Processo n.º 106/2019. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças.
Assunto: Residente temporário. Residente permanente. Residência habitual em Macau. Conceito indeterminado. Ausência temporária de Macau.
Data da Sessão: 13 de Novembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – O residente temporário na RAEM não passa a residente permanente pelo mero decurso do tempo, sendo necessário um acto administrativo expresso que verifique as condições de que depende o estatuto de residente permanente, designadamente a residência habitual em Macau durante sete anos consecutivos.
II – Residência habitual, para efeitos de se saber se alguém tem ou não residência habitual em Macau, é um conceito indeterminado plenamente sindicável pelos tribunais, dado que não envolve nenhum juízo de prognose.
III - A ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau, como prevê o n.º 3 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999, impondo-se que a Administração verifique se, apesar da ausência, o interessado mantém residência habitual em Macau.
IV – Se a recorrente alegou, no recurso contencioso, que foi contratada como directora de “business development” em empresa de Macau e que o âmbito territorial de actuação das suas responsabilidades laborais se estende a toda a região da Ásia, pelo que não pode pernoitar em Macau a maior parte das noites, deve ser permitido à mesma provar o mencionado circunstancialismo.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A interpôs recurso contencioso do despacho de 23 de Março de 2018, do Secretário para a Economia e Finanças, que declarou a caducidade da autorização de residência temporária da recorrente, com fundamento em não ter mantido residência habitual em Macau.
Por acórdão de 30 de Maio de 2019, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformada, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- O acto recorrido foi proferido quando já tinham decorrido mais de 7 anos de permanência em Macau, pelo que o direito à residência permanente já tinha sido adquirido;
- Só por conjecturais e transitórias razões de ordem laboral e profissional a Recorrente esteve a maior parte dos dias fora de Macau, nos últimos dois anos, em virtude da incumbência, por parte da sua entidade patronal, de organização da actividade comercial em destinos fora de Macau, findos os quais deverá regressar à RAEM, com caracter de permanência.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, pois que, para efeitos do disposto na alínea 9) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 8/1999, a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau, como prevê o n.º 3 do artigo 4.º da mesma Lei, pelo que se impunha que a Administração tivesse averiguado, para efeitos do n.º 4 deste artigo 4.º, se a recorrente trabalhou ou trabalhava no exterior, em que locais, por que períodos de tempo, onde morava, onde pernoitava.
II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
A recorrente, A, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Hong Kong, na qualidade de quadro dirigente, apresentou em 2010 ao Instituição de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (IPIM) um requerimento da autorização de residência temporária.
A requerente mais solicitou a extensão da autorização de residência temporária acima referida ao seu cônjuge, B.
Foi-lhes, pela primeira vez, concedida a autorização de residência temporária em 17 de Junho de 2010, bem como foi-lhes, pela primeira vez, emitido o Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente de Macau em 2 de Agosto do mesmo ano, com a validade até 17 de Junho de 2016. (vide fls. 41 e 46 do Processo Administrativo)
Em 15 de Março de 2016, a requerente deslocou-se ao IPIM para renovar a sua autorização de residência temporária e a do seu cônjuge B e, finalmente, foi-lhes concedida a renovação pela respectiva autoridade. (vide fls. 31 a 33 do Processo Administrativo)
O técnico superior do IPIM elaborou em 6 de Março de 2018 uma Proposta n.º XXXXX/AJ/2018, cujo teor se transcreve:
“Assunto: Declaração da caducidade de autorização de residência temporária (processo n.º XXXX/200902R)
Proposta n.º: XXXXX/AJ/2018
Data: 06/03/2018
D, gerente substituto da Divisão dos Assuntos Jurídicos,
1. Nos termos do disposto no Regulamento Administrativo n.º 3/2005, a autorização de residência temporária foi concedida em 17 de Junho de 2010 à requerente, A, com base na qualidade de quadro dirigente, e estendida ao seu cônjuge, B. Consequentemente, foi concedida a renovação da autorização de residência temporária até 17 de Junho de 2019 aos dois interessados, melhores identificados no processo n.º XXXX/200902R (vide anexo 5).
2. A requerente e o seu cônjuge já completaram 7 anos da autorização de residência temporária em 17 de Junho de 2017, pois, a requerente apresentou uma declaração escrita e os documentos comprovativos em 11 de Outubro de 2017, com o objectivo de requerer junto este Instituto uma carta de confirmação para comprovar que as respectivas autorizações de residência temporária mantêm-se válidas (vide anexo1).
3. Para os efeitos acima referidos, através do ofício n.º XXXXX/GJFR/2017, o IPIM solicitou ao CPSP o registo de migração da requerente. De acordo com as informações apresentadas pelo CPSP na sua resposta, em 2016 e no período compreendido entre Janeiro e Novembro de 2017, a requerente permaneceu 31 dias e 27 dias em Macau, respectivamente (vide Anexo 2).
4. Nos termos do disposto no art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, aplicável subsidiariamente por força do disposto no art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, a residência habitual do interessado na Região Administrativa Especial de Macau é condição da manutenção da autorização de residência, mas, das informações do registo de migração em causa resulta que a requerente não estava em Macau na maior parte do tempo.
5. Visto que o assunto acima exposto seja eventualmente desfavorável à requerente para manter a autorização de residência temporária, este Instituto, através do ofício n.º XXXXX//DJFR/2018, realizou audiência escrita à requerente em 30 de Janeiro de 2018 (vide anexo 3).
6. A requerente apresentou a sua resposta em 13 de Fevereiro de 2018, cujo conteúdo se transcreve principalmente (vide anexo 4):
1). A requerente reiterou que, a partir de 1 de Novembro de 2011, foi contratada pela SOCIEDADE C.” para desempenhar o cargo de “director de negócios – zona asiática”, com a retribuição base de MOP$60.000,00;
2). A requerente indicou que, devido à natureza da sua profissão, devia frequentemente deslocar-se ao exterior em missão de trabalho. A mesma entendeu, embora estivesse fora de Macau, foi efectivamente trabalhar para a entidade patronal de Macau;
3). A requerente divulgou que, em 2018, iria principalmente trabalhar em Macau, e solicitou a este Instituto que admitisse a sua resposta.
7. Relativamente à resposta e aos documentos apresentados pela requerente, analisa-se o seguinte:
1) De acordo com as informações do registo de migração do CPSP, em 2016 e no período compreendido entre Janeiro e Novembro de 2017, a requerente permaneceu 31 dias e 27 dias em Macau, respectivamente.
2) Em conformidade com a resposta dada pela requerente, mesmo que tivesse sido contratada pela entidade patronal de Macau, trabalhava frequentemente fora de Macau.
3) Na resposta e nos documentos apresentados pela requerente, não se justificou, nem se comprovou que ela fixou o seu centro da vida em Macau.
4) Tendo em consideração as circunstâncias previstas no art.º 4, n.º 4 da Lei n.º 8/1999, considera que a requerente não reside habitualmente em Macau.
8. Por tudo o exposto, a residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência. No entanto, de acordo com as informações do registo de migração do CPSP, mostra-se que a requerente não estava em Macau na maior parte do tempo. Após a audiência escrita ter sido realizada, não se pode comprovar que a requerente fixou o seu centro da vida em Macau. Sendo assim, tendo em consideração as circunstâncias previstas no art.º 4, n.º 4 da Lei n.º 8/1999, considera que a requerente não reside habitualmente em Macau. Pelo exposto, propõe-se a submissão ao Sr. Secretário para a Economia e Finanças para que, nos termos do disposto no art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, subsidiariamente aplicável por força do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003 e art.º 24.º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, declare a caducidade da autorização de residente temporária concedida aos interessados.
Pelo exposto, submete-se à apreciação e ao despacho superior
Relativamente à proposta em causa, a presidente, substituta, do IPIM, emitiu em 15 de Março de 2018 um parecer, cujo teor se transcreve:
. “Concordo com a proposta, submeto à apreciação do Sr. Secretário para a Economia e Finanças.”
Em 23 de Março de 2018, o Sr. Secretário para a Economia e Finanças proferiu na Proposta n.º XXXXX/AJ/2018 acima referida o seguinte despacho:
“Aprovo a proposta.” (vide fls. 10 do Processo Administrativo)
De acordo com as informações do registo de migração do Serviço de Migração, em 2016 e no período compreendido entre Janeiro e Novembro de 2017, a requerente permaneceu 31 dias e 27 dias em Macau, respectivamente. (vide fls. 21 e 25 do Processo Administrativo).
III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que apreciar as questões suscitadas pela recorrente, atrás mencionadas.
2. Direito adquirido
Alega a recorrente que o acto recorrido foi proferido quando já tinham decorrido mais de 7 anos de permanência em Macau, pelo que o direito à residência permanente já tinha sido adquirido.
A primeira parte da asserção está certa, a segunda não, dado que o estatuto de residente permanente da RAEM tem de ser requerido nos termos do n.º 5 do artigo 4.º da Lei n.º 8/1999 e, quando previamente existe residência temporária, a Administração tem o dever de averiguar se o interessado manteve residência habitual em Macau durante o período de 7 anos, pois só assim adquirirá o estatuto de residente permanente.
Improcede a questão suscitada.
3. Sindicabilidade judicial da residência habitual
À recorrente foi concedida a autorização de residência temporária em 17 de Junho de 2010, com fundamento em ser quadro dirigente contratada por empregador local que, por virtude da sua formação académica, qualificação ou experiência profissional, foi considerada de particular interesse para a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), nos termos da alínea 3) do artigo 1.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005.
De acordo com o n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, aplicável por força do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, a residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.
Residência habitual, para efeitos de se saber se alguém tem ou não residência habitual em Macau, é um conceito indeterminado plenamente sindicável pelos tribunais, dado que não envolve nenhum juízo de prognose. Seria diferente, se estivesse em causa, como no caso invocado pelo Ex.mo Magistrado do MP, junto do TSI, a intenção de alguém manter residência definitiva ou permanente em Macau, por aqui já envolver um juízo de prognose.
No caso dos autos, ao contrário do que parece ter entendido o acórdão recorrido, não está em causa saber se a recorrente tem intenção de permanecer em Macau, mas apenas se manteve residência habitual em Macau nos 7 anos, designadamente nos dois últimos, que são os que estão em causa, em que teve autorização para residência temporária.
4. Ausência temporária de Macau
Como refere no seu parecer o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, para efeitos do disposto na alínea 9) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 8/1999 (“São residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente designada por RAEM … As demais pessoas que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente”), a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau, como prevê o n.º 3 do artigo 4.º da mesma Lei (“Para os efeitos do estatuto de residente permanente referido nas alíneas 2), 5), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º … a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau”).
Dispõe, ainda o n.º 4 do mesmo artigo 4.º que “Para a determinação da residência habitual do ausente, relevam as circunstâncias pessoais e da ausência, nomeadamente:
1) O motivo, período e frequência das ausências;
2) Se tem residência habitual em Macau;
3) Se é empregado de qualquer instituição sediada em Macau;
4) O paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores”.
A recorrente quando foi ouvida pela Administração, para efeitos de audiência prévia, alegou que, devido à natureza da sua profissão, directora de negócios – zona asiática, de uma empresa de Macau, devia frequentemente deslocar-se ao exterior em missão de trabalho. A mesma disse, que embora estivesse fora de Macau, foi efectivamente trabalhar para a entidade patronal de Macau.
Assim sendo, face ao disposto na Lei, impunha-se que a Administração tivesse averiguado, para efeitos do mencionado n.º 4 do artigo 4.º Lei n.º 8/1999, se a recorrente trabalhou ou trabalhava no exterior, em que locais, por que períodos de tempo, onde morava. Mas não o fez.
Embora com algumas deficiências, a recorrente alegou, no recurso contencioso, que foi contratada como directora de “business development” em empresa de Macau e que o âmbito territorial de actuação das suas responsabilidades laborais se estende a toda a região da Ásia, pelo que não pode pernoitar em Macau a maior parte das noites.
Afigura-se-nos que, no recurso contencioso, se deveria ter permitido que a recorrente provasse os factos alegados, tendente a justificar a sua ausência de Macau, na maior parte do tempo em 2016 e 2017, que é o período que a Administração entende que a recorrente não tinha residência habitual em Macau, demonstrando onde trabalhou e onde pernoitou. O que não foi feito.
Impõe-se, assim, a anulação do acórdão recorrido, por insuficiência da matéria de facto, que deve ser ampliada aos mencionados factos, nos termos do artigo 650.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
Para efeitos do n.º 2 do artigo 650.º do Código de Processo Civil, consigna-se o seguinte: como o ónus da prova cabe à recorrente, se ela demonstrar que trabalhou para a sua entidade patronal de Macau, nos anos de 2016 e 2017, nos períodos em que esteve ausente de Macau, no exterior e que pernoitou nesses locais, deverá o acto administrativo ser anulado.
Se não fizer essa prova, o recurso contencioso deve ser julgado improcedente.
IV – Decisão
Face ao expendido, anulam o acórdão recorrido, para ampliação da matéria de facto.
Custas pelo vencido a final, se for a ora recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC.
Macau, 13 de Novembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
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