmo que o arguido utilize outro número de telemóvel, o mesmo continua a gozar o subsídio mensal de 36 patacas da PJ.
XIV
Aos trabalhadores que optaram pela apresentação à PJ de telemóveis e números adquiridos e registados em conta própria, quando mudarem de número, têm o dever de comunicar, atempadamente, o novo número à DAFP e à Consola da PJ.
XV
Como o arguido A depois de mudar o seu número de telemóvel não o comunicou à DAFP nem à Consola da PJ, impediu a PJ de contactá-lo normalmente através da Consola, continuando, mesmo assim, a gozar do dito subsídio.
XVI
Conforme os dados informáticos fornecidos pela Divisão de Telecomunicações, que é a subunidade responsável pelo funcionamento da Consola da PJ, confirmou-se que o arguido A, entre 07 de Março de 2012 e 22 de Julho de 2014, continuou a ter o número de telemóvel XXXXXXXX no registo de número como contacto na Consola da PJ, além disso, foi confirmado que a PJ não chegou a receber qualquer comunicação sobre a mudança do número telefónico por parte do arguido A.
XVII
Os dados acima referidos confirmam ainda que o subinspector D nos dias 20, 23, 25 e 27 de Junho de 2014, enviou 7 mensagens, através da Consola da PJ, ao número XXXXXXXX fornecido pelo arguido A, entre as quais, 6 foram enviadas com sucesso e todas pediam-lhe para ligar à extensão interna XXXX.
XVIII
As explicações dadas pelo arguido A sobre a razão pela qual ele não respondeu às chamadas, demonstram que o arguido chegou a responder às perguntas feitas pelo subinspector D, contudo ele já não se lembra do conteúdo exacto e dos pormenores daquelas respostas, alegando, por outro lado, que nunca chegou a receber mensagens que lhe pediam para ligar de volta.
XIX
Em relação ao que disse o subinspector D sobre o facto de o arguido A ter-lhe dito que já tinha comunicado a mudança do número de telemóvel à Consola, o arguido respondeu que já não se lembra se o subinspector D lhe tinha feito essa pergunta e se ele chegou a responder sobre isso.
XX
O arguido A disse que teria comunicado verbalmente, através do número de telefone XXXXXXXX da PJ, sobre a sua mudança do número de telemóvel, contudo, não se lembra nem sabe quem foi a pessoa que atendeu a chamada, a par disso, admite que não chegou a fazer a comunicação por escrito à PJ.
XXI
De acordo com as informações dadas pela recepcionista E, responsável pelo atendimento do telefone (XXXXXXXX) da PJ, o arguido A nunca telefonou para pedir para actualizar o número de contacto na Consola.
XXII
No dia 14 de Julho de 2014, o arguido A explicou a razão pela qual ele tem ido várias vezes à CTM para cancelar e alterar o número de telemóvel, referindo que recebia frequentemente chamadas de pessoas desconhecidas, o que considera muito perturbante, por isso tem vindo a mudar, constantemente, o seu número de telemóvel.
XXIII
Dado que o arguido A mudou várias vezes o seu número de telemóvel, sem ter actualizado os referidos dados à DAFP, assim como à Consola da PJ, fez com que esta enviasse mensagens ao seu antigo número, perante esta situação, o arguido respondeu que não tinha ponderado sobre esse facto.
XXIV
Relativamente às várias mudanças do número de telemóvel por parte do arguido A, estas poderão ter impedido à PJ de o avisar ou contactar, através da Consola, quando necessário ou por motivos de serviços, no auto de declaração datado de 14 de Julho de 2014, o arguido respondeu que não tinha ponderado sobre esse facto.
XXV
No auto de declaração do dia 14 de Julho de 2014, o arguido A referiu que não sabia que tinha o dever de comunicar o cancelamento e mudança do número de telemóvel à subunidade competente e à Consola da PJ, explicando que ninguém o tinha informado, por isso não tinha conhecimento do facto.
XXVI
No entanto, após a data acima mencionada, no dia 21 de Julho de 2014, o secretário deste mesmo processo, F enviou mensagens através da Consola da PJ ao arguido para este ligar à extensão interna XXXX, com o objectivo de comunicar o arguido A para dirigir-se ao gabinete do instrutor e assinar a notificação, mas o arguido não respondeu.
XXVII
Assim, sem ter recebido a resposta do arguido, F telefonou à Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes e pediu aos colegas para que contactassem e avisassem o arguido, tendo-se finalmente conseguido, foi-lhe comunicado para dirigir-se ao referido gabinete.
XXVIII
Para os efeitos de investigação do referido processo disciplinar, no dia 28 de Julho de 2014, o secretário deste processo disciplinar F, enviou novamente mensagens através da Consola da PJ ao arguido A para este ligar à extensão interna XXXX, com o objectivo de combinar um encontro no gabinete do instrutor para a realização da audição, mas o arguido continuou a não responder.
XXIX
Enquanto aguardava pela resposta do arguido A, uma senhora de apelido X ligou-lhe através do número de telemóvel XXXXXXXX, referindo que estava a usar este número há algum tempo, nem ela nem ninguém da sua família é pessoal da PJ, por isso, pediu à PJ para não enviar mais mensagens para aquele telemóvel (XXXXXXXX).
XXX
Uma vez mais, o secretário do referido processo disciplinar, F, telefonou à Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes e pediu aos colegas para contactassem o arguido A e o avisassem, desta forma conseguiu finalmente entrar em contacto com o arguido.
XXXI
Pelos factos acima demonstrados, o arguido A mesmo tendo sido avisado e chamado várias vezes pelos colegas, até ao dia 28 de Julho de 2014, ainda não tinha comunicado a mudança do seu número de contacto à subunidade competente nem à Consola, muito menos tinha fornecido o seu novo número à Consola para efeitos de chamada e contacto.
XXXII
De acordo com os registos fornecidos pela CTM sobre os números de telemóvel inscritos pelo arguido A nessa empresa, o arguido começou a usar o número de telemóvel XXXXXXXX a partir do dia 1 de Agosto de 2011, o qual foi cancelado no dia 31 de Outubro de 2012, substituindo-o para XXXXXXXX. O número de telemóvel XXXXXXXX foi subscrito, a partir do dia 17 de Maio de 2013, por um residente de Macau de nome G.
Relativamente às explicações apresentadas pelo arguido na sua defesa escrita, o instrutor efectuou a respectiva análise e réplica de acordo com a lei, concordo perfeitamente com as razões e as opiniões expressas pelo mesmo, sendo reorganizado por mim e apresento-o novamente na seguinte forma:
1. Nos termos do estipulado no artigo 3º (Serviço Permanente) da Lei n.º 5/2006, a Polícia Judiciária é um órgão de polícia criminal cujo serviço tem carácter permanente e obrigatório; o serviço é garantido, fora do horário normal, pelos Piquetes de Prevenção e Intervenção, por turnos e por grupos de prevenção. Apesar do arguido A não pertencer ao grupo de funcionários dos Piquetes de Prevenção e Intervenção, por turnos, nem ao grupo de prevenção, não necessita de prestar serviços permanentes e obrigatórios, mas para garantir o serviço permanente estipulado na lei, além do grupo de funcionários que prestam serviços permanente e obrigatório, a PJ também pode pedir, quando necessário, aos funcionários, que prestam serviços de outra natureza para trabalhar fora do horário normal, para garantir o serviço permanente ou ainda pode enviar, em qualquer momento, informações e ajustamentos urgentes aos seus funcionários. A PJ sendo um órgão de polícia criminal com serviço permanente e obrigatório, é imprescindível, é portanto justificável e legal a execução desta medida de trabalho;
2. Por isso, a PJ distribui a cada funcionário um telemóvel e SIM card, ou subsidia, em 36 patacas por mês, o pagamento das despesas telefónicas aos que escolhem o uso do próprio telemóvel e SIM card, facilitando assim o contacto a qualquer momento entre a PJ e os seus funcionários;
3. Todos os funcionários da PJ devem saber claramente que esta entidade é um órgão de polícia criminal que presta serviço permanente e obrigatório. Os funcionários administrativos também têm a obrigação de cumprir e saber que poderão ser chamados para prestar serviço fora do horário normal. Todos os funcionários, quer os que utilizam o telemóvel distribuído ou aqueles que recebem o subsídio, devem cumprir o estipulado do artigo 17º do “Regulamento Interno da Polícia Judiciária”;
4. Nos termos do estipulado do artigo 17º (Uso e guarda de telemóveis) do “Regulamento Interno da Polícia Judiciária" estipula que a fim de assegurar o carácter “permanente e obrigatório” do serviço prestado pela Polícia Judiciária, o pessoal desta Polícia é obrigado a utilizar os telemóveis, quer se trate de telemóveis particulares com pagamento total ou parcial por parte da PJ dos encargos resultantes da sua utilização ou de telemóveis distribuídos pela PJ, mantendo-os permanentemente ligados 24 horas/dia e assegurando o seu bom funcionamento por forma a poder receber ou efectuar chamadas ou mensagens de serviço em qualquer altura.
5. O arguido A, apesar de pertencer ao grupo de funcionários cujo serviço é de carácter administrativo, é funcionário da PJ, está portanto sujeito a cumprir a norma acima referida, tendo o dever de manter permanentemente ligado 24 horas/dia o seu telemóvel e garantir o seu bom funcionamento, de forma a poder receber chamadas ou mensagens da PJ em qualquer altura;
6. O arguido por iniciativa própria mudou o seu número de telemóvel, sem ter comunicado a mudança à Consola da PJ, significa que este não cumpriu absolutamente o referido estipulado para garantir o bom funcionamento do seu telemóvel, de forma a poder receber e efectuar chamadas ou mensagens de serviço em qualquer altura;
7. Para além disso, entre 20 de Junho de 2014 e 28 de Julho de 2014, mesmo depois de o arguido ter sabido que na Consola ainda estava registado o seu antigo número de telemóvel XXXXXXXX, para servir de contacto, este não comunicou o novo número de telemóvel ao pessoal da Consola, isto levou a PJ a enviar pelo menos 7 mensagens ao seu antigo número de telemóvel XXXXXXXX, este facto causou um certo incómodo ao actual titular daquele número de telemóvel, o mesmo reclamou e questionou a Polícia Judiciária por não ter resolvido o erro cometido há mais de um mês, tendo isto prejudicado a boa imagem desta instituição.
De acordo com o “Registo Biográfico e Disciplinar” emitido pela PJ, o arguido começou a exercer funções na PJ a partir do dia 22 de Maio de 1990 e trabalho há 23 anos na função pública.
Relativamente ao registo disciplinar, o arguido tem 7 processos de averiguações, entre os quais 5 transitaram para processos disciplinares, com registo de 12 processos disciplinares, entre esses, o processo disciplinar n.º PD. XX/2001 resultou na pena de suspensão de 210 dias, a qual foi executada entre 19 de Dezembro de 2001 e 16 de Julho de 2002; no processo disciplinar n.º PD. XX/2007, foi-lhe aplicada a pena de multa de 30 dias do seu vencimento; no processo disciplinar n.º PD. XX/2011 foi-lhe aplicada a pena de suspensão de 90 dias, executada entre 3 de Dezembro de 2011 e 1 de Março de 2012; enquanto que o processo disciplinar n.º PD. XX/2014 apensado ao processo disciplinar n.º PD. XX/2012, encontra-se ainda em fase de investigação.
O arguido A trabalha há mais de 23 anos na PJ, deve estar bem consciente e conhecer claramente os deveres estipulados no “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau” e no “Regulamento Interno da Polícia Judiciária”, assim como deve saber que a execução por iniciativa própria desses deveres é uma obrigação que todos os funcionários da PJ devem procurar cumprir. Contudo, no decorrer do presente processo disciplinar, o arguido A, para além de não ter executado os deveres conforme o estipulado, mesmo depois de ter sido avisado várias vezes pelas chefias e pelos colegas, continuou a violar as normas escapando deliberadamente ao seu dever. Durante a investigação, o arguido tem respondido frequentemente que não se lembrava, usando o não conhecimento e o facto de ninguém o ter avisado acerca daqueles deveres como pretexto para escapar às responsabilidades, o que demonstra claramente que o arguido não fez o possível para exercer as suas funções, resistindo intencionalmente às ordens legítimas dos superiores, bem como desprezando e desafiando o estipulado no “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau” e no “Regulamento Interno da Polícia Judiciária”.
Essa rejeição do arguido, não só afectou o bom andamento do trabalho de investigação do processo disciplinar, bem como levou a PJ a enviar pelo menos 7 mensagens a indivíduos que não são pessoal desta Polícia, causando incómodo ao actual titular daquele número de telemóvel, além disso, prejudicou o bom funcionamento da PJ, bem como a boa imagem da PJ perante a população.
A postura que tem tido o arguido A demonstra que, relativamente às suas funções, tem uma atitude passiva, sem arrependimento perante os erros cometidos, desafiando a disciplinar, para além disso, não mostra vontade de assumir a responsabilidade de ter violado as regras disciplinares.
Durante a sua carreira na função pública, desde 1990 até hoje, o arguido A tem sido alvo de 7 processos de averiguações, entre estes 5 transitaram para processos disciplinares, e tem um registo de 12 processos disciplinares, o que mostra a falta de entusiasmo pelo trabalho e vontade para cumprir as obrigações legais.
Pelos actos acima referidos, o arguido A violou os deveres estipulados na alínea b) do n.º 2 e n.º 4 (dever de zelo), bem como a alínea c) do n.º 2 e n.º 5 (dever de obediência), todos do artigo 279º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau”, e nos termos do estipulado no artigo 281º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau”, o acto efectuado pelo arguido constitui infracção disciplinar.
Ao arguido A é aplicável a alínea b), g) e l) do n.º 1 do artigo 283º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau” referente às circunstâncias agravantes. Nenhuma circunstância atenuante é aplicável.
Tendo em consideração à natureza e às circunstâncias relativas à infracção praticada por A e para satisfazer as necessidades de prevenção e reprovação da infracção, de acordo com o n.º 1 e a alínea e) do n.º 2 do artigo 313º e o artigo 302º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau”, usando as competências conferidas pelo artigo 321º do ETAPM, determino a aplicação ao arguido A da pena de multa de 30 dias do seu vencimento.
Cabe à Divisão de Ligação entre Polícia e Comunidade e Relações Públicas da PJ, depois de ter recebido o respectivo processo e despacho, notificar o arguido A, ao qual será garantindo e disponibilizado o serviço de tradução chinês-português.”
Inconformado, dele interpôs o recorrente recurso hierárquico ao Chefe do Executivo.
A 30.1.2015, o Chefe do Executivo proferiu o despacho com o seguinte teor:
“O presente recurso hierárquico vem interposto do despacho do Director da Polícia Judiciária, de 20 de Novembro de 2014, que, no âmbito do Processo Disciplinar n.º X/2014 (Polícia Judiciária), determinou a aplicação ao ora recorrente, A, de uma pena de multa correspondente a 30 (trinta) dias de vencimento.
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 156º do Código do Procedimento Administrativo, o recurso é dirigido ao mais elevado superior hierárquico do autor do acto, salvo se a competência para a decisão se encontrar delegada.
Sucede que o actual Secretário para a Segurança é o autor do acto recorrido encontrando-se impedido de decidir o presente recurso hierárquico, por via do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46º do mesmo Código do Procedimento Administrativo, porquanto foi ele o autor do acto recorrido enquanto Director da Polícia Judiciária.
Nos referidos autos de processo disciplinar mostra-se ter ficado provado que o ora recorrente praticou os factos que lhe foram imputados na acusação, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Tal como decidido no despacho recorrido e pelas razões ali enunciadas, com a prática de tais factos o ora recorrente violou culposamente os deveres estipulados na alínea b) do n.º 2 e no n.º 4 (dever de zelo), bem como na alínea c) do n.º 2 e no n.º 5 (dever de obediência), todos do artigo 279º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, (ETAPM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, o que constitui infracção disciplinar, nos termos do respectivo artigo 281º.
Agravam a sua conduta as circunstâncias das alíneas b), g) e l) do n.º 1 do artigo 283º do ETAPM, sendo que não militam a favor do recorrente quaisquer circunstâncias atenuantes.
Nos termos do n.º 1 do artigo 302º do ETAPM, é aplicável em processo disciplinar pena de multa que não poderá exceder 30 dias de vencimento e outras remunerações certas e permanentes devidos ao funcionário ou agente à data da notificação do despacho condenatório.
Foram cumpridas as formalidades legais, designadamente a audiência do arguido, que se defendeu pela forma como consta dos autos.
Face ao exposto, ponderados os factos, a sua gravidade e o circunstancialismo agravante que caracterizam a conduta do ora recorrente, mantenho o acto recorrido, indeferindo, assim, o presente recurso”.
III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que apreciar as questões suscitadas pelo recorrente.
2. Ilegalidade do artigo 17.º do Regulamento Interno da Polícia Judiciária, por violação do princípio da legalidade da Administração
O acto punitivo considerou:
4. Nos termos do estipulado do artigo 17º (Uso e guarda de telemóveis) do “Regulamento Interno da Polícia Judiciária" estipula que a fim de assegurar o carácter “permanente e obrigatório” do serviço prestado pela Polícia Judiciária, o pessoal desta Polícia é obrigado a utilizar os telemóveis, quer se trate de telemóveis particulares com pagamento total ou parcial por parte da PJ dos encargos resultantes da sua utilização ou de telemóveis distribuídos pela PJ, mantendo-os permanentemente ligados 24 horas/dia e assegurando o seu bom funcionamento por forma a poder receber ou efectuar chamadas ou mensagens de serviço em qualquer altura.
5. O arguido A, apesar de pertencer ao grupo de funcionários cujo serviço é de carácter administrativo, é funcionário da PJ, está portanto sujeito a cumprir a norma acima referida, tendo o dever de manter permanentemente ligado 24 horas/dia o seu telemóvel e garantir o seu bom funcionamento, de forma a poder receber chamadas ou mensagens da PJ em qualquer altura;
6. O arguido por iniciativa própria mudou o seu número de telemóvel, sem ter comunicado a mudança à Consola da PJ, significa que este não cumpriu absolutamente o referido estipulado para garantir o bom funcionamento do seu telemóvel, de forma a poder receber e efectuar chamadas ou mensagens de serviço em qualquer altura;
7. Para além disso, entre 20 de Junho de 2014 e 28 de Julho de 2014, mesmo depois de o arguido ter sabido que na Consola ainda estava registado o seu antigo número de telemóvel XXXXXXXX, para servir de contacto, este não comunicou o novo número de telemóvel ao pessoal da Consola, isto levou a PJ a enviar pelo menos 7 mensagens ao seu antigo número de telemóvel XXXXXXXX, este facto causou um certo incómodo ao actual titular daquele número de telemóvel, o mesmo reclamou e questionou a Polícia Judiciária por não ter resolvido o erro cometido há mais de um mês, tendo isto prejudicado a boa imagem desta instituição.
…
Pelos actos acima referidos, o arguido A violou os deveres estipulados na alínea b) do n.º 2 e n.º 4 (dever de zelo), bem como a alínea c) do n.º 2 e n.º 5 (dever de obediência), todos do artigo 279º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau”, e nos termos do estipulado no artigo 281º do “Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau”, o acto efectuado pelo arguido constitui infracção disciplinar.
O recorrente considera que o artigo 17.º do Regulamento Interno da Polícia Judiciária é ilegal, por violação do princípio da legalidade da Administração, na sua dimensão de precedência de lei, na parte em estabelece para todos os funcionários e agentes da PJ o dever de se manterem permanentemente em contacto, por telemóvel, durante 24 horas/dia e de responder o mais rapidamente possível às mensagens recebidas.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público concorda com esta imputação do recorrente.
E afigura-se-nos que bem.
Na verdade, de acordo com o artigo 3.º da Lei n.º 5/2006, lei orgânica da PJ, que dispõe sobre o regime de competências e de autoridade desta Polícia:
Artigo 3.º
Serviço permanente
1. A PJ é um órgão de polícia criminal cujo serviço tem carácter permanente e obrigatório.
2. O serviço é assegurado, fora do horário normal, pelos Piquetes de Prevenção e Intervenção, por turnos e por grupos de prevenção.
3. A regulamentação do funcionamento dos piquetes referidos no número anterior e dos grupos de prevenção é estabelecida por despacho do director da PJ.
Nos termos do artigo 20.º do mesmo diploma:
Artigo 20.º
Organização e funcionamento
A organização e o funcionamento da Polícia Judiciária são desenvolvidos por regulamento administrativo.
Este Regulamento Administrativo é o n.º 9/2006, que estatui sobre organização e funcionamento da Polícia Judiciária e em cujo artigo 4.º se diz:
Artigo 4.º
Competências do director
Ao director compete:
1) Dirigir e representar a PJ;
2) Aprovar a regulamentação interna da PJ;
3) Elaborar e submeter à apreciação superior o plano, o orçamento e o relatório de actividades;
4) Exercer as funções e competências que por lei lhe sejam cometidas e as demais que lhe sejam delegadas ou subdelegadas.
Com fundamento nestas normas, veio o acórdão recorrido sustentar que o director da PJ tem competência para aprovar a regulamentação interna da PJ, pelo que “sem necessidade de delongas considerações, não se descortina a alegada violação de lei por ilegalidade do respectivo Regulamento Administrativo”.
Mas não é assim.
Apesar de a lei orgânica da PJ (artigo 20.º) dispor que organização e o funcionamento da Polícia Judiciária são desenvolvidos por regulamento administrativo e de este [alínea 2) do artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 9/2006] prever que o director da PJ tem competência para aprovar a regulamentação interna da PJ, estas duas disposições não permitem que este regulamento interno diga aquilo que lhe apeteça, como é evidente. Estes dois preceitos não permitem que este regulamento interno imponha restrições ou afecte direitos e liberdades dos seus funcionários, que não estejam expressamente previstos na lei ou em regulamento administrativo do Chefe do Executivo.
É que um regulamento interno, como o dos autos, não é o regulamento administrativo do Chefe do Executivo, previsto na Lei Básica e nas alíneas 2) e 3) do artigo 4.º da Lei n.º 13/2009.
Ora, é pacífico que um regulamento interno quando imponha restrições ou afecte direitos e liberdades dos seus funcionários, para efeitos da aferição da sua conformidade com a lei e para efeitos da recorribilidade contenciosa de actos administrativos que nele se baseie, deve ser considerado um regulamento externo1.
Como explica VIEIRA DE ANDRADE2 “são externos os regulamentos aplicáveis a quaisquer relações intersubjectivas (também às relações inter-administrativas).
Por sua vez, são internos os regulamentos que se limitam a disciplinar a organização ou funcionamento de uma pessoa colectiva ou de um órgão, na medida em que não tenham carácter relacional nem envolvam dimensões pessoais, bem como os regulamentos operacionais que determinam auto-vinculações internas (incluindo directrizes de órgãos superiores) na interpretação e aplicação das leis, designadamente no exercício de poderes discricionários.
Os regulamentos especiais contêm, em regra, normas internas, que dizem respeito à relação orgânica (do trabalhador, do militar, do preso, do internado, do aluno matriculado), mas devem considerar-se externos na medida em que afectem posições jurídicas subjectivas dos indivíduos envolvidos, enquanto pessoas”.
O artigo 17.º do Regulamento Interno da PJ, ao impor ao pessoal administrativo, que tenha os seus telemóveis distribuídos pela PJ permanentemente ligados 24 horas por dia, é ilegal, porque nenhuma lei ou regulamento administrativo do Chefe do Executivo prevêem esta restrição e nenhuma lei habilita o director da PJ a impô-la.
O acto punitivo, ao fundamentar a violação de deveres funcionais por parte do recorrente, nesta norma, enferma de violação de lei, que conduz à sua anulação.
Está prejudicado o exame dos restantes vícios, apenas suscitados para a hipótese de o antecedente vício não proceder.
Procede o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o acórdão recorrido e anulam o acto recorrido.
Sem custas.
Macau, 16 de Outubro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, Lisboa, Almedina, 1980, p. 123.
2 VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2.ª edição, p. 2011, p. 117.
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