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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
   
1. Relatório
O Consórcio formado por Beijing Enterprises Water Group Limited – Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited – Top Builders Macau Limitada, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Chefe do Executivo da RAEM, de 30 de Abril de 2018, que adjudicou à Waterleau – Originwater em Consórcio a prestação dos serviços de “Modernização, operação e manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Coloane”.
Por acórdão proferido em 30 de Maio de 2019, o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso, anulando o despacho recorrido.
Inconformado com a decisão, vem agora Waterleau – Originwater em Consórcio recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A prova dos n.ºs 19 a 24 dos factos dados por provados foi produzida pelo depoente A que é gerente geral adjunto e representante da recorrida Beijing Enterprises Water Group Limited.
2. Nos termos do art.º 478.º n.º 2 do Código de Processo Civil seu depoimento só pode valer como confissão e não como prova contra a sua contra-parte aqui recorrente.
3. Razão pelas quais o depoimento probatório dos factos n.ºs 19 a 24 prestado pelo Sr. A é ilegal ou nulo, devendo por isso considerar-se por não escritos tais factos dados por provados dado ser ilegal ou nulo o depoimento prestado sobre os mesmos contra os ora recorrentes.
4. Os documentos em que a Comissão de Avaliação se baseou para considerar e avaliar as experiências da WATERLEAU GROUP encontram-se comprovadas pelos originais e públicas-formas notariais de 15 de Dezembro de 2017.
5. Estamos perante concurso para cujas experiências o Programa do Concurso (lei em sentido amplo) exige documento formal escrito original ou pública-forma, e que por isso “não pode ser substituído por outro meio de prova ou por qualquer outro documento que não seja de força probatória superior” – art.º 357.º n.º 1 do Código Civil de Macau.
6. Porém, o douto Acórdão serviu-se do depoimento do Sr. A para ilidir tal prova documental notarialmente reconhecida e, por isso, o Acórdão viola o cit. art.º 357.º n.º 1 do Código Civil de Macau e consequentemente deve ser revogado.
7. Em 2017, a recorrente concorreu ao concurso de “Modernização, operação e manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Coloane” com apresentação das experiências dessa actividade adquiridas em contratos de prestação de serviços de operação e manutenção de ETARs, prestadas até à data da abertura do concurso, que foi 25.10.2017. Nos termos da cl. 6.2 do capítulo II-2 do Pragrama de Concurso os serviços tinham que ter sido prestado em contratos anteriores ao do aviso de abertura do concurso e, se no caso de contrato ainda em execução à data do concurso, as experiências têm de ser, no mínimo, de 3 anos antes da data de publicação do anúncio do concurso;
8. Entre as experiências apresentadas pela recorrente, apresentou 2 relativas a contratos ainda em execução, ETARs de Marraquexe Marrocos e Fez-Marrocos, e que tinham sido celebrados pelo de prazo de 10 anos: – prazo de 21.01.2012 até 20.01.2022 e de 01.01.2014 a 31.12.2023, as quais foram avaliadas e pontuadas pela Comissão e Avaliação;
9. Ficou provado no Acórdão ora recorrido que em 27 de Abril de 2018 o Sr. A comprovou por averiguação in loco que as ETARs estavam a ser operadas pela empresa do projecto local da adjudicatária WATERLEAU GROUP e que esta increveu em Marrocos com a mesma marca e designação e registo fiscal da Waterleau Group, assim como também verificou a existência da Sociedade General Routière.
10. Ou seja, os factos provados do exercício de experiência alheia nessas ETARs reportam-se à existência da Sociedade General Routière a trabalhar nos serviços de operação e manutenção das ETARs em Abril de 2018, e não na operação e manutenção durante o período anterior a essa data.
11. Não consta a existência de tais terceiros nas ETARs antes de 2018, nem a referida “Sociedade General Routière” nem a referida “empresa do projecto local da adjudicatária WATERLEAU GROUP. E muito menos desde o início dos contratos adjudicados, listados e pontuados à Waterleau: 21.01.2012 e 01.01.2014, respectivamente.
12. Não consta provado que tal situação já existisse durante o período das experiências executadas, listadas e avaliadas e que, conforme se vê do programa do concurso e do Relatório da Comissão de Avaliação, foi a experiência de serviço prestado durante o período de pelo menos 3 anos antes da publicação do anúncio do concurso – cfr. parte final da cláusula 6.2 do capítulo II.2 - Programa do Concurso. Ou seja, e conforme se vê do programa do concurso e do Relatório da Comissão de Avaliação, a experiência avaliada e pontuada foi o tempo prestado desde o início dos contratos em 21.01.2012 e 01.01.2014 até 25.10.2017 data de abertura do concurso.
13. No entanto o Acórdão ora recorrido, em manifesta oposição entre a decisão e os fundamentos de facto que deu por provados (experiência ou existência de terceiros na operação e manutenção das ETARs de Marrakech e Fez em 2018), anulou o acto administrativo recorrido do Sr. Chefe do Executivo julgando essa experiência na operação e manutenção dessas ETARs como sendo experiência de terceiro (não da recorrente) desde o início dos respectivos contratos, isto é, desde 2012 e 2014.
14. Por isso, O douto Acórdão recorrido sofre da nulidade do art.º 571.º n.º 1, c), do CPC, por manifesta contradição entre a decisão e os fundamentos de facto em que assenta;
- bem como sofre de erro de julgamento pois, mesmo que não houvesse tal contradição, os factos provados (situação em 2018) não é subsumível, como o Acórdão erradamente subsumiu, ao período anterior ao aviso de abertura do concurso e referida norma 6.2 do capítulo II.2-Programa do Concurso que estipula e rege as experiências anteriores a 25.10.2017 data de abertura do concurso em contratos com prazo que ultrapasse tal data.
- Razão pela qual deve o Acórdão ser revogado.
15. Segundo os factos dados por provados foi a WATERLEAU GROUP que inscreveu ou se inscreveu em Marrocos com a mesma marca e designação e registo fiscal da Waterleau Group.
16. Para que se trate de sociedade comercial com personalidade jurídica carecia de ser constituídas por um contrato de sociedade (acto constitutivo), pela forma prevista lei, com identificação dos sócios e sua declaração de vontade de constituição da sociedade, data da celebração, o tipo e firma da sociedade, e tudo mais que estiver previsto na lei e o acto constitutivo levado a registo comercial. Cfr., em Macau, os art.º 176.º do Código Comercial de Macau e art.ºs 141.º e 156.º do Código Civil conjugados com os art.ºs 179.º e segs do citado Código Comercial.
17. Ora, no caso dos autos, não vem provado acto constitutivo diferente da Waterleau Group nem qualquer documento ou prova de qualquer natureza de que fosse uma pessoa jurídica local distinta da Waterleau Group. A única coisa provada foi que é que foi a própria Waterleau Group que inscreveu empresa local com a mesma marca e designação e registo fiscal da Waterleau Group, sem indicação de quaisquer elementos que permitam concluir tratar-se de pessoa jurídica distinta da Waterleau Group;
18. O julgamento feito de estarmos perante pessoa distinta da ora Recorrente Waterleau Group não condiz com os factos provados que se tratava de empresa que Waterleau Group se inscreveu localmente com a mesma marca e designação e registo fiscal (n.º 21). Ou pelo menos são insuficientes para julgar que essa empresa com designação e marca da recorrente não era a recorrente mas sim pessoa jurídica diferente.
19. RAZÃO pela qual o douto Acórdão recorrido sofre de erro de julgamento bem como viola o art.º 176.º do Código Comercial de Macau e art.ºs 141.º e 156.º do Código Civil conjugados com os art.ºs 179.º e segs do cit Código Comercial e ainda os art.ºs 19.º e 178.º do Código Comercial de Macau Conjugados “a contrário” com o art.º 184.º do Código Civil de Macau. Ou então, sofre de insuficiência de matéria de facto para assim ter julgado que tal matéria preenche a noção de operação por sociedade distinta ou pessoa juridica distinta da adjudicatária Waterleau e de que não operam ali funcionário da recorrente Waterleau (como é caso não apurado do Sr. B, responsável pela ETAR Fês-Maroc), DEVENDO por isso ser revogado.
20. A douta decisão aqui recorrida atentando no facto dos 2 contratos adjudicados à aqui recorrente terem sido ambos e cada um celebrados com a duração de 10 anos (de 21.01.2012-20.01.2022 e 01.01.2014- 31.12.2023), julgou o Tribunal “a quo” que os mesmos ainda estariam em vigor em 27 de Abril de 2018, nomeadamente quanto à parte em que foram encontrados trabalhadores da Sociedade General Routière;
21. Ora, existe prova de que em 27 de Abril de 2018 havia no local das ETARs trabalhadores com capacete e fatos de segurança com as isígnias da Sociedade General Routière. Mas não existe qualquer prova de que esses trabalhadores e a Sociedade General Routière estivessem no local estabelecida a prestar os serviços que pelos 2 referidos contratos competiam à Waterleau Group. Podia muito bem ser na execução doutro contrato, como por exemplo, novas instalações e áreas e serviços de operação e manutenção posteriormente acrescidos às ETARs mediante contrato de extensão das ETARs.
22. Mas ficou provado no n.º 23 dos factos assentes que os serviços eram prestados pela “empresa do projecto local da adjudicatária WATERLEAU GROUP”, embora a prova indique que ela é a própria recorrente ali inscrita com mesma marca e designação e registo fiscal dela Waterleau Group.
23. Ao ter julgado que os contratos estavam ainda em vigor, o Acórdão recorrido caiu nos vícios que acima lhe apontámos – erro de julgamento bem como viola o art.º 176.º do Código Comercial de Macau e art.ºs 141.º e 156.º do Código Civil conjugados com os art.ºs 179.º e segs do cit Código Comercial e ainda os art.ºs 19.º e 178.º do Código Comercial de Macau conjugados “a contrário” com o art.º 184.º do Código Civil de Macau. Bem como violação da cláusula n.º 6.3, b), do capítulo II.2 do Programa de Concurso;
24. Nenhuma das partes levantou a questão da manutenção da vigência ou não daqueles contratos em 27 de Abril de 2018. Razão pela qual, o Acórdão sofre por isso da nulidade do art.º 571.º n.º l, d), 2ª parte, do CPC por ter conhecido de questão que não lhe competia conhecer.
25. A decisão ora recorrida julgou que sobre a recorrente caía o ónus de provar a mudança de operadores verificada pelo Sr. A em 27 de Abril de 2019 e de provar que tal acontecera depois do aviso de abertura (25.10.2017) sob pena do Tribunal considerar que houve substituição de operadores logo desde o início dos contratos em 2012 e 2014.
26. Ora ninguém alegou nem apresentada prova da existência de terceiros operadores nas ETARs antes de 27 de Abril de 2018.
27. O que a recorridos alegaram e provaram foi 27 de Abril de 2018. Tal juízo do julgador traduz em imposição à recorrente o ónus de provar contra si própria (provar contra si um facto impeditivo do direito concursal da recorrente) que o facto ocorrera antes da data alegada e provada pelos ora recorridos, nomeadamente que isso ocorrera antes 15.10.2017 que foi a data do anúncio do concurso.
28. Com efeito, sucede que os factos constitutivos dos direitos concursais dos autos são apenas o facto das experiências executada até à data do aviso de abertura do concurso, isto é, até 25.10.2017, inclusive. O que se passou ou não passou depois dessa data extravasa o âmbito do Concurso e direitos e obrigações do mesmo concurso – parte final da cláusula 6.2 do capítulo II.2-Programa do Concurso.
29. A norma apenas impõe à recorrente o ónus de provar que cumpriu a execução dos contratos até à referida data do aviso de abertura do concurso, isto é, até 25.10.2017. Não lhe exige nem concede o direito nem ónus de apresentar e ver contabilizado qualquer trabalho ou execução depois da referida data do aviso de abertura do concurso, isto é, até 25.10.2017.
30. O Acórdão recorrido entendeu porém que cabia à recorrente provar que a data da presença de terceiros na operação das ETARs não foi data de Abril de 2018 alegada e provada pelos ora recorridos mas sim data diferente eventualmente impeditiva dos direitos concursais da ora recorrente.
31. Ao assim ter entendido, o douto acórdão recorrido violou as regras do ónus da prova – art.º 334.º n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Bem como violou as normas da cláusula 6.2 do capítulo II.2-Programa do Concurso.
32. Razões estas pelas quais deve ser revogado.

Contra-alegou o Consórcio formado por Beijing Enterprises Water Group Limited – Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited – Top Builders Macau Limitada, apresentando as seguintes conclusões:
1. Primeiro, nos termos do art.º 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o contra-interessado não pode recorrer dos factos dados como provados no acórdão do TSI, bem como o TUI só pode realizar o conhecimento de Direito do caso.
2. Segundo, a testemunha, A, arrolada pelos Recorrentes não era representante do Recorrente, Beijing Enterprises Water Group Limited, mas sim, apenas era contratada por BEWG (PT) S.A. criado em Lisboa, Portugal (sociedade de projecto local).
3. In casu, a testemunha, A, não prestou depoimento de parte, não violando o art.º 478.º do Código de Processo Civil, pelo que os depoimentos dela são admissíveis, não devendo ser revogados os pontos 19 a 24 dos factos dados como provados no acórdão.
4. Ao abrigo do disposto na alínea q) do ponto 12.1 do programa do concurso, aos documentos exigidos não é aplicável a forma da declaração prevista no art.º 357.º do Código Civil.
5. Ademais, a força probatória do documento particular (cc370/2) só se limita em provar factos desfavoráveis, sem prejuízo da averiguação da veracidade do conteúdo do documento pela Administração ou pelo Tribunal.
6. Ora, o douto Tribunal Colectivo do TSI, através da audição das testemunhas e das provas documentais constantes dos autos, deu como provados os pontos 19 a 24 dos factos, situação essa não violou o n.º 1 do art.º 357.º do Código Civil.
7. Por outro lado, no acórdão do TSI indicou-se concretamente que a conclusão – “Portanto, segundo as regras da experiência comum, em conjugação com as provas apresentadas pelos Recorrentes, este Tribunal considera que pode ser razoavelmente apurado o seguinte facto: Os projectos em causa foram explorados, desde princípio, pelas sociedades de projecto locais e não directamente pelo contra-interessado” – não foi tirada meramente com base na situação ocorrida em Abril de 2018, altura em que a testemunha, A, efectuava a investigação, a par disso, o artigo 23.º dos factos dados como provados no aludido acórdão – “Finda a investigação in loco, averiguou-se que as duas estações de tratamento de águas residuais em Marrocos (WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc) eram operadas pela sociedade de projecto local do adjudicatário, Waterleau Group.” – não só apurou a situação ocorrida em Abril de 2018.
8. Daí se vislumbra que no acórdão do TSI, fez-se especialmente uma análise sobre a tese exposta pelo contra-interessado na contestação – “meramente a situação actual e não a situação do passado”, pelo que não se verifica a contradição entre o acórdão e os factos provados e fundamentos, não havendo a violação da alínea c) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil.
9. Entendeu o contra-interessado que o acórdão do TSI violou o art.º 184.º do Código Civil e os artigos 19.º e 178.º do Código Comercial, face a isso, é indispensável indicar que no artigo 21.º dos factos tem-se apurado que, conforme a exigência da legislação de Marrocos, as estações de tratamento de águas residuais em Marrocos só podem ser exploradas pelas empresas locais registadas lá, e isso não tem nada a ver com as disposições do Código Civil e do Código Comercial de Macau relacionadas com sociedade ou escritório permanente.
10. Mesmo que o contra-interessado tenha assinalado que as sociedades de projecto em Marrocos usavam designação e registo fiscal iguais aos dele, isso não prejudica a criação duma personalidade independente do contra-interessado para as referidas sociedades em consequência do registo das mesmas em Marrocos. Por cima, esta é uma questão de factos provados. Portanto, o contra-interessado voltou a violar o disposto no art.º 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
11. Enfim, no entendimento do contra-interessado, o acórdão do TSI cometeu erro na interpretação e na aplicação do disposto no ponto 6.3 de II.2 (Programa do concurso) do “Processo do concurso”, porém, mesmo que tenham sido expostos vários fundamentos de Direito, realmente, o contra-interessado ainda continua a questionar os factos dados como provados no acórdão do TSI.
12. Mais se salienta que é plenamente razoável que o Tribunal Colectivo do TSI, baseando-se nos depoimentos apreciáveis da testemunha, A, adoptou a presunção natural para apurar um facto negativo (não houve mudança da empresa operadora) que é dificilmente apurável, ou seja, para apurar que, antes de 27 de Abril de 2018, os contratos dos dois projectos de estação de tratamento de águas residuais em Marrocos não foram efectivamente executados pelo contra-interessado.
13. Por cima, não se verifica a violação da parte final da alínea d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil (conheça de questões de que não podia tomar conhecimento), quando o Tribunal Colectivo do TSI tiver apurado que as experiências relativas aos dois projectos em Marrocos do contra-interessado foram igualmente adquiridas pelas sociedades de projecto e, em consequência, entender que a Comissão de análise das propostas tratou, desigual e injustamente, da proposta apresentada pelos Recorrentes, desencadeando a anulação do acto de adjudicação.
14. Em face do exposto, o contra-interessado não se conformou principalmente com os pontos 19 a 24 dos factos dados como provados no acórdão recorrido e, nos termos da lei, tais factos não podem ser apreciados pelo TUI nem podem ser ilididos neste recurso, além disso, todos os fundamentos de Direito invocados pelo contra-interessado são improcedentes, pelo que se requer ao Tribunal Colectivo do TUI que negue provimento ao recurso interposto pelo contra-interessado.

O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos
Nos autos foram dados como provados os seguintes factos:
1. O Recorrente é o Consórcio formado por Beijing Enterprises Water Group Limited – Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited – Top Builders Macau Limitada, empresas estas registadas em Hong Kong, no Interior da China e em Macau, que formaram consórcio para concorrer ao concurso público para a “Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Coloane”, com sede em Macau, na Avenida da Praia Grande, n.º 599, Edf. Comercial Rodrigues, 16º andar.
2. Pelo anúncio da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, publicado no Boletim Oficial n.º 42 (sic), II Série, de 25 de Outubro de 2017, foi publicado e aberto o concurso público para a “Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Coloane”.
3. Os aludidos serviços públicos foram concorridos por 4 empresas e o Recorrente era o 3º concorrente.
4. Em 30 de Abril de 2018, o Chefe do Executivo da R.A.E.M. proferiu despacho, adjudicando os serviços de “Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Coloane” ao Waterleau – Originwater em Consórcio, pelo preço de MOP170.823.924,00 (cento e setenta milhões, oitocentas e vinte e três mil, novecentas e vinte e quatro patacas).
5. Conforme a certidão de registo de avaliação emitida, em 21 de Maio de 2018, pela DSPA, o Recorrente foi o 3º classificado com a pontuação total de 70,01%, enquanto o adjudicatário Waterleau – Originwater em Consórcio teve a pontuação total de 77,43%.
6. No ponto 17 do anúncio do concurso público estipulam-se os critérios de avaliação e ponderação das propostas:
A avaliação de propostas é dividida em três partes:
1ª Parte – Avaliação das “experiências do concorrente” (25%);
2ª Parte – Avaliação das “propostas para as obras e prestação dos serviços” (25%);
3ª Parte – Avaliação do “preço da proposta” (50%).
7. O Recorrente teve 7,5 pontos nas “experiências do concorrente”.
8. Segundo o programa do concurso, relativamente às experiências do concorrente, a Comissão de análise das propostas procedeu à avaliação consoante os seguintes pontos: O ponto 6.3 de II.2 (Programa do concurso) do “Processo do concurso” prevê: As experiências referidas no ponto 6.2 devem estar em conformidade com qualquer um dos seguintes dispostos: a) Se o concorrente for sociedade, as experiências referidas no ponto 6.2 devem ter sido adquiridas directamente pelo concorrente/adquiridas conjuntamente pelo concorrente e por outra entidade sob a forma de consórcio; ou b) No caso de o concorrente ser um membro do consórcio, as experiências referidas no ponto 6.2 devem ter sido adquiridas directamente por um membro do consórcio que possua, no mínimo, 40% de quota do consórcio/adquiridas conjuntamente por um membro do consórcio que possua, no mínimo, 40% de quota do consórcio e por outra entidade sob a forma de consórcio.
9. O Recorrente apresentou como documentos da proposta os documentos comprovativos das experiências adquiridas em relação às 14 estações de tratamento de águas residuais instaladas no Interior da China, nomeadamente os serviços de operação e manutenção das instalações de tratamento de águas residuais onde se aplica o processo de tratamento biológico, que, dentro de 10 anos, foram prestados ou continuam a ser prestados por Beijing Enterprises Water Group Limited e Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited que cada um possui 40% de quota do consórcio em causa.
10. O Recorrente incluiu os seguintes 14 projectos de estação de tratamento de águas residuais na “lista de experiências”:
1) Obras de ampliação da estação de tratamento de águas residuais da Cidade de Jiaonan (2ª fase+3ª fase)
2) Estação de tratamento de águas residuais da linha Xiahe da Cidade de Yongzhou
3) Estação de tratamento de águas residuais de Fulaerji da Cidade de Qiqihar
4) Estação de tratamento de águas residuais da Cidade de Jinzhou (1ª fase+2ª fase)
5) Estação de tratamento de águas residuais da Cidade de Yuxi
6) Estação de tratamento de águas residuais de Dongkeng de Hengli
7) Estação de tratamento de águas residuais de Lianma de Dalingshan
8) Estação de tratamento de águas residuais de Nanshelang
9) Estação de tratamento de águas residuais da Vila de Gaobu
10) Estação de tratamento de águas residuais de Jinxia da Cidade de Changsha
11) Estação de tratamento de águas residuais de Huangge da Zona de Desenvolvimento Nansha
12) Estação de tratamento de águas residuais de Taziba da Cidade de Mianyang
13) Estação de tratamento de águas residuais do Sul do Parque Industrial Zhongxin da Zona Sanshui da Cidade de Foshan
14) Estação de tratamento de águas residuais de Shatang de Houjie
11. Conforme o relatório de avaliação constante dos autos, enfim, apenas se avaliou o projecto da Estação de tratamento de águas residuais de Taziba da Cidade de Mianyang assumido pelo Recorrente, enquanto as experiências relativas aos restantes 13 projectos não foram ponderadas nem avaliadas.
12. A Comissão de análise das propostas entendeu fundamentalmente que as estações de tratamento de águas residuais em apreço eram construídas e operadas pelas sociedades de projecto criadas por Beijing Enterprises Water Group Limited ou Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited, pelo que considerou que as referidas experiências não eram adquiridas directamente pelo concorrente.
13. Todavia, de acordo com os documentos da proposta apresentados pelo Recorrente, Beijing Enterprises Water Group Limited era o contraente ou adjudicatário dos projectos relativos às estações de tratamento de águas residuais de itens 1-5, cujos contratos e acordos continham a assinatura do representante legal de Beijing Enterprises Water Group Limited e o respectivo carimbo.
14. Face às estações de tratamento de águas residuais de itens 6-9 mencionadas nos documentos da proposta apresentados pelo Recorrente, em 6 de Fevereiro de 2013, Beijing Enterprises Water Group Limited adquiriu Dongguanshi Degao Water Limited, Dongguanshi Dalingshan Yongyi Water Limited, Dongguanshi Shipai Weitong Water Limited e Dongguanshi Gaobu Zhonghui Water Limited, sendo o único sócio dessas empresas, pelo que obteve a franquia das ditas estações de tratamento de águas residuais.
15. De acordo com os documentos da proposta apresentados pelo Recorrente, Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited (designado anteriormente por Sichuan Zhongkecheng Environmental Group Co. Ltd.), sendo adjudicatário dos projectos relativos às estações de tratamento de águas residuais de itens 10-13, criou várias sociedades de projecto locais para executarem os respectivos projectos.
16. Face à estação de tratamento de águas residuais de item 14 mencionada nos documentos da proposta apresentados pelo Recorrente, em 21 de Junho de 2012, Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited adquiriu Dongguanshi Houjie Haiqing Wushuichuli Limited, sendo o único sócio dessa empresa, pelo que obteve a franquia da Estação de tratamento de águas residuais de Shatang de Houjie.
17. Face às experiências do Recorrente, relativas à estação de tratamento de águas residuais de item 12, que foram avaliadas, embora o projecto da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Taziba da Cidade de Mianyang fosse adjudicado a Sichuan Zhongkecheng Environmental S.A.R.L. (designado posteriormente por Beikong Zhongkecheng Environment Group Limited), realmente, tal estação foi operada pela empresa de projecto criada, depois da adjudicação do projecto, exclusivamente para esse efeito – Companhia de purificação de águas residuais urbana da Cidade de Mianyang.
18. O modo de funcionamento do projecto da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Taziba da Cidade de Mianyang e as experiências relativas a outras estações de tratamento de águas residuais apresentadas pelo Recorrente eram indiferentes.
19. Por outro lado, na lista de experiências apresentada pelo ora adjudicatário, Waterleau – Originwater em Consórcio, duas experiências apresentadas por Waterleau Group: WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc, eram operadas pelas empresas criadas em Marrocos, enquanto Waterleau era meramente um dos contraentes do contrato celebrado com a entidade que realiza o processo de concurso.
20. Em 27 de Abril de 2018, o vice-presidente permanente da sociedade de projecto criada em Portugal pelo Recorrente Beijing Enterprises Water Group Limited, A, deslocou-se propositadamente a Marrocos para efectuar uma investigação in loco, de dois dias, das duas estações de tratamento de águas residuais em Marrocos (WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc), pertencentes a Waterleau Group.
21. De acordo com as informações fornecidas a A pelo responsável da estação de tratamento de águas residuais WWTP Fès-Maroc, B, nos termos da legislação de Marrocos, as estações de tratamento de águas residuais só podiam ser exploradas pelas empresas locais registadas lá. Assim sendo, Waterleau Group registou lá uma empresa local na altura em que lhe foi adjudicado o projecto em causa, cujas marca comercial e designação eram iguais a Waterleau Group da Bélgica, a par disso, o registo fiscal em Marrocos era independente, bem como a gestão e operação da estação eram executadas pela equipa local de Marrocos, e à qual não se aplicaram quaisquer recursos humanos ou técnicos da sede de Waterleau Group na Bélgica.
22. A, ao efectuar a investigação in loco da estação de tratamento de águas residuais WWTP Marrakech-Maroc, tomou conhecimento de que o principal trabalho de operação e manutenção da aludida estação de tratamento de águas residuais era responsabilizado pela Companhia General Routiere, bem como viu que os fatos e capacetes de segurança usados pelos trabalhadores de operação e manutenção da estação tinham o símbolo da Companhia General Routiere.
23. Finda a investigação in loco, averiguou-se que as duas estações de tratamento de águas residuais em Marrocos (WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc) eram operadas pela sociedade de projecto local do adjudicatário, Waterleau Group.
24. No relatório de avaliação, as experiências relativas a WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc foram admitidas e valoradas pela Comissão de análise das propostas.

3. Direito
Foram suscitadas as seguintes questões:
- Violação do art.º 478.º do CPC;
- Violação do art.º 357.º n.º 1 do Código Civil;
- Erro de julgamento e nulidade do art.º 571.º n.º 1, al. c) do CPC;
- Erro de julgamento e violação dos art.ºs 184.º do Código Civil e 19.º e 178.º do Código Comercial ou a insuficiência da matéria de facto;
- Errada interpretação e aplicação da lei (aviso e programa do concurso).

3.1. Da violação do art.º 478.º do CPC
Alega o recorrente que, como o depoente A é gerente geral adjunto e representante da recorrida Beijing Enterprises Water Group Limited, o seu depoimento só pode valer como confissão e não como prova contra a sua contra-parte aqui recorrente, nos termos do art.º 478.º n.º 2 do CPC, pelo que o depoimento probatório dos factos n.ºs 19 a 24 prestado pelo Sr. A é ilegal ou nulo, devendo por isso considerar-se por não escritos tais factos dados por provados.
Ora, nos termos do art.º 518.º do CPC, “estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes”.
Ao abrigo do n.º 2 do art.º 478.º do CPC, o depoimento de representantes de pessoas colectivas pode ser requerida, porém, o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que os representantes possam obrigar os seus representados.
Há que ver se o depoimento prestado pelo Sr. A, que segundo alega o recorrente é gerente geral adjunto e representante da recorrida Beijing Enterprises Water Group Limited, deve ser qualificado como depoimento de parte.
Ora, constata-se na factualidade assente que aquele “depoente” é o vice-presidente permanente da sociedade de projecto criada em Portugal pela Beijing Enterprises Water Group Limited.
Conforme os documentos juntos aos autos (fls. 330 e 331), o mesmo depoente detém o cargo de Administrador no Conselho de Administração da Be Water, S.A. e no Conselho de Administração da BEWG(PT), S.A..
Daí que o Sr. A não tem qualidade de representante da Beijing Enterprises Water Group Limited, que é uma das companhias que formam o consórcio ora recorrido, dado que não há elementos que apontem para este sentido, sendo que são pessoas colectivas distintas Beijing Enterprises Water Group Limited e BEWG de Portugal, mesmo existindo alguma ligação entre as duas empresas.
Daí que, não estando em causa o depoimento de parte, pode o Sr. A ser ouvido na qualidade de testemunha, como ocorreu no momento de inquirição de testemunha (fls. 337 e 337v dos autos).
Não se vislumbra a ilegalidade da prova invocada pelo recorrente.

3.2. Da violação do art.º 357.º n.º 1 do Código Civil
Na óptica do recorrente, estando perante concurso para cujas experiências o Programa do Concurso exige documento formal escrito original ou pública-forma, e que por isso “não pode ser substituído por outro meio de prova ou por qualquer outro documento que não seja de força probatória superior” (art.º 357.º n.º 1 do Código Civil), o douto Acórdão viola esta norma ao servir-se do depoimento do Sr. A para ilidir tal prova documental notarialmente reconhecida.
Está em causa a matéria de facto, referente às experiências apresentadas pelo ora recorrente.
O Tribunal recorrido deu como assente que as duas experiências apresentadas pelo recorrente “eram operadas pelas empresas criadas em Marrocos, enquanto Waterleau era meramente um dos contraentes do contrato celebrado com a entidade que realiza o processo de concurso” (facto n.º 19).
Ora, conforme a disposição nos art.ºs 47.º n.º 1 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, em recurso jurisdicional de decisões de processo contencioso administrativo, o Tribunal de Última instância aprecia, em princípio, questão de direito e não de facto.
E fica delimitada a competência do Tribunal de Última Instância em apreciar a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, que é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º.
E como foi dito no Acórdão deste TUI, de 27 de Novembro de 2002, no Processo n.º 12/2002, o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de fato. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes.
Mais se acrescentou no mencionado Acórdão, o Tribunal de Última Instância tem competência para conhecer de questões relativas a matéria de facto se forrem violadas normas e princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto, como decorre do disposto no n.º 2 do art.º 649.º do Código de Processo Civil de Macau.
Imputa o recorrente a violação do disposto no art.º 357.º n.º 1 do Código Civil, segundo o qual “quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior”.
No ponto 6.2. do Capítulo II.2 do Programa do Concurso estabelece-se que a experiência apresentada deve ser comprovada pelos concorrentes mediante a apresentação do original ou da pública-forma do contrato ou documentos comprovativos equivalentes.
Ora, mesmo admitindo a aplicação ao presente caso do n.º 1 do art.º 357.º, certo é que o Programa do Concurso exige a apresentação do original ou da pública-forma dos contratos ou documentos comprovativos equivalentes apenas para comprovar as experiências apresentadas pelos concorrentes, enquanto o depoimento da testemunha serviu para afastar a exploração por parte de Waterleau Group das duas instalações de tratamento de águas residuais em Marrocos, e não para comprovar experiência de qualquer outro concorrente.
Tal como afirma o Tribunal recorrido na factualidade assente, as duas instalações de tratamento de águas residuais em causa “eram operadas pelas empresas criadas em Marrocos, enquanto Waterleau era meramente um dos contraentes do contrato celebrado com a entidade que realiza o processo de concurso”.
Não se vê violado o disposto no n.º 1 do art.º 357.º do Código Civil.

3.3. Do erro de julgamento e da nulidade do art.º 571.º n.º 1, al. c) do CPC
Nos autos foram dados como provados os seguintes factos:
“19. Por outro lado, na lista de experiências apresentada pelo ora adjudicatário, Waterleau – Originwater em Consórcio, duas experiências apresentadas por Waterleau Group: WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc, eram operadas pelas empresas criadas em Marrocos, enquanto Waterleau era meramente um dos contraentes do contrato celebrado com a entidade que realiza o processo de concurso.
20. Em 27 de Abril de 2018, o vice-presidente permanente da sociedade de projecto criada em Portugal pelo Recorrente Beijing Enterprises Water Group Limited, A, deslocou-se propositadamente a Marrocos para efectuar uma investigação in loco, de dois dias, das duas estações de tratamento de águas residuais em Marrocos (WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc), pertencentes a Waterleau Group.
21. De acordo com as informações fornecidas a A pelo responsável da estação de tratamento de águas residuais WWTP Fès-Maroc, B, nos termos da legislação de Marrocos, as estações de tratamento de águas residuais só podiam ser exploradas pelas empresas locais registadas lá. Assim sendo, Waterleau Group registou lá uma empresa local na altura em que lhe foi adjudicado o projecto em causa, cujas marca comercial e designação eram iguais a Waterleau Group da Bélgica, a par disso, o registo fiscal em Marrocos era independente, bem como a gestão e operação da estação eram executadas pela equipa local de Marrocos, e à qual não se aplicaram quaisquer recursos humanos ou técnicos da sede de Waterleau Group na Bélgica.
22. A, ao efectuar a investigação in loco da estação de tratamento de águas residuais WWTP Marrakech-Maroc, tomou conhecimento de que o principal trabalho de operação e manutenção da aludida estação de tratamento de águas residuais era responsabilizado pela Companhia General Routiere, bem como viu que os fatos e capacetes de segurança usados pelos trabalhadores de operação e manutenção da estação tinham o símbolo da Companhia General Routiere.
23. Finda a investigação in loco, averiguou-se que as duas estações de tratamento de águas residuais em Marrocos (WWTP Marrakech-Maroc e WWTP Fès-Maroc) eram operadas pela sociedade de projecto local do adjudicatário, Waterleau Group.”
Na óptica do recorrente, o acórdão recorrido sofre da nulidade do art.º 571.º n.º 1, al. c) do CPC, por manifesta contradição entre a decisão e os fundamentos de facto em que assenta, pois que, enquanto deu por provada experiência ou existência de terceiros na operação e manutenção das referidas duas ETARs em 2018, anulou o acto administrativo do Sr. Chefe do Executivo, julgando essa experiência na operação e manutenção dessas ETARs como sendo experiência de terceiro (não do recorrente) desde o início dos respectivos contratos, isto é, desde 2012 e 2014, sendo que, conforme o programa do concurso e do Relatório da Comissão de Avaliação, foi a experiência de serviço prestado durante o período de pelo menos 3 anos antes da publicação do anúncio do concurso (cfr. parte final da cláusula 6.2 do capítulo II.2 - Programa do Concurso), ou seja, a experiência avaliada e pontuada foi o tempo prestado desde o início dos contratos em 21.01.2012 e 01.01.2014 até 25.10.2017, data de abertura do concurso.
Ora não é bem verdade que ficou provada a experiência ou existência de terceiros na operação e manutenção das duas ETARs apenas em 2018, pois o Tribunal recorrido deu como assente que as duas experiências apresentadas pelo ora recorrente “eram operadas pelas empresadas criadas em Marrocos, enquanto Waterleau era meramente um dos contraentes do contrato celebrado com a entidade que realiza o processo de concurso” (factos n.º 19, e também n.º 23).
E constata-se no acórdão recorrido a seguinte fundamentação, que merece o nosso acolhimento:
“É inegável que as provas apresentadas pelo Recorrente só demonstram os resultados da investigação feita na dada altura, ou seja a situação ocorrida em 27 de Abril de 2018. Contudo, não devemos ignorar que, conforme as informações documentais constantes dos autos (fls. 180 dos autos), os projectos em causa iniciaram-se em 21 de Janeiro de 2012 e 31 de Dezembro de 2013, e terminarão em 20 de Janeiro de 2022 e 30 de Dezembro de 2023, respectivamente.
Em suma, na altura em que os Recorrentes enviaram seu pessoal ao local em causa para efectuar a respectiva investigação (27 de Abril de 2018), os aludidos projectos deviam ser ainda operados pelo contra-interessado, mas a realidade não foi assim.
O prazo de prestação de serviços nos referidos projectos é de 10 anos e, durante esse período, o contra-interessado nunca revelou que houvesse alteração de operador, portanto, segundo as regras da experiência comum, em conjugação com as provas apresentadas pelo Recorrente, este Tribunal considera que pode ser razoavelmente apurado o seguinte facto: Os projectos em causa foram explorados, desde princípio, pelas sociedades de projecto locais e não directamente pelo contra-interessado.”
Daí que, uma vez provado que os respectivos serviços não foram realmente prestados pelo ora recorrente, mas sim por terceiro, não devem ser avaliadas as duas experiências aprestadas pelo recorrente, pelo que não se divisa a nulidade do acórdão que decidiu anular o acto administrativo de adjudicação.
Por outro lado e face à fundamentação acima transcrita, também não se detecta o erro de julgamento imputado pelo recorrente.

3.4. Do erro de julgamento e da violação dos art.ºs 184.º do Código Civil e 19.º e 178.º do Código Comercial ou a insuficiência da matéria de facto
Imputa o recorrente outro erro de julgamento, alegadamente consistente em considerar como pessoa jurídica distinta da Waterleau Group a empresa que esta inscreveu em Marrocos com a mesma marca, designação e registo fiscal da Waterleau Group.
Desde logo, não se vê como foram violadas as normas invocadas pelo recorrente.
O art.º 184.º do Código Civil define a noção e as espécies das sociedades, enquanto os art.ºs 19.º e 178.º do Código Comercial regulam respectivamente a admissibilidade de firmas registadas fora de Macau e as sociedades com actividade permanente na RAEM, matérias estas que não parecem ligadas à questão ora em discussão, de considerar a empresa registada em Marrocos como pessoa jurídica distinta de Waterleau Group.
As outras normas invocadas pelo recorrente – art.ºs 176.º do Código Comercial, 141.º e 156.º do Código Civil, conjugados com os art.ºs 179.º e segs. do Código Comercial – referem-se à personalidade jurídica das sociedades comerciais e ao acto constitutivo das sociedades em Macau, não se podendo imputar a sua violação em relação à empresa registada em Marrocos.
Na tese do recorrente, os factos dados como provados não dizem nem significam que essa empresa é uma pessoa jurídica marroquina distinta da pessoa jurídica belga.
Ora, decorre dos factos n.ºs 19 a 23 da matéria de facto provada que, conforme as informações fornecidas a A pelo responsável da estação de tratamento de águas residuais WWTP Fès-Maroc, B, nos termos da legislação de Marrocos, as estações de tratamento de águas residuais só podiam ser exploradas pelas empresas locais registadas lá, pelo que, na altura em que lhe foi adjudicado o projecto em causa, Waterleau Group registou em Morracos empresa local. E as duas estações de tratamento de águas residuais em Marrocos eram operadas pela sociedade de projecto local do adjudicatário, Waterleau Group.
Trata-se da matéria de facto que fica, em princípio, fora da competência de cognição do Tribunal de Última Instância.
A factualidade assente aponta para o sentido de que a empresa registada em Marrocos é distinta da sua empresa-mãe, Waterleau Group, ainda que com a mesma marca comercial e a mesma designação.
Tal como afirma o Tribunal recorrido, mesmo que as sociedades de projecto pertençam integralmente à sua empresa-mãe, são dotadas de personalidade jurídica independente, não se podendo, por isso, confundir essas sociedades de projecto com a empresa-mãe, consideração esta que vale tanto para o recorrente como para o recorrido.
E não se vislumbra o vício de insuficiência da matéria de facto.
Improcede o argumento do recorrente.

3.5. Da errada interpretação e aplicação da lei (aviso e programa do concurso)
Alega o recorrente o seguinte:
“24. Nenhuma das partes levantou a questão da manutenção da vigência ou não daqueles contratos em 27 de Abril de 2018. Razão pela qual, o Acórdão sofre por isso da nulidade do art.º 571.º n.º l, d), 2ª parte, do C. Proc. Civil por ter conhecido de questão que não lhe competia conhecer.
25. A decisão ora recorrida julgou que sobre a recorrente caía o ónus de provar a mudança de operadores verificada pelo Sr. A em 27 de Abril e 2019 e de provar que tal acontecera depois do aviso de abertura (25.10.2017) sob pena do Tribunal considerar que houve substituição de operadores logo desde o início dos contratos em 2012 e 2014.
26. Ora ninguém alegou nem apresentada prova da existência de terceiros operadores nas ETARs antes de 27 de Abril de 2018.
27. O que os recorridos alegaram e provaram foi 27 de Abril de 2018. Tal juízo do julgador traduz em imposição à recorrente o ónus de provar contra si própria (provar contra si um facto impeditivo do direito concursal da recorrente) que o facto ocorrera antes da data alegada e provada pelos ora recorridos, nomeadamente que isso ocorrera antes 15.10.2017 que foi a data do anúncio do concurso.”
Desde logo, constata-se nas alegações apresentadas pelo recorrente que ele voltou a questionar a convicção do tribunal sobre a matéria de facto, questão esta que já foi abordada, com as considerações acima expostas.
Por outro lado, a nulidade prevista na al. d), 2ª parte, do n.º l do art.º 571.º do CPC consiste em conhecimento pelo tribunal de questões de que não podia conhecer.
Se é certo que não foi levantada a questão da manutenção da vigência ou não dos contratos em 27 de Abril de 2018, não é menos verdade que tal não configura uma “questão” referida na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º, mas antes um argumento para resolver a questão de saber se as experiências apresentadas devem ser avaliadas e pontuadas pela Comissão de Avaliação.
Tal como afirma o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer, “a conclusão de que os contratos estavam em vigor, induzida aliás pelos próprios documentos juntos pela candidatura das recorrentes, não encerra propriamente a resolução de uma questão, antes traduz um passo da argumentação para concluir que a recorrente Waterleau não havia prestado em Marrocos, por si própria, os serviços de operação e manutenção de instalações de tratamento de águas residuais, que estiveram na base da pontuação da sua experiência para os fins do concurso, constituindo esta pontuação e as suas vicissitudes uma das questões a resolver no âmbito do recurso contencioso, o que afasta a aventada hipótese de excesso de pronúncia e de violação das regras sobre o ónus da prova”.
Com base no depoimento da testemunha Sr. A, conjugado com as regras da experiência comum e com as provas produzidas, o Tribunal recorrido considera apurado que os projectos em Marrocos foram explorados, desde princípio, pelas sociedades de projecto locais.
E também não se vislumbra a imputada violação das normas das cláusulas 6.2 e 6.3, b) do capítulo II.2 do Programa do Concurso, segundo os quais se o concorrente estiver a prestar serviços de operação e manutenção, o tempo prestado para esses serviços tem de ser, no mínimo, de 3 anos antes da data de publicação do anúncio do concurso e, no caso de o concorrente ser um membro do consórcio, as experiências referidas no ponto 6.2 devem ter sido adquiridas directamente por um membro do consórcio que possua, no mínimo, 40% de quota do consórcio/adquiridas conjuntamente por um membro do consórcio que possua, no mínimo, 40% de quota do consórcio e por outra entidade sob a forma de consórcio.
A imputação do recorrente partiu dos pressupostos de que a empresa de projecto local estabelecida em Marrocos é a própria Waterleau Group, e não pessoa distinta dela, e as experiências executadas até à data de publicação do anúncio do concurso foram adquiridas por Waterleau Group.
Ora, tratam-se dos pressupostos sem base factual.
Na realidade, o que se extrai da matéria de facto provada é que a empresa registada em Marrocos é distinta de Waterleau Group e que as estações de tratamento de águas residuais em causa foram exploradas, desde princípio, pelas sociedades de projecto locais e não directamente por Waterleau Group.
Improcede também o recurso, nesta parte.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 UC.

Macau, 13 de Novembro de 2019

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa




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Processo n.º 85/2019